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A reflexão a seguir é de Raymond Gravel, padre da arquidiocese de Quebec, Canadá, publicada no sítio Culture et Foi, comentando as leituras do Domingo de Ramos (1° de abril de 2012). A tradução é de Susana Rocca, aqui reproduzida via IHU.
Referências bíblicas:
Evangelho de Ramos: Mc 11,1-10
Evangelho da Paixão: Mc 14,1-15,47
É o início da Semana Santa, da Grande Semana em que nós lembramos o evento fundante da nossa vida cristã: a Morte-Ressurreição de Cristo; é a ocasião na qual nós nos lembramos deste caminho de cruz que se eterniza... Neste domingo de Ramos e da Paixão do Senhor, esta festa já marca o duplo evento, que não pode ficar separado na nossa fé cristã: a morte-ressurreição. O paradoxo dessa festa se expressa através da contradição de multidão que, por momentos, aclama o Cristo como rei com ramos nas mãos, que grita pedindo que o crucifiquem como um bandido qualquer com os punhos fechados.
Mas, atenção! Esses dois eventos narrados por São Marcos são narrativas teológicas, não são históricas no sentido material do termo, mas que querem nos dizer algo da nossa realidade humana contemporânea. Foram compostas à luz da Páscoa e é na luz da Páscoa que devemos interpretá-las. Os Ramos e a Paixão são duas festas diferentes que foram postas juntas a partir do décimos século na Igreja latina.
A festa de Ramos tem origem na festa judaica das Tendas ou dos Tabernáculos, onde os judeus, no mês de setembro, faziam grandes procissões com os ramos nas mãos no intuito de celebrar o fim das colheitas e para se lembrarem da estadia dos Israelitas no deserto. O evangelista Marcos aplicou, então, a Jesus Ressuscitado essa procissão de ramos, para sublinhar o evento teológico da sua morte-ressurreição. Essa festa dos Ramos, os cristãos do terceiro século a celebravam no domingo precedente à Páscoa. A festa da Paixão, com seu caminho de cruz, era celebrada em Roma a partir do quarto século, no momento da conversão do imperador Constantino. Essa festa marcava a entrada da Igreja na Semana Santa. A partir do século X, as duas tradições se juntaram oficialmente na Igreja latina, e no século XVI encontramos a dupla festa no missal romano. O Papa Pio XII, em 1955, marcou os ritos que foram adaptados em 1970, com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II. Essa é a história da festa de hoje... Mas, em 2012, o que podemos resgatar dessa dupla festa?
1. Visto que a morte e a ressurreição de Jesus são inseparáveis como evento fundador da fé cristã, certamente devemos entrar nessa contradição, nesse paradoxo da fé em que a vida e a morte se superpõem continuamente; elas são sempre parte da nossa realidade humana: nascemos e morremos. A natureza testemunha isso sem cessar. A vida e a morte são dois lados de uma mesma realidade: a vida abre a porta da morte e a morte chama à vida.
2. Outro paradoxo da festa de hoje merece ser sublinhado: é essa mesma multidão que por vezes aclama (Mc 11,9-10) e que também depois condena (Mc 15,13-14). Mais uma vez, isso faz parte da nossa realidade humana. A multidão é sempre versátil. Basta uma liderança para manipulá-la em qualquer sentido, no melhor ou no pior. Os humanos que compõem a multidão são facilmente influenciáveis por elementos e situações que, às vezes, lhes fazem renegar a si próprios: nas instituições, nas empresas ou nas fábricas, vemos frequentemente situações injustas flagrantes... Quantas pessoas vão aceitar se arriscar para denunciá-las? O medo se instala rapidamente: o medo de perder o emprego, o medo de ser rejeitado, o medo de ser isolado, o medo de não poder ter acesso a um lugar superior, o medo de ter que brigar em nome da justiça, o medo de ter medo... É triste! Mas a maioria das pessoas é assim. Eu mesmo experimentei isso mais de uma vez. É, portanto, essa maioria que compõe a multidão, isto é, as mulheres e os homens aos que dá para lhes fazer qualquer coisa...
3. Relendo a Paixão de Marcos, onde o evangelista nos apresenta um Jesus humano e um homem seguro de si, eu creio que seria útil nos situarmos em relação às numerosas personagens que integram sua narrativa: sumos sacerdotes, escribas e anciãos, uma mulher de Betânia na casa de Simão o leproso, Judas Iscariotes o traidor, os dois discípulos e o homem com o cântaro de água, os Doze com Pedro seu porta-voz, os dois irmãos Tiago e João, uma tropa armada de espadas e de paus, servidores do sumo sacerdote, sendo que um deles perdeu a orelha, Caifás e as falsas testemunhas, os serventes, Pilatos, a multidão, Barrabás, os soldados, Simão de Cirene, pai de Alexandro e de Rufo, os transeuntes, os anônimos no momento da crucifixão, as mulheres que olhavam, entre elas: Maria de Magdala, Maria, a mãe de José, o centurião romano, José de Arimateia, e esse jovem vestido com um lençol que se escapou nu... Há muita gente e todas essas pessoas nos dizem algo do que nós somos.
3.1 Fica evidente que Jesus é o autor principal da Paixão. Porém, basta de pensar fantasias, dizendo que ele sofreu mais do que todos os demais. A história no mundo está cheia de mulheres, de homens e de crianças que foram vítimas, torturados e mortos injustamente. Por outro lado, o que a história teológica de Jesus nos ensina é que a sua paixão, seus sofrimentos e a sua morte nos fazem tomar consciência que, através de Jesus, Deus quis se solidarizar conosco, com as nossas paixões, com os nossos sofrimentos e mortes. Sofrendo a sua paixão, Jesus representa todos aqueles e aquelas que, na nossa humanidade, são crucificados de uma maneira ou de outra, pelo mal, à prova, à doença, à fraqueza, à brutalidade, à solidão e à injustiça. Todas aquelas e todos aqueles que são vítimas do abandono, da calúnia ou da sentença injusta, da tortura psíquica ou moral... Todas essas pessoas podem se reconhecer em Jesus Cristo: “Fui morto, diz São Paulo, na cruz com Cristo” (Gal 2,19). Isso quer dizer que ele está perto de nós nos nossos caminhos de cruz. Nossas lutas são a imagem do seu combate contra o mal e a injustiça. E é por isso que nós devemos ir até o fim, sem compromisso, se quisermos ser semelhantes a ele. Vamos precisar a vida toda para chegar a isso; é melhor começar desde já. Na espera, nós podemos nos situar também em relação aos outros autores do drama, apresentados por São Marcos e que eu enumerei antes...
3.2. É difícil para nós olharmos de longe para estes outros autores do drama, como se não tivéssemos nada em comum com eles: uma das últimas refeições de Jesus na casa de Simão o leproso, isto é, um excluído... e, ao longo da comida, uma mulher, sem nome, vem ungir Jesus antes da sua morte; ela vem perfumar a cabeça daquele que seria coroado de espinhos (Mc 14,3). Essa mulher é criticada severamente por uma questão de dinheiro (Mc 14,4-5). Porém Jesus diz: “por toda a parte, onde a Boa Notícia for pregada, também contarão o que ela fez, e ela será lembrada” (Mc 14,9). Todos os excluídos de hoje, da nossa sociedade e da nossa Igreja, podem se reconhecer em Simão o leproso, ou nesta mulher sem nome que tem um lugar privilegiado no coração do Cristo da Páscoa. Eles são os escolhidos de Deus. Não devemos esquecer-nos disso... E os outros agora: Judas nos lembra as nossas traições na amizade, no amor, com as palavras que falamos. Pedro nos leva para as nossas negações e aos nossos abandonos, quando nos achamos melhores do que os outros. Os discípulos adormecidos, depois fugindo, será que eles não são o reflexo dos momentos em que ficamos dormidos e das nossas faltas de coragem quando temos que nos expor e testemunhar? Será que Pilatos não evoca as nossas negligências diante de Deus e diante dos homens quando os nossos interesses pessoais ficam antes da justiça e da verdade?
Pelo contrário, outros atos da Paixão dão prova da coragem e da fé: Simão de Cirene, que levou a cruz ao lado do Senhor; ele encarna os acompanhamentos fraternais que nós fazemos das pessoas que sofrem ou que são excluídas. Esse homem vestido com um lençol é, sem dúvida, o próprio Marcos que, como Alfred Hitchcock, entra na sua própria narrativa para dá-lhe ainda mais credibilidade; é este mesmo jovem que encontramos na manhã da Páscoa, sentado no túmulo, desta vez vestido com uma roupa branca, a roupa da Ressurreição. Esse jovem é o próprio Jesus, desvestido para expressar a morte, mas ele é também o Cristo vestido de branco para expressar a Ressurreição. Ele representa também todos os cristãos que aceitam ser desvestidos, isto é, despojado de si mesmos, da sua própria vida, para revestir-se do Cristo Ressuscitado. O Centurião romano que rende homenagem ao Crucificado, nós o acompanhamos quando testemunhamos a nossa esperança cristã. Poderíamos continuar com todas as personagens da narrativa... Em quais nos reconhecemos?
A Paixão de Cristo continua ainda hoje, sob nossos olhos, da mesma forma que a sua Ressurreição... Qual é o papel que nós temos? Podemos ter a impressão de que os nossos caminhos de cruz se eternizam... É verdade! Mas não esqueçamos que eles desembocam necessariamente sob o sol da manhã da Páscoa; caso contrário as nossas cruzes são inúteis e os nossos caminhos não nos conduzem a lugar nenhum...
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