quinta-feira, 8 de março de 2012

"Um vilão católico em uma história repleta de heróis"


Um padre negou à católica americana Barbara Johnson a participação na Sagrada Eucaristia. O motivo? Ela vive há dezenove anos um relacionamento lésbico. Mas o que mais chamou a atenção nessa situação e fez o caso virar notícia foi o fato de a Comunhão ter sido negada a Barbara no funeral de sua mãe. "Ele pousou a mão sobre o corpo de Cristo, olhou para mim e disse: 'Não posso lhe dar a Comunhão porque você vive com uma mulher e, aos olhos da Igreja, isso é pecado", conta ela.

O que já parece ruim fica pior: o padre deixou o altar quando, após a Eucaristia, Barbara proferia o elogio fúnebre; pior: 15 minutos depois, mandou avisar que não acompanharia o cortejo fúnebre ao cemitério. Pior: não providenciou outro padre para proporcionar uma despedida digna à falecida, que por toda a sua vida fora católica devota – despertando a justa indignação de Barbara e seus irmãos, todos profundamente religiosos.

Como pode ter acontecido tamanho desastre pastoral? A atitude do padre Marcel Guarnizo, da Igreja de São John Neumann, em Gaithersburg, Maryland, deu-se poucos dias depois de a Assembleia Legislativa aprovar uma lei legalizando o casamento homossexual no estado, que deve ser sancionada pelo governador democrata Martin O'Malley ainda esta semana. O ocorrido causou rebuliço entre os ativistas pelos direitos dos LGBTs e levou alguns conservadores religiosos a manifestar seu apoio à decisão do sacerdote. "O Pe. Marcel Guarnizo foi jogado embaixo do ônibus por cumprir o cânone 915! ", protestou um blogueiro católico da arquidiocese. "O problema aqui não é o padre, mas sim Barbara Johnson." O que o episódio torna evidente, porém, é a falta de compreensão e conhecimento do direito canônico, do catecismo e das orientações pastorais do Magistério, tanto por parte do tal blogueiro quanto do Pe. Guarnizo.

Senão, vejamos: o cânone 915 determina literalmente que "não sejam admitidos à sagrada comunhão os excomungados e os interditos, depois da aplicação ou declaração da pena, e outros que obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto". Então, antes de mais nada, há que se fazer aqui um esclarecimento e uma distinção importantes. Os documentos da Igreja que se referem à homossexualidade não só determinam que os gays sejam acolhidos com respeito como classificam os atos homossexuais (os atos, e não as pessoas) como “intrinsecamente desordenados” – o que, de acordo com a doutrina, é uma classificação insuficiente para determinar o pecado.

Aqui, abro parênteses: pode parecer estranho à primeira vista, mas há nuances que distinguem os conceitos de “desordenado, errado, mau” e “pecado”. De fato, a Teologia Moral católica chama de pecado a circunstância que reúna três elementos: matéria grave, liberdade na ação e consciência de que aquilo é pecado. Só a junção dos três elementos caracteriza pecado grave, segundo a Igreja. Ademais, diz a Constituição Pastoral Gaudium et Spes que “pela fidelidade à voz da consciência, os cristãos estão unidos aos demais homens, no dever de buscar a verdade e de nela resolver tantos problemas morais que surgem na vida individual e social” (GS 16). Ora, muitos católicos gays – como a própria Barbara – simplesmente não reconhecem suas vidas e seus relacionamentos como “desordenados”; portanto, não podem ir contra a sua consciência se esta não os acusa de estar em pecado. Esse raciocínio leva a descartar de vez as condenações dos atos homossexuais por pecaminosos, que, insisto, não encontram respaldo na doutrina católica – mas, como esse é um debate que foge ao escopo deste post, remeto o caríssimo leitor a uma das nossas perguntas frequentes, aqui. Fecha parênteses. ;-)

De todo modo, em termos práticos, se o Pe. Guarnizo estava convicto (ainda que equivocadamente) de que a mulher que tinha diante de si vivia em pecado grave, como ele deveria ter procedido? O sacerdote soube que Barbara é gay ao ser apresentado à sua esposa pela manhã, muito antes do início da celebração. Nesse caso, seria sua responsabilidade eclesiástica chamá-la para uma conversa reservada. "Quando surgem dúvidas sobre se um indivíduo deve ou não se apresentar à Comunhão, não cabe à arquidiocese de Washington repreender publicamente essa pessoa", salientaram as autoridades da arquidiocese em comunicado emitido a respeito do caso. "Qualquer questão relativa à adequação de um indivíduo para receber a Comunhão deve ser abordada pelo padre com essa pessoa em um ambiente privado e pastoral."

Ainda de acordo com as políticas da arquidiocese, a recusa de Guarnizo parece estar em desacordo com a firme posição contra a negação da Comunhão aos católicos enunciada pelo arcebispo de Washington, o cardeal Donald Wuerl, como bem lembraram fieis da comunidade. O cardeal já havia declarado não acreditar na negação da Comunhão, alegando ser impossível saber o que está no coração da outra pessoa, por ocasião da campanha presidencial de 2004, quando líderes católicos conservadores disseram que o senador John F. Kerry, de Massachusetts, candidato democrata, deveria ter a Comunhão negada por defender o direito das mulheres de decidirem-se ou não pelo aborto.

Essa história é um prato cheio para os defensores da tese de que toda religião, ou o cristianismo, ou ao menos o catolicismo em particular, são inerentemente ruins. Mas repito aqui o convite feito por John Shore, que tem um consistente trabalho de denúncia de aspectos da religião e/ou teologia que de alguma maneira promulguem a condenação dos LGBTs (é autor de “UNFAIR: Why the ‘Christian’ View of Gays Doesn't Work” e “10 Ways Christians Fail To Be Christian, and Other Such Essays”, sem tradução no Brasil), no site LGBTQNation: examinemos a situação toda com mais calma, sem julgamentos apressados, e vejamos se há algo de positivo que se pode tirar desse caso.

Sem a menor sombra de dúvida, o Pe. Guarnizo não poderia ter escolhido momento pior para pôr suas manguinhas intolerantes de fora. Contudo, faço eco às palavras de Shore: “é também o único vilão em uma história repleta de heróis católicos”. Shore prossegue em sua análise:
“Sim, o Pe. Guarnizo negou a Comunhão a Barbara. Mas quase imediatamente em seguida um Ministro da Eucaristia leigo que participava da celebração ministrou-lhe amorosamente o sacramento. 
“Sim, Barbara foi basicamente escorraçada pelo Pe. Guarnizo. Contudo, logo após o serviço (e, em medida necessariamente menor ainda durante a celebração), Barbara viu-se também cercada e abraçada por outros católicos, que fizeram questão de reiterar que aquele sacerdote não representava, de modo algum, o amor da Igreja [entendida aqui no sentido próprio do “corpo dos fieis”, não do clero apenas]. 
“Sim, o Pe. Guarnizo lamentavelmente recusou-se a acompanhar o cortejo ao cemitério. Mas logo em seguida o diretor do funeral (‘um anjo’, nas palavras de Barbara) consolou-a e assegurou-a de que providenciaria rapidamente outro padre para presidir ao ritual. Recorreu então ao Pe. Peter Sweeney, que não hesitou em abandonar o sossego de sua aposentadoria para celebrar o serviço funeral da família Johnson."
“O padre Sweeney foi perfeito", atesta Barbara. "Não poderíamos querer um sacerdote mais gentil e amoroso. Tanto o Padre Sweeney quanto o diretor do funeral nos serviram de bálsamos para acalmar nossos corações feridos.”

Quando o pároco de Saint John Neumann, o Pe. LaHood, tomou conhecimento do que havia acontecido, telefonou para Barbara para desculpar-se. Barbara encontrou-se com ele e achou-o “gentil, compassivo e sincero em seu pedido de desculpas”. E mesmo a arquidiocese de Washington apressou-se em repudiar a atitude de Pe. Guarnizo, através do comunicado supracitado:
“Em questões de fé e moral, é responsabilidade da Igreja ensinar e iluminar com a mensagem do Evangelho as circunstâncias do dia a dia. Quando surgem dúvidas sobre se um indivíduo deve ou não se apresentar à Comunhão, não cabe à arquidiocese de Washington repreender publicamente essa pessoa. Qualquer questão relativa à adequação de um indivíduo para receber a Comunhão deve ser abordada pelo padre com essa pessoa em um ambiente privado e pastoral. 
“A arquidiocese está examinando o incidente ocorrido em uma missa fúnebre celebrada pelo Pe. Marcel Guarnizo, e cuidará do caso como um problema de pessoal.”
“O que mais eles poderiam dizer tão cedo? Estão examinando o caso. É justo”, opina Shore. Barbara, porém, está determinada: “Minha família quer um pedido público de desculpas por parte do Pe. Guarnizo, e que ele seja afastado das atividades paroquiais. Nosso objetivo é que ele jamais possa voltar a atingir outra família, como fez conosco”.

Concordo com a avaliação de Shore: nada mais justo. E volto a citar suas palavras ponderadas:
“Também nós queremos ser justos ao refletirmos sobre essa história. Para tanto, não percamos de vista que neste caso, para esta família, naquela ocasião sagrada, foi a sua religião, e seus irmãos na fé, que proporcionaram a paz, o apoio e a comunhão que vieram apaziguar todos os presentes. 
“O ódio acalentado pelo Pe. Guarnizo por algumas pessoas não foi capaz de fazer sombra ao amor de Deus por todos nós, e no máximo serviu para por em destaque a capacidade das pessoas de prestar amor e conforto mútuos. A família Johnson e a alma da mãe de Barbara nada perderam aqui. O único a sair perdendo foi o Pe. Guarnizo.”
Havíamos tomado conhecimento dessa história pelo IHU no final da semana passada, mas anteontem, ao receber do amigo Hugo Nogueira, pelo Facebook, o link para o texto de Shore no LGBTQNation, achei necessário trazer para cá a história e suas comedidas considerações a respeito. Curiosamente, compus o presente texto ontem, dia para o qual havíamos programado a bela reflexão de Fredy Cunha a respeito da compaixão e da pena, o guest post do Daniel sobre sua conversa com seu pároco e o vídeo com a mensagem do Bispo Gene Robinson para os gays – todos três, a meu ver, em sintonia com a mensagem de como as manifestações do Amor e da Misericórdia de Deus por nós podem superar de longe qualquer dor que a falta deles venha a causar. E, se há uma coisa que eu aprendi na minha vivência aqui no Diversidade Católica, é que o Amor de Deus por cada um de nós se expressa no amor que sentimos, recebemos e compartilhamos com as pessoas queridas que nos cercam. A questão é se teremos olhos para enxergá-lo e abriremos nosso coração para recebê-lo... E acho que é mesmo uma boa pergunta, nestes tempos de Quaresma: vamos ficar com a dor e o sofrimento causados pelas incompreensões, pelas exclusões, pelas opressões, ou vamos nos deixar curar e libertar pelo Amor do Pai? Atendamos ao convite de Cristo e ressuscitemos com Ele na Páscoa, deixando a morte para trás.

Com amor,

Cris :-)

Com informações do  IHU e do LGBTQNation

* * *

Atualização em 13/03/12:
E nosso amigo Hugo Nogueira mais uma vez nos manda a informação quentinha: a arquidiocese do Pe. Guarnizo decidiu suspendê-lo. Sem fazer alusão direta ao caso da família Johnson, a arquidiocese atribuiu o afastamento a "atitudes tomadas nas últimas semanas", sem entrar em detalhes. A nota comunicando sua remoção foi lida em todas as missas da paróquia deste fim de semana. Leia reportagem em inglês aqui, e outra, já traduzida para o português (e com a já tradicional ênfase no confronto entre religiosos e gays, em vez de em sinais de encontro e diálogo), aqui.

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