Foto: Sharon Montrose
Em seu novo livro Salviamo la Chiesa (Ed. Rizzoli), o teólogo Hans Küng aborda os abusos sexuais e a crise do catolicismo: "O que torna doente a situação atual é o monopólio do poder e da verdade, o clericalismo, a fobia sexual e a misoginia". Das mulheres ao celibato, o teólogo apresenta as reformas necessárias depois dos escândalos.
O trecho do novo livro foi publicado no jornal La Repubblica, 01-10-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU.
Eis o texto.
Na situação atual, não posso assumir a responsabilidade de me calar: há décadas, com resultados alternativos e, no âmbito da hierarquia católica, modestos, chamo a atenção para a grande crise que se desenvolveu no interior da Igreja, de fato, uma crise de liderança. Foi necessário que surgissem os inúmeros casos de abuso sexual no seio do clero católico.
Abuso ocultados por décadas por Roma e pelos bispos de todo o mundo, para que essa crise se manifestasse aos olhos de todos como uma crise sistêmica que requer uma resposta sobre bases teológicas. A extraordinária encenação das grandes manifestações e das viagens papais (organizadas de vez em quando como "peregrinações" ou "visitas de Estado"), todas as circulares e as ofensivas midiáticas não conseguem criar a ilusão de que não se trata de uma crise duradoura. Isso é revelado pelas centenas de milhares de pessoas que, só na Alemanha, ao longo dos últimos três anos, abandonaram a Igreja Católica e, em geral, a distância sempre maior da população com relação à instituição eclesiástica.
Repito: preferiria não escrever este texto. E não o teria escrito:
1) se tivesse se cumprido a esperança de que o Papa Bento XVI indicaria à Igreja e a todos os cristãos o caminho para proceder no espírito do Concílio Vaticano. A ideia havia nascido em mim durante o amigável colóquio de quatro horas ocorrido com o meu ex-colega de Tübingen em Castel Gandolfo, em 2005. Mas Bento XVI continuou teimosamente no caminho da restauração traçada pelo seu antecessor, tomando distância do Concílio e da maioria do povo da Igreja em pontos importantes e fracassou com relação aos abusos sexuais dos membros do clero em todo o mundo;
2) se os bispos verdadeiramente tivessem assumido a responsabilidade colegial com relação a toda a Igreja conferida a eles pelo Concílio e se tivessem se manifestado nesse sentido com palavras e com os fatos. Mas, sob o pontificado de João Paulo II e Ratzinger, a maior parte deles voltou ao papel de funcionários, simples destinatários das ordens vaticanas, sem demonstrar um perfil e autônomo e uma tomada de responsabilidade: as suas respostas aos recentes desenvolvimentos no seio da Igreja também foram titubeantes e pouco convincente;
3) se a categorias dos teólogos tivesse se oposto com força, publicamente e fazendo frente comum, como ocorria antigamente, à nova repressão e à influência romana sobre a escolha das novas gerações de estudiosos nas faculdades universitárias e nos seminários. Mas a maior parte dos teólogos católicos alimenta o fundado temor de que, ao tratar criticamente de modo imparcial os temas que se tornaram tabus no âmbito da dogmática e da moral, serão censurados e marginalizados. Apenas alguns poucos ousam apoiar a KirchenVolksBewegung, o Movimento Popular pela Reforma da Igreja Católica difundido internacionalmente. E não obtêm apoio suficiente nem mesmo dos teólogos luteranos e dos líderes dessa Igreja, porque muitos deles descartam as demandas de reforma como problemas internos ao catolicismo e, na prática, alguns às vezes antepõem as boas relações com Roma à liberdade do cristão.
Como em outras discussões públicas, nos debates mais recentes sobre a Igreja Católica e as outras Igrejas, a teologia também teve um papel reduzido e se deixou escapar a possibilidade de exigir, de modo decisivo, as reformas necessárias.
Em muitos lugares, me pedem e me encorajam continuamente a tomar uma posição clara sobre o presente e o futuro da Igreja Católica. Então, no fim, em vez de publicar artigos dispersos na imprensa, decidi redigir um texto coeso e abrangente para ilustrar e motivar aquilo que, depois de uma análise atenta, eu considero o núcleo da crise: a Igreja Católica, essa grande comunidade de fiéis, está seriamente doente, e a causa da sua doença é o sistema de governo romano que se afirmou ao longo do segundo milênio, superando todas as oposições e que rege ainda hoje.
As suas características salientes são, como será demonstrado, o monopólio do poder e da verdade, o juridicismo e o clericalismo, a fobia sexual e a misoginia, e um uso da força religioso e também profano. O papado não deve ser abolido, mas sim renovado, no sentido de um serviço petrino orientado à Bíblia. O que deve ser abolido, ao contrário, é o sistema de governo medieval romano. A minha "destruição" crítica está, portanto, ao serviço da "construção", da reforma e da renovação, na esperança de que a Igreja Católica, contra toda a aparência, continue sendo vital no terceiro milênio.
(...)
Certamente, alguns sacerdotes vivem a sua condição de celibato aparentemente sem grandes problemas, e muitos, por causa da enorme carga de trabalho que paira sobre eles, quase não seriam capazes de se preocupar com uma vida de casal ou de família. Vice-versa, o celibato obrigatório também leva a viver situações insustentáveis: vários sacerdotes desejam ardentemente o amor e o calor de uma família, mas, na melhor das hipóteses, só podem ter, escondida, uma relação eventual, que em muitos lugares se torna um "segredo" mais ou menos público. Se, depois, de uma relação, nascem filhos, as pressões que vêm de cima levam a mantê-los escondidos com consequências devastadoras sobre a vida dos interessados.
A correlação entre os abusos sexuais dos membros do clero contra menores e a lei sobre o celibato é continuamente negada, mas não podemos deixar de notá-la: a Igreja monossexual que impôs a obrigação do celibato pôde afastar as mulheres de todos os ministérios, mas não pode banir a sexualidade das pessoas aceitando, assim, como explica o sociólogo católico da religião Franz Xaver-Kaufmann, o risco da pedofilia. As suas palavras são confirmadas por muitos psicoterapeutas e psicanalistas.
É desejável que seja reintroduzido o diaconato feminino, mas essa medida, por si só, é insuficiente: se não for acompanhada pela permissão de ter acesso ao presbiterado (sacerdócio), ela não levará a uma equalização dos papéis, mas sim a uma deferência da ordenação feminina. Um serviço que lhes dá a mesma dignidade dos homens, completamente diferente da posição e da função subalterna que inúmeras mulheres dos "movimentos" ocupam recentemente no âmbito da Cúria Romana.
O fato de que, no seio da Igreja Católica, a resistência e, em determinadas circunstâncias, também a desobediência podem recompensar é demonstrado pelo exemplo das coroinhas. Anos atrás, o Vaticano proibiu que meninas e jovens mulheres servissem a missa. A indignação do clero e do povo católico foi grande e, em muitas paróquias, simplesmente continuou-se a mantê-las. Em Roma, a situação foi, a princípio, tolerada e, por fim, aceita. Assim mudam os tempos.
De fato, um artigo publicado no dia 7 de agosto de 2010 no L'Osservatore Romano elogiou essa evolução como uma superação de uma importante fronteira, já que hoje não se pode atribuir à mulher alguma "impureza", e, desse modo, foi eliminada uma "desigualdade profunda".
Quanto tempo será preciso para que, no Vaticano, entendam que o mesmo argumento vale para a consagração sacerdotal, ou melhor, a ordenação feminina? Muito depende da posição e do compromisso dos bispos. Tweet
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