domingo, 26 de fevereiro de 2012

Apesar da violência, Deus dá a vida

Imagem daqui

Tudo é violência, mas essa não é a última palavra: a Páscoa nos demonstra. É por isso que, Deus que nos ama, ele não deixa de caminhar ao nosso lado e nos dá a Vida.

A reflexão é de Raymond Gravel, sacerdote de Quebec, Canadá, publicada no sítio Culture et Foi, comentando as leituras do 1º Domingo de Quaresma (26 de fevereiro de 2012). A tradução é de Susana Rocca.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


Referências Bíblicas:
1ª leitura: Gn 9,8-15
2ª leitura: 1P 3,18-22
Evangelho: Mc 1,12-15

A Quaresma do ciclo B nos fala da Aliança, ou melhor, das Alianças que Deus faz com a humanidade, com seu povo e conosco. Aliança é tida por berit em hebreu, diatheke em grego e testamentum em latim. Toda a Bíblia é uma Aliança, ou melhor, duas Alianças: a antiga ou primeira que se chama Antigo Testamento, e a nova ou segunda que se chama o Novo Testamento. Nessas duas alianças Deus fala, se revela. Ele toma o rosto que lhe damos: às vezes um Deus poderoso, vingador e até mesquinho; outras vezes um Deus cheio de misericórdia, de perdão e de amor. Não podemos conhecê-lo verdadeiramente mais do que aquilo que se diz dele. Felizmente houve uma evolução no conhecimento e no reconhecimento do nosso Deus, de maneira que quanto mais avançamos no tempo mais se apresenta um rosto de Deus que é Amor, porque nós somos amados por ele. E como a vida é um caminho, uma via, uma trilha sempre nova, nós descobrimos, depois, que o Deus que é Amor e que nos ama caminha conosco e nos dá a vida.

Ao longo desta Quaresma do ciclo B, os textos bíblicos que são propostos nos falam de violência e de alianças. Esses textos provêm de fontes e de autores diferentes, como se houvesse um fio condutor que os tornasse semelhantes. Mas por que a violência? Ela é buscada por Deus? Ela faz parte da criação? Cada dia, cada semana, nós escutamos histórias horríveis: mulheres, crianças, homens, pessoas vulneráveis sofrem tragédias, dramas familiares, de opressão, de condenação, de discriminação, de rejeição, de exclusão, etc. Como devemos entender isso? Onde está Deus nisso tudo? O que guardar dos textos bíblicos de hoje?

1. A harmonia: Em todas as civilizações, encontramos narrativas sobre a criação do mundo onde Deus ou os deuses criam a Harmonia, sem violência alguma. Na Bíblia, o Gn 1-2 é um belo exemplo desse mundo ideal, desse mundo sem violência. O questionamento que nos suscita é a seguinte: Será que esse mundo ideal realmente existe? Evidentemente não! E por quê? Por causa das características da matéria que compõem nosso mundo. A matéria fica gasta, estropiada, deteriorada, se degrada, envelhece, sofre e morre. Mas como a Harmonia faz parte dos nossos desejos e dos nossos sonhos mais loucos, como humanos, sendo mais que matéria, nós devemos esperar mais do que qualquer coisa.

Lembremos o que dizia o profeta Isaias: “O lobo será hóspede do cordeiro, a pantera se deitará ao lado do cabrito; o bezerro e o oleãozinho pastarão juntos, e um menino os guiará; pastarão juntos o urso e a vaca, e suas crias ficarão deitadas lado a lado, e o leão comerá capim como o boi. O bebê brincará no buraco da cobra venenosa, a criancinha enfiará a mão no esconderijo da serpente” (Is 11,6-8). Esse profeta continua esperando esse mundo ideal, sem violência, com a chegada de um novo Davi, o Messias de Deus, que os cristãos reconheceram em Cristo ressuscitado. Por outro lado, apesar da sua vinda, a violência persistiu, mas isso não foi empecilho para que os cristãos de todos os tempos desejassem e esperassem a Harmonia, daí a importância de combater a violência assumindo-a, porque ela faz parte da nossa realidade humana.

2. O arco-íris: Na primeira leitura de hoje, nós temos um belo exemplo onde o autor bíblico do livro do Gênese exprime esse desejo de harmonia, retomando o mito da destruição do mundo pelo Dilúvio e a sua recriação por Noé, o que significa: nova criação, e sua família e todos os animais colocados na arca junto deles, a fim de que a vida possa continuar, a pesar da violência da intempérie. Desde sempre, as tempestades, os furacões, os ciclones, as tormentas, as inundações semeiam a destruição. Isso faz parte da nossa realidade. Por outro lado, após as fortes tormentas, quando o sol volta, frequentemente aparece no céu o arco-íris, que nos diz que a tormenta terminou. É um arco, portanto uma arma de combate; mas quando essa arma aparece no céu com as suas tintas multicores, significa o fim da violência. Os crentes de Antioquia viram Deus que depuseram as armas para dizer aos humanos que a vida é mais forte que a morte. O arco-íris se tornou, portanto, um sinal de aliança entre Deus e a humanidade.

3. O deserto: O sofrimento e a morte fazem parte também da nossa condição humana. Deus propõe, então, uma nova aliança, uma segunda, cujo sinal está marcado pela violência: a paixão e a morte de Jesus de Nazaré, que o evento da Páscoa veio confirmar. Os cristãos de Marcos, relendo retrospectivamente a vinda de Jesus, identificaram um duplo movimento: 1) Jesus foi, na sua existência terrena, aquele que demonstrou plenamente a sua ressurreição, isto é, o Cristo, o Senhor, que realiza finalmente a profecia de Isaias: “Jesus vivia entre os animais selvagens, e os anjos o serviam” (Mc 1,13). Jesus foi, do seu batismo até a morte, aquele que realizou plenamente a aliança de Deus com o povo de Israel: “Em seguida o Espírito impeliu Jesus para o deserto. E Jesus ficou no deserto durante quarenta dias, e aí era tentado por Satanás” (Mc 1,12-13). O povo de Israel, salvado por Moisés, tinha passado quarenta anos no deserto, tentado também ele por Satanás (o Adversário). O deserto é o vazio, o lugar da tentação onde se descobre o essencial. Por outro lado, é preciso quarenta dias ou quarenta anos para descobri-lo.

Portanto, no seu evangelho de hoje, Marcos propõe uma recriação na qual Jesus, que há pouco foi batizado, se encontra no deserto, conduzido pelo Espírito, durante 40 dias (tempo de conversão, de mudança, de transformação), para refazer a Harmonia: “Jesus vivia entre os animais selvagens, e os anjos o serviam” (Mc 1,13). Como cristãos, temos que pegar o caminho do deserto, o caminho da conversão e da transformação para refazer, nós também, a Harmonia, porque ela não é nunca adquirida de uma vez para sempre. E é por isso que o chamado de Cristo ressuscitado, que ele retomou de João Batista, é a nós que se dirige hoje: “O tempo já se cumpriu, e o Reino de Deus está próximo. Convertam-se e acreditem na Boa Notícia” (Mc 1,15). Em outras palavras: A hora chegou, dêem sua vida!

4. A gratuidade da salvação: No caminho, nós andamos, avançamos, retrocedemos, caímos, nos levantamos. O autor da primeira carta de Pedro, na segunda leitura de hoje, nos lembra, que por causa do Cristo da Páscoa temos a certeza de chegar seguros ao final do caminho: “De fato, o próprio Cristo morreu uma vez por todas pelos pecados, o justo pelos injustos, a fim de os conduzir a Deus” (1 P 3,18). A sua salvação é tão poderosa que ela é mesmo retroativa: “Foi então que ele proclamou a vitória, inclusive para os espíritos aprisionados” (1 P 3,19). O que quer dizer que Cristo ressuscitado libera todo o mundo; a sua salvação é para todos, mesmo para aqueles que morreram antes dele... Como é que alguns cristãos, na atualidade, ainda duvidam? A única exigência que temos é a conversão. Mas atenção! O teólogo francês Michel Hubaut escreve: “A conversão não se situa primeiramente num plano moral. Converter-se não é passar primeiro do vício à virtude! A conversão é um ato de fé, uma longa e difícil abertura de todo nosso ser a esta vinda imprevisível, insólita de Deus”.

Nós não merecemos a salvação; ela nos é dada gratuitamente. Cristo, nova Aliança, nos diz que todo o mundo é salvo, por causa da fidelidade desconcertante do nosso Deus. A fidelidade de Deus é desconcertante, pois, para que ela seja assim, é preciso que nós assim também o sejamos. Padre Bernard Pitaud, da França, escreve: “Não existe outra verdadeira fidelidade a si mesmo a não ser aquela que se abre ao bem do outro. Ser fiel é, de uma maneira ou de outra, sair de si mesmo para ir até o outro perante o qual eu vou responder sobre meu engajamento. A fidelidade é a virtude do tempo, mas não é ao tempo que ela é fiel, ela o é a alguém”, e esse alguém, para Deus, somos nós...

Para concluir, a narrativa de Marcos é verdadeiramente um novo Gênese, uma nova criação, o começo de um mundo novo. O exegeta francês Jean Debruynne escreve: “Marcos, para abrir a Quaresma, coloca o mundo em movimento. Após ser batizado por João, o Espírito leva Jesus ao deserto. Assistimos à criação de um mundo novo. É um novo Gênese. O Espírito de Deus que pairava sobre as águas do Jordão no batismo de Jesus empurra-o ao deserto porque o deserto é a terra informe e vazia desde o princípio do mundo. Jesus mora lá entre os animais selvagens. O homem ainda não nasceu. O nascimento do homem novo é justamente a vocação de Jesus. A prisão do Batista vai ser o sinal: Convertam-se e creiam na Boa Nova!”.

Eu acrescentaria que mesmo essa nova criação começa na violência, após a prisão e a decapitação de João Batista, para completar-se na violência também com a crucifixão e a morte de Jesus de Nazaré. Tudo é violência, mas essa não é a última palavra: a Páscoa nos demonstra. É por isso que, Deus que nos ama, ele não deixa de caminhar ao nosso lado e nos dá a Vida.

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