Escultura: Nicholas Galanin
Misericórdia aos algozes que mataram brutalmente 6 milhões de judeus? Compaixão aos torturadores que tiraram a vida ou removeram a dignidade do corpo e da alma de muitos que ousaram lutar contra as ditaduras? Perdão aos estupradores de crianças e aos pederastas que abusam dos meninos? Renúncia, sem sofrimento, à condenação dos culpados? Feito deuses terrenos, promovemos a remissão dos pecados e seguimos adiante, resolutos, como se o mar nao mais houvesse? Há malefício ou crime hediondo que não seja redimido pelo perdão de homens e mulheres? Com o perdão ou o seu avesso, conviveremos com a culpa ou a penitência, se não a religiosa, mas no mínimo a da consciência? Encarar o gesto como bondade ou como patologia? Enfim, existem os imperdoáveis?
À inquietude de tais perguntas, eis o convite à conversa feito ao Padre Júlio Lancellotti, sacerdote católico, formado em pedagogia e teologia, membro da Pastoral da Menor da Arquidiocese de São Paulo, Vigário Episcopal do povo de rua, pároco da pequena Igreja São Miguel Arcanjo, na Mooca, Zona Leste de São Paulo. Ele próprio um potencial porta-voz daqueles que podem se declarar como impossibilitados de conceder o perdão a seus algozes - em 2007, Lancellotti percorreu seu calvário, vítima de uma insidiosa campanha de difamação e extorsão, ao ser envolvido injustamente numa acusação de pedofilia. Engano puro. Na entrevista a seguir, ele explica, defende e justifica o perdão. Uma forma de justiça espiritual, para livrar-nos do mal, amém, em que a bondade substitui a vingança e a memória supera o esquecimento.
A reportagem e a entrevista é de Luiz Cesar Faro e Rodrigo de Almeida e publicadas na revista Insight Inteligência, ano XIV, nº 53.
Eis a entrevista, reproduzida via IHU, com grifos nossos.
O perdão dos grandes delitos, das barbáries, a capacidade de perdoar a tudo e a todos não seria uma anormalidade psicológica?
Oscar Wilde dizia que é fácil falar do perdão até que você tenha de perdoar. Pensemos: o Holocausto tem perdão? Os genocídios cometidos na América contra nações indígenas têm perdão? O que significa perdoar esses crimes? O papa João Paulo lI, em 2000, ano santo do milênio, fez vários pedidos de perdão. Eu lhes digo: perdoar não é esquecer. Perdoar é lembrar. Muitas pessoas me dizem: "Padre, eu não esqueço o que fizeram de mim". Eu respondo: "Claro, você não esquece porque não sofre de amnésia". Como não esquecemos momentos como o Holocausto. Perdoar não é esquecer, repito, perdoar é lembrar para que isso não aconteça mais. Perdoar o Holocausto não significa dizer, portanto, que não faz mal, que tudo está bem. Não, significa dizer que nós lembramos e que não queremos sua repetição.
Mas o perdão não comporta algum tipo de absolvição?
A absolvição não significa a possibilidade de se cometer novamente aquele erro. Por exemplo, o que significa perdoar um aborto? Significa que a pessoa não vai mais cometê-lo. Como perdoar o Holocausto significa dizer que não permitiremos a reprodução desse mal. A absolvição é isentar as pessoas da responsabilidade. O perdão é absolvição se leva à irresponsabilidade. Mas perdoar não é tornar a ofensa irresponsável. "Não faz mal que você cortou meu braço, eu lhe perdoo". Ou: "Não faz mal que yocê tenha destruído minha vida". Longe disso. O perdão significa tirar da mão de quem ofende o instrumento da ofensa. O que é perdoar um ditador como foi Augusto Pinochet no Chile? Ou Anastásio Somoza na Nicarágua? Ou Jorge Videla na Argentina? Ou aqueles que torturaram na ditadura militar brasileira? Perdoar aí é justamente não esquecer, é resistir, é responsabilizar, é não produzir um mal igual. Não é absolver.
Parece tênue a fronteira entre o perdão e a absolvição, entre o esquecer e o perdoar. Mas os sobreviventes dos campos de concentração não somente não esqueceram o holocausto como não perdoaram seus algozes. Há circunstâncias em que o perdao é impossível?
Não podemos confundir o não esquecer com o não perdoar. O perdoar significa não aceitar aquela violência. "Tudo bem, vocês mataram 6 milhões de judeus, milhares de cristãos como o Maximilano Kolbe (aponta um quadro na parede), reconhecido na Igreja como santo, a Santa Edith Stein, reconhecida como uma judia que se tornou cristã e foi exterminada numa câmara de. gás, o Tito Brasman, o Carlos Leisner, enfim, os milhões de judeus e milhares de cristãos mortos no Holocausto". O perdão é para que não se produza um novo Holocausto. Ele não é doce nem é dócil, por mais reconfortante que possa ser para quem perdoa e, notadamente, é perdoado. Mas as lembranças das barbáries, opróbrios, crimes e ignomínias são importantes para afastar de nós essas enfermidades.
E a absolvição?
Não há absolvição num caso como esse. Como é possível absolver alguém que exterminou e cometeu um genocídio? Na visão cristã, o perdão último só compete Deus. E eu não sou dono dos juízos de Deus. Se alguém vem a mim e confessa que deu um desfalque de milhões na empresa e pede a absolvição, eu direi para ele: "Você acredita e deseja a absolvição? Quer o perdão de Deus? Então tem de devolver o dinheiro." A absolvição requer restaurar o dano, restaurar a justiça, restaurar o erro cometido. Se alguém vai a um padre e diz que matou alguém e agora outra pessoa está presa em seu lugar, e pede a absolvição, eu lhe digo: "A absolvição será dada se antes você for à Justiça se apresentar como culpado”. E responderá na Justiça pelo crime que cometeu, caso contrário não terá absolvição. Não posso dar uma absolvição para uma pessoa que matou, outra está condenada no lugar dela e ela fugir da Justiça. O Papa João Paulo II visitou Mehmet Ali Agca na prisão, mas não foi à Justiça pedir que ele fosse solto. A questão religiosa não interfere na Justiça. Algum tempo atrás começaram a surgir nos processos referências à conversão religiosa de réus e, por conta dessa conversão, propondo a redução ou anulação da pena. No início alguns juízes embarcaram nisso, mas logo perceberam que isso poderia ser uma manipulação religiosa. Nos segredos da confissão, eu não posso ir ao delegado e informar: “Eu sei quem é o assassino de Fulano”. Não se seu souber pela confissão.
Ainda que a justiça o intime?
O Código Penal mostra que ministro religioso no seu exercício não é obrigado a dar as informações que sabe. Eu vivi uma situação dessas, num processo contra policiais que haviam matado menores. No julgamento fui arrolado como testemunha e me questionaram: eram meninos de rua? Usavam drogas? Eram delinquentes? Eu solicitei o artigo do Código que me faculta o direito de permanecer em silêncio. Um padre, um pastor, um rabino, um xeque, nenhum ministro religioso é obrigado a falar na Justiça. Mas também direi para a pessoa que se confessou e pediu seu perdão que ela tem de restaurar o dano que fez. Há uma história muito famosa creditada a São Filipe Neri. Ia até ele uma pessoa que difamava outras. O padre perdoava. Ela difamava, ele absolvia, ela difamava, ele absolvia. Até que, numa ocasião, ele lhe disse: "Sua penitência será subir na torre da Igreja em Florença e depenar uma galinha". Ela foi à torre e depenou a galinha. Quando voltou, perguntou: "Cumpri a penitência?" Ele lhe respondeu: "Agora você vai lá e recolhe as penas da galinha". Era possível recolhê-las? Claro que não. Pois o padre lhe disse: "É impossível você recolher todo o dano que faz falando contra os outros, tirando a honra das outras pessoas. Então tem de pensar que o que você faz é como depenar as penas da galinha na torre da igreja. Não há como recolher as penas".
Isso é surpreendente, porque a minha visão de leigo pressupunha que a igreja, em nome de Deus, perdoaria quase que obrigatoriamente. Que não seria um perdão condicionado.
O perdão não é uma obrigação, e sim um ato de amor. E é um ato de reconciliação. Estar reconciliado significa estar novamente unido. E para você estar reconciliado é preciso reparar o mal que fez. A Igreja não se esquece de São Maximiliano Kolbe: o fato de ele ser considerado um santo e um mártir significa dizer que não vamos esquecer o que fizeram com ele. As igrejas mostram Jesus crucificado para dizer: a crucificação de Jesus foi um assassinato, e nós reverenciamos e adoramos um Deus que morreu assassinado, em nome daquilo que defendeu - a vida dos pobres, dos fracos, dos que sofrem. O perdão cura. O perdão tem de curar. O perdão pode ser uma responsabilidade histórica ou pode ser uma responsabilidade pessoal. Você não pode tirar a responsabilidade dessa pessoa pelo mal que fez. Quantos não criticam os direitos humanos? Dizem: "Mataram o meu filho, cadê o pessoal dos direitos humanos? Eles não vêm me consolar?" Essas pessoas não entendem que os direitos humanos estão trabalhando para que ninguém seja assassinato e para que o assassino não perca sua responsabilidade, mas não seja castigado da mesma forma que abominamos. Você não pode destruir ninguém, e esse ninguém o inclui também. Eu não posso destruí-lo também. E não posso tirar dele a responsabilidade pelo que fez.
Existe uma confusão sobre a passagem bíblica do "olho por olho, dente por dente".
A Lei de Talião foi um grande progresso jurídico na época. Quando ela surgiu, não era um olho por um olho. Eram os dois olhos por um olho. Era a vida por um olho. Na época, muitos reclamaram, chamaram-na de absurdo, porque achavam que era necessário acabar com a pessoa, destruí-la inteira. A lei exigiu que a cada olho perdido, um olho perdido de volta, e não uma vida inteira. Hoje nós a consideramos muito cruel, mas na época foi um progresso nos direitos humanos, um freio na vingança desmedida. E Jesus vem à frente para trazer um conceito novo, que supera tudo isso: a misericórdia, a compaixão, que traz o perdão como possibilidade de vida nova. A vida nova é não ter que matar ninguém, nem ofender, nem destruir. Por isso Jesus disse: "Quem chamar seu irmão de patife está condenado. Aquele que chamar seu irmão de tolo será condenado". Jesus propôs uma radicalidade: nenhum grande mal começa sem antes ter sido pequeno. Uma pessoa chega a matar ou destruir outra porque não consegue controlar o ódio que sente. É preciso, portanto, trabalhar esse sentimento. Um dia falei para as presas na cadeia: "Vocês perderam a liberdade, não podem sair daqui, mas podem não jogar água quente em cima da companheira. Essa liberdade vocês não perderam. Perderam a liberdade de ir e vir, mas não a de não usar as pessoas mais fracas na prisão, a liberdade de não usar a sexualidade para estuprar outra presa, a liberdade de não enfiar o estilete na barriga da outra. Essa liberdade vocês ainda têm."
Em que medida o perdão é mais um conforto a si próprio do que um ato de misericórdia, bondade, compaixão em relação ao outro? No fundo, não é um ato egoísta, narcísico?
Quando vemos alguém sofrendo com uma dor, damos um remédio e essa dor passa, não sentimos um alívio por ela? Não nos sentimos aliviados também? Quando seu filho está com febre e você dá um remédio que passa essa febre, você não se sente aliviado também?
Sim, mas nesse caso, existe um afeto pelo outro. Às vezes o que existe é só a aversão.
É verdade, ninguém é obrigado a ter afeto, nem a gostar de todos. Somos obrigados a respeitar a todos, mas não de gostar. Amar é um ato de liberdade. É mais do que um sentimento. É uma decisão. O Papa Pio XII dizia que o amor mais perfeito é o amor político, porque é o amor que faz o bem para todos. Uma norma política é um amor que atinge a muita gente, independentemente de você gostou ou não de cada uma. Por isso que, aqui em São Paulo, lutamos por políticas públicas para a população de rua. Trata-se de um ato de amor porque atinge indistintamente aqueles de que gosta e aqueles de quem não gostamos. Quando se reconhece o direito dos quilombolas, isso é independente de se gostar deles ou não. Mas é um ato de amor para todos.
Mesmo que as motivações sejam artificiais ou por interesse. O resultado continua sendo um ato de amor?
Vou dar um outro exemplo: as medidas tomadas em benefício dos portadores de necessidades especiais, dos idosos ou dos adolescentes autores de infração. Os idosos têm o Estatuto do Idoso. Os adolescentes têm o Estatuto da Criança e do Adolescente. Como é difícil para a sociedade lidar com o adolescente infrator. Há uma lei no país que dá imputabilidade até os 18 anos. A vontade política e legal do país se manifestou dessa forma, independentemente se você gosta ou não desses adolescentes. Na Justiça, o réu tem direito a uma defesa. Podemos estar com uma bruta raiva, participando do julgamento, mas ele terá direito à defesa, ao contraditório.
O direito do perdão tem um paralelo, portanto. Com o direito da defesa. Ambos têm de ser responsabilizados e eventualmente condenados.
O perdão é um passo a mais. Mas existe na Justiça algo semelhante. No Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo, há a figura da remissão. A remissão é praticamente um termo religioso, que é a remissão da falta. Na missa, o padre fala na consagração na remissão dos pecados. A remissão é o perdão, um perdão que pode ir até o heroísmo. O estatuto prevê a remissão. Um jovem que entrou no supermercado e pegou um iogurte, mas tem estrutura familiar, está na escola, ou até trabalhando, pode receber do promotor a remissão. Mas, como no termo religioso, é um perdão regrado. O Direito Canônico da Igreja prevê o pecado do aborto, porque pecado é tudo aquilo que atenta contra a vida. Eu não ofendo a Deus se o xingo, mas ofendo o meu irmão se atento contra a vida. Recentemente o psicanalista Jorge Forbes disse que a compaixão, a misericórdia, é uma irresponsabilidade. Ora, a compaixão é sofrer com o outro sem ser o outro. A misericórdia é agir com o coração diante da miséria do outro. Gosto muito dele, mas acho que precisaria trabalhar melhor o conceito. O perdão, como eu lhes disse, não irresponsabiliza. É justamente o contrário. O perdão responsabiliza, significa dizer: "Você fez o mal, e esse mal foi tão grave que o perdão que lhe cura é não fazer mais esse mal, é lhe reabilitar para fazer o bem, é curar essa ferida que o levou a fazer o mal". Em 1978 eu trabalhei numa casa da Febem, com bebês abandonados. Lá fomos ver a gênese da infração. A criança que chorava e era atendida não chorava mais. A criança que ficava presa no berço todo o tempo segurava na grade e batia o peito ali. E se feriam. Pareciam punir-se. Muitas vezes a infração começa assim. Portanto, temos de ver que temos nossa responsabilidade de tornar as pessoas insensíveis e amargas. O perdão nos ensina também a como construir fraternidade, a como construir solidariedade, a como construir direitos. Nosso direito não é espartano. Tem progressão de medida e uma série de mecanismos e recursos que assimilam valores cristãos. Pena que não está sendo bem feito. O preso não é tratado, mas trancafiado, portanto continua sendo um perigo para nós porque, mesmo na cadeia, se mantém como parte de organizações criminosas.
Há algum ato ou dano que seja imperdoável?
No sentido de não sermos capazes de esquecer, atos como o Holocausto, por exemplo. Ou se alguém comete um aborto, pede perdão mas diz que, se engravidar novamente, vai abortar, essa pessoa não pode receber o perdão. É raro, porém, que alguém que pede perdão por um aborto esqueça o ato. Ela não esquece. Aquilo marca tanto sua vida que ela não esquece. Mesmo entre aqueles que não nos procuram pedindo perdão, desconheço alguma gente que fique feliz. Pois é um ato que lesa muito no corpo. Mesmo as pessoas que propõem a descriminalização do aborto, elas não estão fazendo uma campanha a favor do aborto. O que elas propõem é não criminalizar.
O perdão da igreja para os fiéis é o mesmo perdão para seus pastores?
Sim. Mesmo os padres que cometem crimes perdem seus status. Há suspensão de ordens. Na questão da pedofilia, é entregue à Justiça. Recentemente saíram normas bem rígidas em relação a isso. O padre é entregue à Justiça e tem de responder judicialmente pelo crime que cometeu.
A igreja não perdoa o suicídio, embora seja um ato de livre arbítrio. Ela sequer recebe o suicida em sua casa.
No caso do suicídio é preciso verificar em cada situação. Por princípio, claro, a Igreja não apoia o suicídio Mas lembro o nome do Frei Tito de Alencar, considerado um homem heroico pela própria Igreja. Foi suicida. Mas ele se suicidou pelo dano mental causado pela tortura. Os despojos do Frei Tito foram recebidos na Catedral da Sé pelo cardeal Evaristo Arns, como um mártir da luta pela liberdade e contra a ditadura militar. Mas os danos que o delegado Sérgio Fleury lhe causou nos porões da ditadura o incapacitaram para ter uma consciência. O Frei Tito é um caso emblemático. Ele via o rosto do Fleury até nas flores. Aonde ele ia via o rosto do seu torturador. Por isso, pergunto: alguém que cometeu suicídio passou por uma tortura psicológica que o incapacitou de ter liberdade? Ele ficou incapacitado de arbítrio? Em sã consciência, ele teria feito essa escolha? A lei, já dizia São Paulo, tornou-se um lixo porque encontrei a liberdade do amor. Hoje existe um memorial para o Frei Tito. Recebeu todo o afeto, porque poucos foram torturados como ele. Foi torturado barbaramente e se suicidou depois. Agora há uma polêmica em torno do coronel Ustra. Ninguém quer torturá-lo, nem torturar outros torturadores do regime militar. O perdão é responsabilizá-los pelo que fizeram. E isso a História do Brasil tem de dar conta. Onde estão sepultados os desaparecidos? As famílias das vítimas têm o direito de saber o que ocorreu? Uma forma de perdão é lembrar e reparar. Há como reparar? Hoje já não sei como funciona a Lei de Imprensa, mas como se faz urna reparação de um dano causado pela imprensa? Há pessoas que foram destruídas pela imprensa. Há jornalistas cuja especialidade é destruir os outros.
O senhor menciona uma instituição que não perdoa. E não repara.
Não perdoa e não repara em nome da liberdade de imprensa. Mas liberdade de imprensa significa exatamente o quê? Cada um fazer o que quer? Significa a ditadura do editor. Se o editor resolve que vai acabar com uma pessoa, ele acaba. Outro dia me ligou uma jornalista de uma rádio para me fazer perguntas sobre o povo da rua. E me dizia: "Nós precisamos falar dos albergues." Eu respondia: "Os albergues não são a única solução, precisamos de outras. Não podemos condenar todo o povo da rua a viver em albergue”. Como eu insistia muito nesse ponto, ela me disse: “Padre, temos de falar em albergue porque o meu editor mandou falar. O senhor está trazendo outros assuntos, mas o editor não quer outros assuntos, quer que o senhor fale dos albergues”. Ou seja, ele queria por na minha boca algo contra os albergues, provavelmente por um interesse político de atingir o prefeito. Nem toda a população de rua é “albergável”. É preciso ter república, aluguel social, possibilidade de moradia fixa, outros caminhos que não só os albergues. Quem de nós três gostaria de entrar num albergue e dormir ao lado de mais cem? Mas criticar a imprensa significa atentar contra a liberdade de expressão. Não tenho a liberdade de falar aquilo que destrói o outro. Mas a imprensa julga, condena e executa. Tudo num dia só. Os jornais não devem ter manual de redação, mas manual de retaliação. A imprensa também não pode tutelar a consciência do povo. Quando vivi tudo o que vivi em 2007 eu perguntei a um jornalista: “Se eu disser que tenho um arsenal de armas em casa, vocês vão publicar?”. Ele disse que sim. “E se não for verdade?”, questionei. “Depois a gente vê”, ele me respondeu. Uma emissora de televisão chegou a colocar fita crepe na campainha da minha casa para que ela não parasse de tocar. Eles queriam me filmar num gesto tresloucado, saindo de casa e xingando. Duas televisões pediram a uma testemunha que refizesse seu testemunho contra mim. Eles me condenaram e me executaram. Perguntaram à minha mãe, então com 85 anos: “Quem sustenta a casa?” Quem cuida da senhora?” Ela respondeu: “Eu cuido do meu filho, e meu filho cuida de mim”. Era uma invasão de privacidade absoluta. Eu havia dado a uma jornalista uma medalhinha do Tito Brasman, frade carmelita holandês que se opôs à ocupação nazista e virou patrono dos jornalistas católicos. Na época, ela me visitou, chorando, e disse: “Padre, pedi demissão do jornal porque não quis cumprir o que me mandaram fazer”. E outro jornalista de uma TV que deitou e rolou em cima de mim, disse-me: “Padre, eu gostaria de pedir desculpas, pois não queria fazer o que estou fazendo. Mas sou obrigado”. Respondi para ele: “Fique em paz”.
Esses o senhor perdoa. E aqueles que o levaram a uma irreparável situação?
Não alimento nenhum desejo de vingança, mas acho que a justiça precisa ser feita. Na segunda vez, na hora do julgamento, o juiz perguntou se eu queria falar alguma coisa. Eu disse ao advogado do casal que tentava a extorsão contra mim: "Eu o respeito como pessoa e como advogado e peço a Deus que sua consciência não tenha morrido. Porque se tem consciência, o senhor é a minha melhor testemunha, pois sabe o mal que teceu juntamente com eles. Eu só espero que o senhor não tenha de aprender pela dor."
Há dois sentimentos e gestos aparentemente antagônicos, a raiva e o perdão. É possível ter os dois simultaneamente? "Eu te perdoo apesar da raiva que teus atos me inspiram".
Há coisas que machucam, e a ferida não cura. Mas eu não quero causar essa mesma ferida nele. Para mim uma coisa muito grave é usar do poder para destruir os outros. Nesse sentido, a Justiça condena o assédio moral, como o assédio sexual. O assédio moral é usar da sua autoridade para destruir o outro. Eu, como padre, tomo o cuidado com o que falo na frente do povo. Não posso dizer para uma velhinha que ela é ignorante, que o que ela está falando é uma bobagem. Sei que isso vai destruí-Ia. Mas é fato que há pessoas que lhe suscitam raiva, ódio. O que precisa é trabalhar com esse sentimento, pois não se pode negá-lo. Há momentos em que o pai tem raiva do filho, e vice-versa. Dizer que o marido nunca sentirá raiva da mulher é uma mentira, bem como dizer que a mãe jamais ficará com raiva dos filhos. Mas a mãe não vai deixar os filhos sem comer. Ela pode até fazer a comida com raiva, mas fará. Por isso a espiritualidade nos permite aprender a lidar com esses sentimentos. Quando me dizem: "Vocês ficam defendendo bandidos, mas esses moleques têm mais é de apanhar", eu respondo: "Agindo assim estaremos reproduzindo o mesmo mal que condenamos."
Genocídio, pedofilia, estupro, assassinato. O senhor perdoa a todos?
O dano cometido pode ser irreparável e será condenável. O perdão não pode gerar a inconsequência, o amor é exigente. O Direito Canônico diz que, no fim, a salvação das pessoas é maior do que toda lei. As leis são importantes, mas a salvação das pessoas é muito mais. Portanto, nesse sentido, dizer que tal grupo não tem perdão depende das circunstâncias. É preciso distinguir a sanidade da insanidade. O responsável pela chacina na escola do Rio cometeu um ato de insanidade extrema. Perdoá-lo não significa isentá-lo de responsabilidade. Se eu perdoo a todos? Aceitando a ideia da responsabilização e do reparo. Isso tem de ficar muito claro, caso contrário ficará apenas o "perdoa tudo". O perdão pode ser incondicional ou condicionado. Nesses crimes, o perdão é condicionado.
Não existe, portanto, o ato de perdão absoluto?
Esse, só Deus pode dar. E não somos donos da misericórdia e da justiça divina. Como somos relativos, o nosso perdão é relativo. Tweet
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