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A Comissão de Direitos Humanos de São Francisco fez uma pesquisa que revelou que quase 50% dos transgêneros já sofreu algum tipo de agressão física ou verbal em banheiros públicos e, consequentemente, grande parte dessas pessoas evita ir ao banheiro fora de casa, o que pode ocasionar problemas de saúde. Foi por isso que o projeto Out for Health desenvolveu um aplicativo para iPhone que mostra os banheiros "seguros" para pessoas trans - de gênero neutro ou que possuem apenas uma cabine - na cidade de Ithaca, em New York.
Eu não sei se vocês conseguem imaginar como é precisar de um aplicativo de celular que te diga onde mijar em paz (tradução literal do nome do programa). Pensando nos comentários que li sobre o que aconteceu com Laerte, tenho certeza que a maioria não consegue. Eu não sei como é a situação no exterior e muito menos especificamente na cidade de Ithaca, mas sei que os únicos banheiros de gênero neutro que já vi (e usei) foram um numa clínica especializada em transexualidade e outro no meu antigo trabalho, que só era neutro por ser adaptado para deficientes físicos, mas ainda assim ajudava.
Uma das coisas que mais me incomodou na repercussão sobre Laerte ter sido impedida de usar o banheiro feminino foi que a maioria das notícias que eu vi sobre tratava o fato como "Laerte vai à justiça para poder entrar em banheiro feminino", algo que eu não vejo ocorrer com crimes de outra natureza (exceto estupro): culpam a vítima por ir à justiça atrás de algo que é seu direito. Não vejo nas manchetes "fulano entra na justiça após ter seu carro roubado", é sempre "fulano teve seu carro roubado e polícia está à procura" ou coisas do tipo. É a clássica diferença de conotação entre "ofendeu" e "se sentiu ofendido": ao usar o primeiro, fala-se do ofensor e sua ação: ofender; ao usar o segundo, fala-se da vítima e sua ação: se sentir ofendido, deixando em dúvida se de fato ocorreu a ação do ofensor. Quando a vítima é alguém que difere do que a sociedade considera padrão, fica óbvio qual a construção frasal utilizada.
Como uma sociedade e uma mídia tão homem-branca-cisgênera-heterossexual-cristã poderia se ver no lugar de uma pessoa transgênera? Então, toma-se que o diferente é culpado até que se prove o contrário, e isso se reflete nas notícias. A opinião coletiva decide que Laerte não deveria estar indo à justiça, e que o fato dela estar fazendo-o é que é digno de nota. Discriminação aos transgêneros, transexuais e travestis, por sua vez, não é.
Eu já vi muitas pessoas repudiarem o termo “cisgênero”, que é, numa interpretação dentro da binária de gênero, como se chama uma pessoa cuja identidade de gênero está em conformidade com o que se espera do sexo biológico que lhe foi atribuído ao nascimento – ou seja, alguém que não é trans. Acredito que o motivo para esse repúdio é a sensação de desnecessidade desse termo. Por ser a regra e não a exceção, não achamos que precisamos especificar quando alguém possui essa característica, tornando a palavra, portanto, dispensável. Quantas vezes lemos, na descrição de um personagem, “era um garoto branco e magro”, por exemplo? A menos que especificados o contrário, logo imaginamos os personagens como brancos e magros. E assim, quando vemos pessoas usando códigos de vestimenta e comportamentos entendidos como de determinado gênero, os pressupomos como possuidores de determinada genitália (e, se for conhecido que assim não são, merecem ser agredidos). Os transgêneros são invisibilizados e, quando aparecem, é para ser vexados. E é por isso que precisamos de um dia de visibilidade trans.
Pois, mesmo dentro da comunidade LGBT+, o T é ignorado e por muitas vezes não compreendido. Já ouvi de lésbicas “eu gosto de mulher, não de homem, pra ficar com butches (lésbicas com características "masculinas")” e de gays “não gosto dessas bichas que viram mulher”, “não gosto de homens efeminados”. Identidade de gênero é confundida com orientação sexual: uma mulher trans não é um homem gay muito efeminado; um homem trans não é uma lésbica muito butch. E assim por diante.
Gênero não é preto e branco. A sociedade espera um tipo de comportamento de quem tem determinada genitália, e é difícil de acreditar que ainda hoje, 2012, compramos por certa essa ideia. Como bem dito nesse post do blog Feminerds: “gênero não é preto no branco, não é certo e errado, não foi enviado por fax de deus pra nós pra gente se virar com os conceitos. A gente cria e constrói, individualmente e em sociedade. E nós só temos direito de expressar nosso gênero se ele condisser com o que os outros esperam”.
E, me arrisco a dizer, essa binária de gênero é ainda mais cruel para quem é trans. Se você, trans, possui comportamentos ou gosta de vestimentas associadas pela sociedade ao gênero oposto, você não tem sua orientação sexual questionada – como acontece com os cisgêneros – : você tem a sua identidade de gênero questionada, ao ouvir comentários como “se gosta disso/faz isso por que mudou de sexo?”. Ainda mais se o tal comportamento associado pela sociedade ao sexo que lhe foi atribuído ao nascer é gostar do sexo oposto – seu mesmo gênero –, quando terá que ouvir que “iria conseguir muito mais mulher se tivesse ficado como homem mesmo”, no caso de uma mulher trans lésbica, como se a transição fosse uma estratégia de conquista (e ignorando totalmente a existência de bissexuais). Se você não nasceu com a identidade de gênero dentro do que é esperado de alguém com sua genitália, além de se preocupar com a disforia, terá que se enfiar numa caixa apertada que é o estereótipo de gênero.
Esses são apenas alguns dos privilégios que a maioria das pessoas cisgêneras possui – excluindo aquelas que se arriscam a assumir ter alguma característica culturalmente atribuída ao sexo oposto –, e a lista continua: se refererirem a você sempre com os pronomes adequados, não ouvir perguntas como “então você tem piroca ou buceta?”, não estar acostumado a confusões envolvendo o gênero que você apresenta e o sexo marcado em seus documentos. Esses são, é claro, alguns dos menores. Sequer falei ainda da grande improbabilidade de que você, cisgênero, seja expulso de casa ou demitido do emprego apenas por mostrar ao mundo seu gênero com os códigos a ele atribuídos por nossa cultura. E é por isso tudo que eu peço que não peguemos o nosso privilégio e enfiemos no rabo. Que não ignoremos a quantidade de direitos que temos e que algumas pessoas não têm, seja judicialmente ou não. Que não digam que Laerte está exagerando ao exigir um direito que todos deveríamos ter assegurado (e temos: “Segundo a Lei 10.948, é considerado ato discriminatório proibir o ingresso ou permanência de homossexuais, bissexuais e transgêneros em qualquer ambiente ou estabelecimento público ou privado”).
Nesse dia da visibilidade trans, eu espero que você não só não me ignore, como se lembre dos seus privilégios. Afinal, alguém já te disse que você não pode usar o banheiro que você entende como do seu gênero?
- Jack Dantas
Publicado originalmente no Minoria é a Mãe
Post escrito para a Blogagem Coletiva do Dia da Visibilidade Trans Tweet
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