terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

O triunfo da "religião"?

Foto daqui

Chegamos a pensar em mudar o título original do artigo que reproduzimos abaixo, mas depois decidimos mantê-lo, acrescentando apenas as aspas e uma ressalva: nosso alerta de sempre quanto ao perigo das generalizações cegas. A "religião" triunfante a que a autora se refere no título, assim como a "religião institucional" de que fala no fim do texto, é aquela que se imiscui indevidamente em assuntos de Estado e, como bem observou o Dep. Jean Wyllys em texto que comentamos ontem aqui, estabelece questões de cunho moral e místico como parâmetro para a elaboração das normas e para o seu controle. Essa religião, ou melhor, esses religiosos, os que "acham que é seu dever defender a Deus dos homens ímpios, condenando ou matando porque eles sabem melhor quem é Deus", como diz Laurence Freeman, OSB, na reflexão que publicamos hoje mais cedo, são de fato um escândalo.

"Quando as pessoas usam a religião pra fazer juízo de valor do outro e justificar menosprezá-lo, excluí-lo ou condená-lo (...) - que talvez nem seja a religiosidade mais comum, mas certamente é a mais barulhenta - essa religião, vivida dessa forma, é (...) detestável. E, com relação aos cristianismos, (...) a religião, praticada dessa forma, nada tem a ver com a Boa Nova que Cristo nos veio anunciar", observou uma de nossas colaboradoras em texto publicado aqui recentemente. "As pessoas não se tornaram anticristãs; pelo contrário, nossos modos de viver sempre refletem os valores cristãos fundamentais: a justiça, a liberdade, a igualdade, a dignidade das pessoas. O que as pessoas rejeitam são os gurus, os aiatolás, os ditadores religiosos que creem deter a verdade sobre Deus e sobre o mundo e que esmagam os fiéis com interditos, regras e leis que convidam à intolerância, ao ódio e ao desprezo da pessoa humana", diz o teólogo e sacerdote canadense Raymond Gravel.

Todavia, em vez de considerar que todos os religiosos se portam dessa forma "escandalosa", saibamos separar o joio do trigo; em vez de partir para o expurgo,
a priori, de todos os que professam alguma fé, trabalhemos juntos por uma maneira de viver a religião que saiba o seu lugar. Uma maneira de viver a religião que deixe a César o que é de César e cuide da seara que lhe cabe: a vocação para a saúde e a libertação, a vocação para ser ponte, portas e janelas abertas, ligação mais profunda consigo mesmo e com os outros seres humanos, que assim serão chamados de irmãos e iguais: nem abaixo, nem acima. Sem divisões, sem juízos e condenações, e sobretudo sem exclusões.


Segue o texto. Boa leitura!

“Seja realista, peça o impossível”. Volto mais uma vez à sugestiva frase dos muros do maio de 68 em Paris. Se considerarmos que o sentido de uma ação se esclarece a partir dos meios empregados para atingir um fim, a ação política contém uma ambiguidade peculiaríssima: seus fins são, via de regra, justificáveis ou não, do ponto de vista dos ideais, ideologicamente, como se costuma dizer, enquanto os meios o são instrumentalmente, a saber, do ponto de vista de sua capacidade de alcançar esses fins.

Sim é isso mesmo: os fins justificam meios. Se isso é discutível em termos da moralidade privada, é incontornável no âmbito do “ethos” da política. Creio que foi por isso que Aristóteles recusou o idealismo de Platão e sentenciou que ou o ideal é atingível para o comum dos homens, ou permanecerá apenas um ideal impossível. Considerar a política como arte do possível, entretanto, nem de longe significa cair no colo de um pragmatismo tosco, o tipo das “políticas do real” que amiúde vemos por aqui e por ali.

Indiscutivelmente, os governos Lula, e agora Dilma, reposicionaram um ideal até bem pouco tempo tomado como impossível: erradicação da fome e da miséria extrema em nosso País. A isso Dilma acrescentou o saudável ideal de País de classe média. É sobretudo em função desses fins supremos que se deve julgar a maior ou menor racionalidade das alianças, das estratégias político-administrativas e dos resultados. Ok.

O visível constrangimento do ministro Gilberto Carvalho pedindo “perdão”, pasmem, à bancada evangélica por declarações bastante razoáveis durante o Fórum Social em Porto Alegre, quando mencionou a necessidade de o Estado disputar ideologicamente a chamada nova classe C, (o que é que tem demais nisso?) não deve passar em branco. Aos poucos vemos um silencioso-ruidoso crescimento da intolerância religiosa mais obscurantista, alimentando-se justamente da laicização do Estado que os mesmos atores combatem.

Podemos estar criando corvos. Em plena aurora do século XXI, quando as clínicas de medicina reprodutiva fazem cotidianamente diagnóstico genético pré-implantação selecionando os melhores embriões para diminuir riscos na gravidez, uma ministra não pode nem mencionar a palavra aborto que um bispo a chama de “mal-amada”. Depois do STF julgar legítima a união homoafetiva, o belo vídeo do Ministério da Saúde tem que ser retirado do ar. Do perdão podemos passar à heresia.

O poder de barganha da bancada de Deus assombra o governo como um espectro. Até aqui os compromissos de segundo turno têm sido honrados. Mas é bom considerar que, quando a religião institucional triunfa, todos perdem. Exemplos não faltam. É tempo e hora de voltar a exigir o impossível, ampliando os fins, readequando os meios. É preciso não temer os religiosos. É sim preciso enfrentá-los no campo democrático, nos debates, nos referendos, nos plebiscitos, nos parlamentos. É hora de ver se o fim, nesse caso, realmente justifica o acovardado meio. Deus? Não temais. Ele não tem nada a ver com isso.

- Sandra Helena de Souza
sandraelena@uol.com.br
Professora de Filosofia e Ética da Unifor
Publicado originalmente no site do jornal O Povo, de Fortaleza, e reproduzido via Tantas Notícias

A respeito do episódio do "pedido de perdão" do ministro Gilberto Carvalho em 15 de fevereiro, vale a pena ler a coluna de Mauricio Dias, da Carta Capital (aqui), comparando a reunião com um procedimento inquisitorial - uma chocante deturpação do que é uma religiosidade genuinamente libertadora. (Visto no Tantas Notícias)

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