Foto: Willard Wigan
A sedução (tentação) do cristianismo não está no milagre ou no pão que sacia - o milagre secularizou-se, as obras de misericórdia converteram-se em obras sociais. A medicina, as ONGs, a FAO fazem hoje milagres tão grandes como aqueles vistos e engrandecidos em praticamente todas as religiões, chame-se a isso magia ou feitiçaria. O que seduz no cristianismo é a existência de um Deus sensível ao coração, a proximidade, a presença para além da morte - é que alguém tenha ressuscitado por mim: «Eu sou o pão da vida: quem vem a mim nunca mais terá fome, quem acredita em mim nunca mais terá sede».
O Evangelho diz que a multidão seguia Jesus, primeiro pela fama que tinha de fazer milagres, depois porque lhe matara a fome. Jesus conhecia bem essas armadilhas: não há proeza que não traga o aplauso e a sagração. Passamos a vida a ignorar que não é a necessidade que define o que somos mas o desejo que é em nós atravessado pela alegria e a tristeza.
Aquilo que deseja o homem não pode ser trocado contra nenhum dos valores objetivos que é possível adquirir gerindo as suas pulsões. O Outro do desejo não tem preço, não é da ordem do representável, mensurável, comparável, nem da ordem do ter, é da ordem do ser e da falta de ser. Essa alteridade não tem valor mercantil - tem o rosto do Amor. Há em nós um desejo de ser ou de viver que nenhum alimento do mundo pode saciar. O que é desejado em nós não são tanto os objetos de que parecia termos necessidade mas aquilo que subjaz ao fundo de que vivemos, o dom da vida. Este dom não o podemos transformar em valor. É um dom que, sob um fundo de vazio, apela ao dom da presença. É neste presente que nos reconhecemos, feito da paciência ou da alegria dos encontros.
Os sabichões aparecem sempre cozidos à sombra e ao murmúrio: como pode Ele dizer que é o pão vivo descido do céu? Como podem estar unidos o céu e a terra? O pão vivo? Mas o pão fabrica-se! Eles não procuram um sinal. Eles sabem de um saber fechado. Eles são os defensores da realidade face a alguém que descarrila. A sua recriminação testemunha da sua resistência ao acreditável.
A esse saber, Jesus opõe o movimento que atrai para ele: «ninguém pode vir a mim se». É o Pai que atrai, não a vontade. Há em cada um como um poder de atração para este Filho. É ele que alimenta a filiação inscrita em nós como promessa: «todos serão instruídos Deus». Acreditar em Jesus é reconhecer nele uma palavra já ouvida no segredo, palavra do Pai que revela a verdade escondida desde a origem. A origem distingue-se do começo. É o dom da vida sempre presente como uma fonte que não deixa de jorrar. A origem, o Pai, encontra-se onde está o Filho. No universo das Escrituras, o pão dado aos pais por Deus é uma figura do dom originário mas não o próprio dom porque «no deserto os vossos pais comeram e morreram». O pão da vida - pão do Filho - apresenta-se como dom da própria origem e gera nos corpos uma outra perspetiva da vida e da morte.
Tudo se compra ou vende - é o que se chama satisfação das necessidades mais elementares ou mais dispendiosas e fúteis. Estar satisfeito é ter obtido prazer - a satisfação é a marca de que alguma coisa funcionou bem, a marca de um sucesso. A publicidade faz da satisfação do cliente a finalidade do comércio que gloria: «Se não ficar satisfeito, reembolsamos»! É preciso distinguir a pulsão (ser satisfeito mais ou menos por um objeto de consumo) do desejo (que abre ao encontro entre dois sujeitos que se reconhecem a partir de uma mesma origem).
Bem sabia João Crisóstomo: «os ricos nunca põem termo à paixão da riqueza; os pobres esforçam-se por alcançá-los e assim um frenesim incurável os agrilhoa a todos - até a amizade e o parentesco deixam de contar». Quaisquer que sejam os valores que adquiramos pelas nossas próprias forças, nenhum valor acrescentado apaziguará a nossa fome ou sede de ser. Ser desalterado não depende do que podemos ter, pensar ou fazer porque a vida recebe-se gratuitamente. Nós procuramos o que nos falta no objeto de que os sentidos se apropriam de maneira pulsional - a relação com o objeto parcial - o seio, a imagem, o sexo, o dinheiro - apazigua a tensão pulsional.
Sem uma resolução apaziguadora, a tensão pulsional pode aumentar até à dor e ao desprazer. Mas o sujeito do desejo nunca está satisfeito - o conhecimento do outro escapa a qualquer objetivo. Mas nós, como a criança, não vivemos apenas dos objetos que de modos diferentes investimos, nós vivemos também duma presença espiritual que nos atrai, que respiramos. O que é desejado é a Palavra de vida -é esse o desejo do pobre. O pobre é o necessitado: o que quer que faça ou tenha falta-lhe o necessário que é este sopro, este espírito, este «pouco» invisível que transforma o presente em presença.
Ninguém lá chega saturado de riquezas - o desejo não se pode preencher na ordem do ter - o que é desejado não é um objeto pulsional, é a Palavra de vida. A pobreza conduz à alegria recebida e dada sem dinheiro, sem valor de uso ou troca, graciosamente - o pobre encontra a alegria no viver com.
As palavras de Jesus não se dirigem à necessidade de compreender mas ao ser de carne e às pulsões que animam o vivente. Jesus coloca a relação com ele ao mesmo nível de necessidade que a satisfação das nossas pulsões mais elementares. Não são palavras dirigidas a puros espíritos ou a uma carne animal. Despertam a fome e a sede da nossa verdade desconhecida, misturadas com toda a espécie de apetites.
Amar é receber a vida como um dom e não encarniçar-se para conservar o que, inevitavelmente, se perde. A gestão preocupante do futuro é um modo de investimento que faz com que o fim seja aumentar o capital para assegurar o futuro. O que acaba de acontecer é que ao presente do amor se substitui a preocupação obsessiva do futuro. É assim que deixamos de perceber que o presente em que estamos tem o gosto da salvação. O sistema bancário não é a nossa salvação. O Filho do Homem é o corpo de carne atravessado pela Palavra que dá vida desde a origem. Que o Ressuscitado nos dê o gosto da salvação no presente. O amor maior, sem estratégia, é aquele que dá a vida àquele que ama. O que seduz no cristianismo é esta economia do dom sem medida que o Filho encarna e que a Eucaristia torna presente.
- José Augusto Mourão
Reproduzido via Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (Portugal) Tweet
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