Foto daqui
Por Gabriel Ferreira [1]
Publicado originalmente no Boletim do Tempo Presente, edição de fevereiro (aqui)
O tema da homofobia insere-se em um dos fenômenos sociais mais relevantes do século XX e da história do Tempo Presente e, ainda assim, é freqüentemente negligenciado e ainda pouco estudado em todos os campos da ciência. Compreender os verdadeiros e amplos aspectos desta discriminação é um desafio antigo que só agora começa a receber sua merecida atenção. Ignorar a homofobia e não inserí-la às outras formas de discriminação, como o racismo e o sexismo (ainda que, ressalto, cada qual tenha suas particularidades), é uma maneira de perpetuar tal discriminação.
No que tange às relações internacionais (e a seu campo de estudo), a luta contra o preconceito e aversão à homossexualidade também se encontra em um período decisivo e até mesmo paradoxal: ao mesmo tempo em que cresce o discurso dos Direitos Humanos, de caráter universal e não limitado às fronteiras estatais, visualizamos um cenário de pouca pressão por parte dos Estados em cobrar o fim da chamada “State-sponsored homophobia” [2] (homofobia patrocinada pelos Estados).
Introdução – Caracterização de um preconceito
A fim de mostrar algumas das marcas da homofobia no século XX é necessário, antes de tudo, caracterizar o conceito. O termo homofobia precede o fenômeno por ele apresentado, sendo utilizado pela primeira vez em 1971 nos Estados Unidos pelo psicólogo George Weinberg. Ainda assim, por carecer de sua essência política e mais abrangente, o termo passou a ser utilizado coloquialmente e sociologicamente com significados que transpassavam sua origem epistemológica. Este artigo, em concordância com diversos autores e ativistas, entende homofobia como uma manifestação arbitrária (freqüentemente respaldada em instituições, como Igreja e o Estado) de ódio, aversão, violência ou rejeição da homossexualidade e/ou dos homossexuais, designando-os como inferiores ou anormais.
A homofobia atinge um grupo heterogêneo (homens, mulheres, adultos, crianças) vítima de preconceitos pela orientação sexual (a heteronormatividade atua como um dever-ser que marginaliza as atitudes e pessoas fora deste “padrão”), ou pelo conceito de gênero (comportamentos que escapam daqueles socialmente aceitos para “homens” e “mulheres”, como travestis, transexuais, homens que manifestam grande sensibilidade, mulheres que manifestam forte personalidade, etc.) [3].
O presente artigo busca, além de seu caráter exploratório no campo de estudos da homofobia e sua história, dar atenção ao período da perseguição aos homossexuais na Alemanha nazista, revelando suas causas, conseqüências e a retomada da importância do assunto. Para tal, serão utilizados diversos artigos sobre o tema geral da homofobia, sobre o período nazista e, também, duas obras cinematográficas e uma peça teatral. Em termos conclusivos e para mostrar a relevância no estudo do Tempo Presente, apresentarei, ao fim, um balanço simplificado sobre a situação atual do tema e como ela se insere na sociedade brasileira e nos movimentos de reivindicação dos direitos.
O “Holocausto Gay” - Homossexualidade em Berlim e o Parágrafo 175
A Berlim do início do século XX se apresentava como cosmopolita e gay, tendo fama internacional pela sua vida noturna e agitada. Este fato se contrastava com a já existência, ainda que de teor distinto à alteração nazista, do Parágrafo 175. O Parágrafo 175 do Código Criminal alemão, originário de 1871, já criminalizava a chamada “fornicação antinatural” [4], referindo-se ao sexo entre homens e à bestialidade, punindo-a com a prisão. Entretanto, político e socialmente a lei era posta em questão: não só florescia nas cidades alemãs, em especial em Berlim, uma “vida gay” com clubes, organizações e reconhecimento na Europa, como também existiram diversos fortes movimentos políticos com a intenção de derrubar a existência do Parágrafo 175. A capital alemã, no início do século XX, contava com quarenta bares gays, duas revistas de circulação freqüente sobre o tema, uma forte organização em favor dos direitos gays (Comitê Científico-Comunitário, Wissenschaftlich-humanitäres Komitee), além de abertura para publicidade de bailes de drag-queens nos periódicos (NORTON, 1975).
Evidentemente que tal abertura, além de relativa, estava de alguma forma condicionada à conjuntura das forças políticas. Antes de nos voltarmos às perseguições, prisões e outras formas de repressão, é importante analisarmos o porquê da perseguição nazista aos homossexuais. É essencial destacar que a motivação de tais atos deve ser buscada naqueles que a praticam, e não nas vítimas. Assim como atenta Francisco Carlos Teixeira da Silva, “é a anatomia do fascismo que explica seus crimes e não a das vítimas” (2000, p.150). Buscar a causa da homofobia no “comportamento homossexual” é, além de um equivoco, um preconceito em si.
A perseguição aos homossexuais não esteve, em primeiro momento, atrelado aos objetivos nazistas e presente nos discursos de Hitler. Um caso interessante foi o do parceiro político e líder da SA (Sturmabteilung), Ernst Röhm. Homossexual conhecido, Röhm foi alvo dos opositores do nazismo quando exposta sua homossexualidade e Hitler, ainda assim, em resposta, afirmou que “sua vida privada não pode ser objeto de escrutínio a menos que conflita com os princípios básicos da ideologia do Nacional Socialismo” [5]. A importância de Röhm como líder de um grupo grande e forte da Tropa de Assalto (SA) é, sem dúvida, a responsável pela sua defesa. Entretanto, o que destaco aqui é a inexistência, a princípio, de uma política direta de perseguição nazista aos homossexuais. A existência de um importante líder nazista e homossexual também era, na época, recebida pelos gays como segurança de que medidas mais restritivas não seriam adotadas. Röhm só foi assassinado, juntamente com outras duzentas pessoas, em 30 de junho de 1934, devido à sua ainda maior força e poder que foi tida por Hitler como ameaça e, também, à maior aproximação de Hitler com grupos do Exército e industriais militares.
A morte de Röhm foi um divisor histórico na perseguição nazista aos homossexuais. A partir deste momento, com a liderança das SS (Schutzstaffel) por Heinrich Himmler, Hitler ordenou que “se registrassem” os homossexuais e a Gestapo ficou responsável pela criação de “dossiês” de homossexuais e outros associais. Os gays foram, imediatamente, expulsos do Exército e do partido nazista. Coube a Himmler, entretanto, a motivação e estabelecimento de ações que pudessem efetivamente punir a homossexualidade.
O Parágrafo 175, revisado e ampliado, resultou num considerável aumento das acusações após 1934. Em 1933 foram condenados 853 adultos sob o Parágrafo 175, subindo consideravelmente para 8562 adultos condenados em 1938. Contribuiu para isso, além da maior atenção e iniciativa por parte de Himmler, a revisão nazista no código 175. Com ela, o dispositivo legal passava a incluir toda e qualquer forma de excitação e desejo sexual por parte de um ou mais homens, não se restringindo, como antes, à existência de penetração sexual. Nem ao menos o contato físico era necessário. Tal subjetividade no parágrafo permitia, é claro, arbitrariedade na sua aplicação. Assim como muitos gays não foram presos e levados aos campos de concentração sob a acusação de homossexualidade, há relatos de prisioneiros heterossexuais que receberam o triângulo rosa, tanto pela facilidade da condenação quanto pela vergonha que a permeava.
É certo, também, que a subjetividade criava uma forte tensão entre a condenação da homossexualidade e a apreciação da beleza masculina, da masculinidade, da virilidade e até mesmo da união e proximidade de homens em torno das questões nacionais. Criava-se, portanto, uma forçada separação entre o companheirismo (e a exaltação da masculinidade) e o homoerotismo.
A perseguição: da propaganda nazista ao “perigo homossexual”
A tarefa de identificar homossexuais se tornou um empecilho para os nazistas. Além de muitos se enquadrarem no tipo-ideal ariano, tido como superior para os nazistas, era extremamente difícil provar, judicialmente, as práticas sexuais dos cidadãos. Parte deste problema foi resolvida com a já mencionada revisão do parágrafo 175, mas os nazistas precisaram de uma ajuda fundamental para a localização e condenação destes ‘associais’: as denúncias civis. Resultado de uma política de educação e propaganda por parte do Partido Nazista e de uma já existente intolerância para com os homossexuais, as denúncias se tornaram o mais eficiente meio de apreensão.
Diferentemente dos opositores políticos - que podiam ser encontrados em listas partidárias, abaixo-assinados e organizações -, os homossexuais constituíam uma categoria heterogênea e esparsa. Evidentemente que clubes e locais noturnos conhecidos foram perseguidos e fechados, dando lugar às faixas vermelhas do Partido Nacional Socialista. Exemplo marcante foi o ocorrido com o Comitê Científico-Comunitário (Wissenschaftlich-humanitäres Komitee), considerada a primeira organização pública científica e social a favor dos direitos de homossexuais e travestis, que foi destruída e queimada pelos nazistas. Entre as chamas e a intolerância foram destruídos 20.000 livros e jornais, 5.000 fotografias, documentos e listas com nomes de pessoas a favor do fim da exclusão dos direitos gays. Seus maiores organizadores, assim como todos os relacionados ao Instituto, foram perseguidos pela Gestapo.
A propaganda e o discurso nazista em prol da discriminação de homossexuais, oficializados com a criação do Gabinete Central do Reich para o Combate à Homossexualidade e ao Aborto, mantinha seu argumento em três pilares, posteriormente discorridos nesta seção: a) a idéia da homossexualidade como um entrave à reprodução da superior raça ariana; b) o caráter “amoral” e “associal” dos gays; c) a homossexualidade como uma raça distinta ou uma patologia.
A homossexualidade representava um entrave no objetivo de eugenia ariana, já que a prática sexual entre homens, e entre mulheres, de nada contribuía para a busca da raça pura superior. Este aspecto está no cerne da violência e perseguição aos homossexuais no período nazista. O Diretor Legal do Reich, Hans Frank, afirmou, em 1938, que a “atividade homossexual significa a negação da comunidade como deve ser, constituída para a raça não se extinguir. É por isso que o comportamento homossexual, em especial, não merece misericórdia” [6]. Tida como uma peste, o comportamento gay devia ser eliminado para resguardar a superioridade ariana.
Enquadrado na questão da moralidade estava também o dito “comportamento homossexual” (certamente estereotipado, mas tido como verdade nos discursos nazistas), ligado a palavras como “pederastia”, “sodomia”, “depravado”. Associando as práticas sociais com o binarismo marcante do masculino/feminino os nazistas enxergavam uma falha social nos homens efeminados. Explica-se, assim, a ainda maior violência para com homossexuais “passivos”, travestis e drag-queens. A fuga das características masculinas (força, virilidade, frieza) e adoção de características femininas (sensibilidade, histeria, nervosismo), como estabelecidas pelo padrão hitlerista, eram, portanto, tidas como uma afronta à moralidade alemã. No caso de drag-queens e travestis este perfil “associal” se tornava ainda mais claro (GILES, 2001).
Havia polêmica por parte dos nazistas quanto à possibilidade ou não de readequação dos homossexuais à sociedade. A questão central era: encarariam a homossexualidade como doença (patologia que necessitava de explicações científicas) ou como um desvio de comportamento?
No primeiro caso, as medidas mais adequadas seriam o extermínio e a busca científica por esta patologia. Em alguns casos, especialistas médicos se valerem de diversos métodos para curar a homossexualidade. O Dr. Vaernet, por exemplo, injetou substâncias hormonais, como testosterona, em homens homossexuais para verificar se haveria mudança em seu comportamento sexual. Quando verificava a ineficácia, buscava a castração (PLANT, 1986).
Já quando a homossexualidade era vista como um desvio de comportamento, passível de correção, as ações recomendadas eram a punição e criação de medidas que pudessem garantir a “normalização” do indivíduo. Muitos homossexuais foram obrigados a viver uma vida de mentira em uma família convencional, com esposa e filhos, para não levantar suspeita nazista. A questão das lésbicas se insere perfeitamente neste contexto da homossexualidade como desvio. A não inclusão das mulheres homossexuais sob o Parágrafo 175 era justificada pela possibilidade de fertilidade das mesmas. Assim, elas ainda poderiam contribuir para o objetivo da procriação da raça ariana.
A máquina publicitária nazista tentava, enfim, por em flamas uma já existente homofobia, levando uma imagem do homem homossexual como “velho e sujo”, atrás de corromper jovens adolescentes (GILES, 2001).
O horror nazista: Pierre Seel e Gad Beck
Para compreendermos as conseqüências e horrores da punição nazista aos homossexuais precisamos ter em mente as já explicadas mudanças nos dispositivos legais, as maneiras de identificação e os argumentos por trás das medidas. O estudo dos homossexuais como vítimas do Holocausto não deve ser limitado ao número de mortos ou condenados pelo artigo 175. É preciso entender e conhecer os horrores vividos por estas vítimas, não deixando morrer suas memórias (negligenciada pelo Estado alemão pós-nazista, como posteriormente será explicado). A importância de conhecer as histórias das poucas vítimas ainda vivas é claramente visível no documentário “Parágrafo 175”, de 2000, dirigido por Rob Epstein e Jeffrey Friedman, narrado por Rupert Everett.
O documentário é formado por uma série de entrevistas, intercaladas com imagens e informações, com algumas vítimas homossexuais do Holocausto. No ano 2000, menos de dez destes sobreviventes ainda estavam vivos, e somente seis aceitaram contribuir com sua história para o documentário. Dentre eles, me atentarei aos depoimentos de Pierre Seel e Gad Beck.
Pierre Seel, sobrevivente e autor do importantíssimo livro de memórias “Pierre Seel, Deportado Homossexual” (no original em francês “Moi, Pierre Seel, déporté homosexuel”) demonstrou enorme angústia e incômodo em tratar do tema. Trata-se de um claro exemplo de como o descaso de anos deixa marcas profundas nas vítimas. Além dos maus tratos que recebeu, Seel viveu no silêncio até 1981, obrigado a formar uma família e agir “como uma sombra”, em suas palavras, já que, como será explicado, os homossexuais condenados sob o parágrafo 175, além de não terem sido reconhecidos como vítimas do Holocausto, podiam ser presos até a revogação parcial do dispositivo 175, o que ocorreu somente em 1994.
O nome de Pierre Seel estava em uma das “listas rosa” da Gestapo (lista com os nomes dos supostos homossexuais, obtidas tanto pela polícia quanto por denúncias anônimas) o que levou a sua prisão em 1941. Lá, antes de ser enviado ao campo de concentração de Schirmeck-Vorbrück, foi torturado e violentado por um pedaço partido de madeira, entre risos e piadas a respeito de sua homossexualidade. Nas palavras de Seel, retiradas do documentário “Parágrafo 175”:
Assim, agora vê porque não falei em 40 anos? Estou “90% deficiente” desde a guerra. Meu traseiro ainda sangra, até hoje! Os nazistas colocaram 25 centímetros de madeira em meu traseiro! Posso falar disso? Isso é bom para mim? Isso é muito para os meus nervos! Não posso seguir com isso. Estou envergonhado da humanidade. Envergonhado!Como se não bastassem os horrores vividos nesta experiência, Seel presenciou também a morte de seu amante na adolescência e amigo, Jo, no campo de concentração. Como conta em seu livro, os nazistas ordenaram que um quadrado fosse ordenado com filas e, no centro, dois membros da SS trouxeram um jovem, reconhecido instantaneamente por Seel. Despido e com uma lata na cabeça (para ampliar seus gritos), o homem foi ferozmente devorado por cães pastores alemães. Pierre Seel assistiu quieto, acompanhado somente por suas lágrimas e pelas centenas de testemunhas.
Desde esse dia, continuo a acordar freqüentemente a meio da noite aos gritos. Durante mais de cinqüenta anos essa cena repetiu-se incessantemente na minha mente. Nunca esquecerei o bárbaro assassinato do meu amor — em frente dos meus olhos, dos nossos olhos, porque houve centenas de testemunhos. (SEEL, 1994)Pierre Seel viveu com sua mulher por 28 anos, na França, em uma relação marcada pelo silêncio e pela confusão em esconder sua sexualidade, além do sentimento de incompetência no papel de pai de dois filhos. Somente em 1979 falou pela primeira vez sobre suas memórias e, em 1989, visitou os campos de concentração nos quais viveu suas piores experiências. Contou seu testemunho em 1981 para uma revista gay e em 1994 lançou o livro “Pierre Seel, Deportado Homossexual”, aparecendo freqüentemente na imprensa francesa. Viveu por aproximadamente doze anos com seu companheiro Eric Feliu, que trabalhava com criação de cães. Seel não só expôs um sofrimento somado a um silêncio de décadas, como também superou o seu trauma por cães; simbolicamente o início de uma vida sincera, apto e à vontade para amar seu companheiro.
Gad Beck, nascido em 1923, também retratou seus horrores no livro “An Underground Life: Memoirs of a Gay Jew in Nazi Berlin” (2000). Dentre as histórias mais marcantes, Beck retrata o dia em que, aos 19 anos, usando uniformes da Juventude Hitlerista, se dirigiu à delegacia onde estava detido seu amante, em uma tentativa desesperada de libertá-lo do destino nos campos de concentração. Fingindo pertencer à juventude do partido, Becker conseguiu convencer um oficial a libertar o preso temporariamente, prometendo-o trazer de volta. Quando já fora do departamento policial, seu amante, sem titubear, lhe disse: “Gad, não posso ir com você. Minha família precisa de mim. Se eu abandoná-los, nunca poderei ser livre”. Beck relembra que, “naqueles segundos, vendo-o ir embora, eu amadureci” [7].
O triângulo rosa: homossexuais nos campos de concentração
Segundo os dados mais modestos, cerca de 20.000 homossexuais foram enviados ao campo de concentração. Entretanto, há grande debate em relação a esta estimativa. O número de homossexuais condenados e presos pelo parágrafo 175, de acordo com os dados oficiais, chegou a quase 50.000, entre 1933 e 1942. Estão fora deste número as vítimas usadas para testes científicos, os não-civis homossexuais, as vítimas de dados destruídos pelos nazistas e os diversos casos em que nenhum registro oficial foi realizado.
Também para mostrar a controvérsia nos números, autores como Rictor Norton demonstram que, segundo os dados de Rudolph Hoesss, líder da SS e Rapport-führer (líderes responsáveis por reportar ao Führer os dados e acontecimentos nos campos de concentração), foram assassinados, somente sob sua supervisão, 15.000 homossexuais. Como diz Rictor Norton (1998), “as estimativas variam entre 430.000 vítimas (o que provavelmente seria muito) e 10.000 (o que provavelmente é muito pouco)”.
Estatísticas e depoimentos de homossexuais e heterossexuais relatam que os prisioneiros com o triângulo rosa (os homossexuais eram identificados por um triângulo rosa em seu peito, assim como os judeus com suas estrelas amarelas) eram sistematicamente alocados para a realização dos piores trabalhos e, somado a isso, eram violentados e reprimidos de maneira mais dura tanto pelos outros presos quanto pelos oficiais nazistas. Assim, segundo Ruediger Lautmann, os prisioneiros com triângulo rosa tinham uma taxa de mortalidade de 60%, enquanto os prisioneiros políticos a tinham em 41% e as Testemunhas de Jeová em 35%.
As experiências vividas por dois homossexuais em um campo de concentração nazista são bem representadas na aclamada peça de Martin Sherman, “Bent”, realizada também em filme pelo diretor Sean Mathias, em 1997, estrelado por Clive Owen e com participação de Mick Jagger. Na obra, Max e seu parceiro Rudy são capturados pela Gestapo e, no trem, vivem um pesadelo. O personagem Rudy, descrito como mais afeminado, é logo identificado como “depravado”. Evidencia-se, aí, a arbitrariedade na aplicação do código 175. O personagem principal, Max, é alertado por Horst, já marcado pelo triângulo rosa por haver assinado uma lista em favor dos direitos gays, que os prisioneiros homossexuais recebiam os piores trabalhos e logo morriam, sugerindo-o para não reconhecer-se como gay. Assim, após negar conhecer seu companheiro, torturado e morto pelos nazistas, Max consegue receber a estrela amarela. A história também retrata os trabalhos destinados aos “depravados”: os mais perigosos, em britadeiras e sob tortura. No campo de concentração, entre o horror e a vigia dos oficiais nazistas, Max estabelece uma relação amorosa com Horst, ainda que sem qualquer contato físico e olhares escassos. Encontram um jeito de sobreviver àquela loucura, através da mesmíssima coisa que os colocaram alí: o amor. No fim, a peça se constrói como uma belíssima e forte história, capaz de comover e ensinar.
O descaso: prolongando o sofrimento
Os prisioneiros homossexuais nos campos de concentração não reconheceram o fim de seu horror com o fim da Guerra. Como não foi derrubado o Parágrafo 175, estes ainda eram classificados como criminosos. As reparações e pensões do Estado para as vítimas do Holocausto foram negadas aos homossexuais perseguidos. Homossexuais poderiam ser presos, inclusive, por “ofensas repetidas”.
Somente na década de 70 e 80 que o tema ganhou certo destaque na historiografia central, com as autobiografias lançadas pelas vítimas gays da perseguição nazista, produções literárias como “Bent”, e estudos sobre a homofobia nazista e a destruição dos movimentos LGBT na Alemanha pré-nazista. A partir da década de 80, algumas cidades, como San Francisco, Berlin e Amsterdam ergueram memoriais para lembrar os milhares de homossexuais mortos, presos e torturados pela política nazista.
O Parágrafo 175 sofreu lentas alterações nos territórios alemães no período pós-nazista. Retomando ao texto anterior a alteração nazista, que tornava subjetivo o dispositivo legal, foram criminosas as relações sexuais de coito entre homens de qualquer idade até 1968. Nesta data o crime foi limitado a sexo entre jovens menores de 18 anos. Na Alemanha Oriental foi abolido por completo em 1988, enquanto na Alemanha Ocidental somente em 1994.
Assim, claramente se estendeu a violência e discriminação, legal ou não, para com os homossexuais alemães. As vítimas do horror nazista foram obrigadas a buscarem uma adequação ao estilo de vida “normal” e, pelo descaso com suas memórias, a uma vida de silêncio e negação. Foi somente em 2002 que o governo alemão lançou um pedido oficial de desculpas às vítimas homossexuais. Um reconhecimento tardio, muito tardio, que demonstra, infelizmente, a atualidade da discriminação homofobia.
Conclusão
A perseguição, condenação e violência para com homossexuais foi um dos temas mais marcantes do período nazista e, ainda sim, não é um dos temas mais pesquisados e estudados da historiografia do período. Diversos fatos contribuíram para isso, como o descaso e a decisão de não reconhecimento dos homossexuais como vítimas do Holocausto, a permanência do parágrafo 175 nos dispositivos legais alemães, e o prejuízo documental gerado por esta “demora” no reconhecimento da importância do tema. Foi somente nas últimas décadas do século XX, principalmente na década de 80, que o tema foi tratado com maior atenção por historiadores e sociólogos. Existe, ainda hoje, uma carência em relação ao tema, ainda que seja indiscutível o avanço das últimas três décadas na produção, e disseminação, do conhecimento.
A atualidade do tema é claríssima: a homofobia que hoje mata um homossexual a cada dois dias, somente no Brasil (e em casos documentados), tem raízes bem semelhantes, e por vezes se utiliza dos mesmos argumentos, daquela homofobia (tida as vezes como bem distante) do princípio do século. Conhecer e emocionar-se com as histórias deste horror nazista é um alerta em um tempo onde tentamos caminhar para a democracia e inclusão de mais direitos a grupos historicamente fragilizados. Não podemos nos enganar com algumas conquistas (ainda que sem dúvida importantes), como a decisão do Supremo Tribunal Federal do Brasil em reconhecer e igualar as uniões homoafetivas e reconhecê-la como unidade familiar. Na Alemanha, em seu período anterior ao advento absoluto do nazismo, houve também diversas conquistas, movimentos organizados e avanços de direitos. Ainda assim, os homossexuais assistiram sua própria perseguição, alguns como Gad Beck relutando-se a acreditar, em seu próprio território.
A luta pelos direitos gays deve, sim, estar apoiada em fatores históricos, mas não deve se limitar a tal. A história deve ser um instrumento para um entendimento que possibilite a luta não ingênua do agora. As organizações em defesa dos direitos LGBT (Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais) devem ter mobilização constante e a sociedade em geral deve compreender que se trata de uma luta ainda maior. É uma luta por uma democracia (um pouco mais) plena, por direitos e pelo respeito, pela inclusão e pela não-violência.
A história ajuda a entender porque devemos buscar e abraçar as reivindicações dos LGBT, independentes de nossa orientação sexual. Quando lutamos contra a homofobia, quando buscamos a criminalização da mesma, quando buscamos o reconhecimento das uniões homoafetivas em todas as esferas do poder, estamos, ao fim, lutando por uma sociedade sem o sofrimento de Pierre Seel, Gad Beck e inúmeros outros. Estamos lutando pelo fim dos triângulos rosa.
E se hoje milhões de pessoas em diversas partes do mundo marcham em alegria e pelo respeito, enquanto milhares marcharam em direção aos campos nazistas, acompanhados pelo sofrimento, é mesmo com orgulho que devemos caminhar. Um orgulho que não seja ingênuo, mas que não nos deixe esquecer a felicidade, o amor e o respeito, que são os mais importantes. Quando observamos jovens vestindo os triângulos rosa ao inverso notamos que a História ensina. Assusta. Mas, sem dúvida, constrói.
Notas
1. Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Assistente de pesquisa do Laboratório de Estudos da América Latina (LEAL) e bolsista do Núcleo de Estudos em Teoria Política (NUTEP).
2. Termo utilizado freqüentemente pela organização internacional ILGA (International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association) para designar países onde existam leis de criminalização de atos sexuais entre adultos do mesmo sexo. Utilizado também para caracterizar a forma institucionalizada da discriminação homofóbica.
3. Recomenda-se, para uma mais larga compreensão do conceito de homofobia e suas implicações, assim como a relação com outras discriminações, o livro “Homofobia – história e crítica de um preconceito” (Borrillo, Daniel; Autêntica Editora; 2010)
4. Versão do Parágrafo 175 de 15 de maio de 1871, em inglês: “§ 175 Unnatural fornication. Unnatural fornication, whether between persons of the male sex or of humans with beasts, is to be punished by imprisonment; a sentence of loss of civil rights may also be passed.”
5. Em inglês: "His private life cannot be an object of scrutiny unless it conflicts with basic principles of National Socialist ideology."
6. Em inglês: “Homosexual activity means the negation of the community as it must be constituted if the race is not to perish. That is why homosexual behaviour, in particular, merits no mercy.”
7. Disponível em: http://www.ushmm.org/wlc/en/idcard.php?ModuleId=10006666
Bibliografia
GILES, Geoffrey. Why bother about homosexuals? Homophobia
and Sexual Politics in Nazi Germany. 2001. Em: http://www.ushmm.org/research/center/publications/occasional/2002-04/paper.pdf. Acesso em: 05 Julho 2011.
JOHANSSON, Warren e PERCY, Willian. Homosexuals in Nazi Germany. Em: http://motlc.wiesenthal.com/site/pp.asp?c=gvKVLcMVIuG&b=395203. Acessado em: 04 Julho 2011
LAUTMANN, Ruediger. Gay prisoners in concentration camps as compared with Jehova's Witnesses and Political Prisoners. Em: http://www.jewishvirtuallibrary.org/jsource/Holocaust/gaycomp.html . Acesso em: 06 Julho 2011.
MUELLER, L. Christine. The other side of the Pink triangle: still a Pink triangle, 2004.
NORTON, Rictor. "One day they were simply gone": The Nazi Persecution of Homosexuals. 1999. Em: http://rictornorton.co.uk/nazi.htm. Acesso em: 02 Julho 2011
PLANT, Richard. Pink triangle: the nazi war agaisnt homosexuals, 1988.
SILVA, Francisco Carlos Teixeira. Os fascismos. in: O século XX / organização: Daniel Aarão Reis Filho, Jorge Ferreira, Celeste Zenha – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. Volume 2. O tempo das crises: revoluções, fascismo e guerras.
UNITED STATES HOLOCAUST MEMORIAM MUSEUM. Nazi persecution of homosexuals 1933-1945. Em: http://www.ushmm.org/museum/exhibit/online/hsx/. Acessado em: 04 de Julho 2011
Ferreira, Gabriel. Marcas da Homofobia no Século XX: do Holocausto à homofobia de hoje. Boletim do Tempo Presente, Ano 7, n° 1, 2011. Tweet
2 comentários:
Excelente postagem. Esclarecedora. Obrigado!
Que bom que você gostou, Rafa Zveiter. Nós é que agradecemos pelo seu feedback. Aliás, somos grandes fãs do seu trabalho com o Douglas Gamma no Entre Nós... ;-)
Grande abraço!
Equipe DC
Postar um comentário