Foto: Mattia Vacca
Estamos sempre sendo chamados para provar que nos tornamos suficientemente masculinos ou femininos
No interior do Rio Grande do Sul, alguns pecados são imperdoáveis. Para um cão pastor, atacar uma ovelha é evento que só acontece uma vez: pagará com a vida. Aliás, um dos ditos que correm por aqui é "cachorro que come ovelha, só matando". Supõe-se que o ato selvagem despertará uma gula ancestral, a fera acordada não se resignará mais à doma.
Esta é a história de um menino e seu cão "criminoso". Ela me foi contada por sua irmã mais moça, que já avó nunca esqueceu. Era um pastor belga, a sombra negra do seu jovem dono, mas cometeu o crime de caçar o que devia proteger. O pai, homem antigo, achou que o animal devia ser punido pelo dono, assim tornando o evento exemplar para seu filho. Exigiu que ele matasse seu animal de estimação. O garoto recusou, mas os peões por ali reunidos observaram que não seria muito máscula semelhante covardia. A provocação funcionou e ele se embrenhou com seu parceiro no mato. Sumiu o dia todo. Noite fechada, as mulheres da casa choravam e já temiam por ele, quando voltou, silencioso. Nunca mais falou sobre isso, mas parecia ter executado a própria alegria. Era agora um homem, pagou o preço da masculinidade. Tornou-se um adulto tumultuado, nunca abandonou as terras do pai, foi seu predileto e razão de seus cabelos brancos.
Muito se diz sobre o árduo caminho das mulheres pela libertação. Foram milênios de opressão e dois séculos de luta feminista. A cada 8 de março saudavelmente nos lembramos disso, porque ainda há muita desigualdade. Por sorte, na esteira dessas lutas, também a condição masculina teve suas regras alteradas. Histórias como essa tendem a não se repetir. Se bem que é verdade que sempre cometemos algum gesto de assassinar a própria infância para crescer, a doação dos brinquedos preferidos já basta. Quanto à identidade sexual, cada dia fica mais claro que é incerta e transitamos sempre perto da raia do sexo oposto. Isso não se confunde com ser gay: homossexuais amam o próprio sexo, mas têm os mesmos dramas de identidade que os héteros.
Como o menino da história, estamos sempre sendo chamados para provar que nos tornamos suficientemente masculinos ou femininos. Que o digam as mulheres sem filhos, assombradas pelo olhar superior das supostamente legitimadas pela maternidade; os solteiros ou separados, que se envergonham sem a presença de um parceiro sexual. As mulheres já não sabem bem o que é ser uma e, graças a elas, os homens carecem das certezas milenares. Não deviam queixar-se disso, já não serão eternos soldados, não precisarão pagar o preço da tristeza de assassinar a própria sombra, essa que brinca ao nosso lado enquanto caminhamos.
- Diana Corso, psicanalista
Artigo publicado na coluna mensal da autora na revista Vida Simples de março
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"Ora, se grito pela libertação feminina, pelo uso-ou-desuso do salto alto, da maquiagem, da menstruação, por que não haveria, também, de acreditar na libertação masculina, dos parâmetros ignorantes de sexualidade e agressividade artificiais?
Se eu luto para que eu e minhas “semelhantes” tenhamos a livre opção de trânsito entre identidades e sexualidades, por que restringi-lo aos demais?
Que usem – ou não – batons, cintas-liga, queimem sutiãs. Que a luta do 8 de Março se torne de todxs nós. Pelo fim da opressão patriarcal machista, da dicotomia de gênero, da homofobia, lesbofobia, e transfobia. Pela total eliminação da limitação expressiva humana em detrimento da manutenção do status quo. Que, juntxs, pensemos e repensemos, com as diferentes histórias de vida e luta, uma sociedade, por fim, liberta."
Precisamos queimar cuecas em praça pública
"O homem precisa começar a entender que tem direito ao afeto, às emoções, a sentir. Passar a ser homem e não macho." Tweet
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