quinta-feira, 28 de abril de 2011

No sofrimento, Deus luta pela vida e solidariza-se com aquele que sofre


"A morte de Jesus foi uma grande dificuldade para os primeiros cristãos, porque era relativamente fácil falar de Deus Todo Poderoso, de Deus de amor, de Deus de sabedoria. Mas dizer que Deus se revelava e que a revelação última e definitiva estava na morte do Filho era algo inconcebível, inacreditável".

Esse é o mistério que os cristãos celebram da Sexta-Feira Santa até o Domingo da Ressurreição. E, para o teólogo suíço Daniel Marguerat, da Igreja Evangélica Reformada, na cruz, "Deus se manifesta sob uma forma última e definitiva nesse momento em que o Filho está mais frágil, ou seja, no momento em que está abandonado e vai submergir nas águas obscuras da morte". A partir dos textos de Paulo, é possível compreender que a cruz revela "um Deus que manifesta sua força de um modo totalmente oposto ao que se poderia imaginar", afirma.

Nesta entrevista-conversa, concedida pessoalmente pelo teólogo à equipe de Teologia Pública do IHU, Marguerat explica que a fé cristã, no entanto, não acaba no sofrimento e na dor da morte. "Deus, na existência em sofrimento, luta pela vida e solidariza-se com aquele que sofre para que este possa resistir e fazer desse sofrimento um espaço de vida e não de morte", resume.

Daniel Marguerat é professor emérito de Novo Testamento da Universidade de Lausanne, na Suíça. Após ter servido como pastor em algumas Igrejas Evangélicas Reformadas da Suíça nas décadas de 1970 e 1980, foi coordenador da Faculdade de Teologia da mesma universidade e presidente da Studiorum Novi Testamenti Societas e da Federação das Faculdades de Teologia de Genebra-Lausanne-Neuchâtel. De sua obra, foram publicados em português A Primeira História do Cristianismo: Os Atos dos Apóstolos (Paulus/Loyola, 2003), Novo Testamento: História, Escritura e Teologia (Loyola, 2009) e Para Ler as Narrativas Bíblicas: Iniciação à Análise Narrativa (Loyola, 2009), de coautoria de Yvan Bourquin.

Confira a entrevista.

Qual o significado da teologia da cruz, como o senhor a define, especialmente neste período da Páscoa? Como ela nos ajuda a refletir sobre o sentido da Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo?

De início, é preciso dizer que a morte de Jesus foi uma grande dificuldade para os primeiros cristãos, porque era relativamente fácil falar de Deus Todo Poderoso, de Deus de amor, de Deus de sabedoria. Mas dizer que Deus se revelava e que a revelação última e definitiva estava na morte do Filho era algo inconcebível, inacreditável, que chocou muito os ouvintes da pregação cristã originariamente.

Aliás, a prova dessa dificuldade foi o fato de que os primeiros cristãos levaram muito tempo para ousar representar a cruz na pintura ou na escultura. Essa representação tornou-se tão banal hoje para nós que esquecemos o fato de que, na verdade, a cruz era não somente o símbolo de uma morte, mas, sobretudo, o símbolo de uma execução extremamente cruel, sendo que a mais antiga representação da cruz é o portal de madeira da Basílica de Santa Sabina, em Roma, datando do século V. Os cristãos levaram então quatro séculos e meio para ousar representar a morte de seu Senhor. Isso mostra a sua extrema dificuldade.

Por quê? Porque todos nós trazemos conosco a esperança, e esta esperança nos faz imaginar um Deus forte, um Deus que nos livra de nossas dificuldades, que nos salva de nossos sofrimentos, que nos protege das doenças, e é a este Deus poderoso que muitas vezes pedimos, em nossas preces, para ser o Pai protetor e a Mãe afetuosa ao mesmo tempo.

Ora, o Deus que se manifesta na cruz descortina-se na fragilidade da morte, na fragilidade do Filho que desejou viver sua fidelidade e suas convicções ao extremo. Na verdade, isso vem abalar nossa imagem de Deus Todo Poderoso. Ao mesmo tempo em que desejamos que Deus nos poupe das dificuldades extremas, também preferiríamos, como certos curiosos ao pé da cruz, tal como nos conta o Evangelho, que Deus retirasse magicamente seu Filho dali e O salvasse da morte.

No entanto, acontece o inverso: Deus se manifesta sob uma forma última e definitiva nesse momento em que o Filho está mais frágil, ou seja, no momento em que está abandonado e vai submergir nas águas obscuras da morte. A revelação de Deus nesse momento, diz Paulo, é a revelação de um Deus que manifesta sua força de um modo totalmente oposto ao que se poderia imaginar.

Isso pode ser percebido hoje pelo fato de que a força é geralmente empregada no mundo para oprimir os outros e afirmar a autoridade daquele que detém o poder. Mas sabemos que existe também outra potência, outra força – talvez convenha empregar aqui o termo força e não potência –, que é a da resistência, a força daquele que enfrenta a doença, sem ser destruído por esta. É a força daquele que se reergue após um fracasso na vida, que sobrevive a um divórcio, que sobrevive ao seu câncer, a um fracasso profissional. Esta força é interior e não menos admirável ou, ao contrário, conviria dizer, esta força é realmente admirável ante o poder esmagador, hediondo e desumano.

Então, deveríamos celebrar a Sexta-Feira Santa como uma surpresa intensa. É a intensa surpresa de um Deus que se distingue do uso da violência, um Deus que nunca poderá ser invocado como cúmplice da violência. Este Deus, ao contrário, coloca-se ao lado do frágil e do fraco para ajudá-lo a sobreviver à violência, para vencer as forças da morte. No fundo, pode-se dizer que Deus não é aquele que vem apoiar o forte que oprime o fraco, mas, sim, a partir da Sexta-Feira Santa, um Deus que luta com o frágil e o fraco para que a vida, a esperança e o amor possam triunfar àquilo que contraria sua humanidade. É o Deus que ajuda o ser humano a permanecer humano no momento em que sua vida desfigura sua humanidade.

Você comentou durante o curso que “a cruz se torna o princípio de leitura de uma realidade sociológica”, a partir de sua leitura de Paulo, na carta aos Coríntios. Como a cruz nos ajuda a ler a realidade e os desafios da sociedade de hoje?

O apóstolo Paulo, a partir da cruz, lê a realidade sociológica da Igreja que ele fundou em Corinto mostrando que aqueles que aceitam a imagem desse Deus que se expressa na cruz não são os que pensamos. A saber, são aqueles que a sociedade desqualifica, degrada e aos quais ela não atribui nenhum valor.

Então, a partir da cruz, eu diria que a imagem de Deus assume duas características: por um lado, como eu disse antes, a partir da Sexta-Feira Santa, não deveria ser tolerada nenhuma justificação teológica da violência. Quando se contempla a história do Cristianismo, é preciso admitir também que, em certos momentos, acontece o inverso e que a referência ao Evangelho foi utilizada para oprimir, esmagar ou matar. Devemos ter a coragem de reconhecer que essa justificação divina, evangélica, da violência foi um erro, e que hoje temos consciência disso. O Cristianismo deve fazer essa leitura crítica de si mesmo, que não o condena, mas sabe que sua história tem páginas negras.

Por outro lado, um segundo aspecto, a partir da cruz, é que Deus solidariza-se precisamente com aqueles que não têm valor na sociedade. Isso deveria justamente evitar que nos deslumbremos com as imagens de êxito, com os apelos ao desempenho, com a ideia de que a existência humana só se valoriza, só se realiza pelo dinheiro ganho de maneira rápida e fácil. Na verdade, é o modelo de êxito do homem que se critica aqui, porque a realização da vida humana não depende daquilo que a sociedade estabelece como critério de êxito econômico, mas depende, sim, do valor atribuído a cada existência, da importância da compaixão, da atenção dispensada a cada ser humano. Portanto, o Cristianismo deveria expressar mais enfaticamente o que, para ele, é critério de êxito e que muitas vezes é extremamente alheio ao que a sociedade veicula hoje como modelo de sucesso.

Em nossa realidade latino-americana, a fé na cruz de Jesus foi muito criticada, porque, ao celebrar a Semana Santa, diz-se que a sociedade latino-americana, especialmente a brasileira, valoriza muito a Sexta-Feira Santa e se esquece do Domingo de Páscoa. Por isso, diz-se que a espiritualidade é muito marcada pelo dolorismo. Porém, quem entra mais na religiosidade popular diz que a essa mística da cruz gera a capacidade de resistência perante o sofrimento, fortalecendo o povo para carregar sua própria cruz. A partir de sua leitura, como se dá essa relação entre cruz e esperança, cruz e vida?

Eu penso que isso está ligado ao fato de que, na cruz, Deus solidariza-se com todo o sofrimento humano, de modo algum porque o sofrimento leva ao nada, mas, justamente, porque esse sofrimento humano torna-se suportável, torna-se espaço de resistência, como você disse, e não um espaço em que o ser humano sacrifica e perde sua vida. Acredito que devemos desconfiar muito da ética sacrificial. O Novo Testamento nunca valoriza o sofrimento como tal. O Martírio não é tido como heróico. Ele é um drama.

Diz-se que Cristo, no entanto, não morreu à toa, porque foi fiel a Deus e Deus lhe é fiel, mas o sofrimento em si não é momento de redenção. Isso é uma perversão medieval. O sofrimento não é um momento de redenção. A cruz não expressa o valor redentor do sofrimento. Ela afirma, ao contrário, que Deus, na existência em sofrimento, luta pela vida e solidariza-se com aquele que sofre para que este possa resistir e fazer desse sofrimento um espaço de vida e não de morte.

Falamos aqui da teologia da cruz, da kenosis, do esvaziamento de Deus. O que a teologia da cruz tem hoje a dizer à Igreja, para fomentar um rosto mais humano, uma Igreja comprometida com o mundo atual?

Penso que a Igreja deveria questionar-se, a partir da cruz, sobre sua política de poder, de potência. A cruz não é compatível com a busca de poder. A Igreja, que se concebe sob o signo da cruz, deveria entender que precisa solidarizar-se com os frágeis e os desvalidos, que a fragilidade humana não deve ser a negação da humanidade, mas deve ser habitada pela compaixão de Deus. A Igreja pode dificilmente afirmar isso e ao mesmo tempo fugir dessa fragilidade.

Então, é a Igreja a serviço dos pobres, a serviço do mundo, que pode tornar crível seu discurso. Não pode haver contradição na mensagem da cruz, que é uma mensagem divina de desapossamento, emitida por uma instituição que, por sua vez, busca a posse, ou seja, o poder. A meu ver, tanto no Brasil como na Europa, as pessoas, o mundo, não podem suportar a contradição flagrante entre a busca de poder de uma instituição e a mensagem que essa instituição transmite: a mensagem da cruz. Devemos refletir muito sobre isso.

O senhor também aborda o Evangelho de Marcos e as cartas de Paulo como textos “gêmeos”, principalmente em relação à cruz. Em que sentido?

No Novo Testamento, dois autores afirmam a teologia enfocada na cruz: de um lado, o evangelista Marcos e, do outro, Paulo. Paulo expressa pela argumentação, através de um discurso argumentativo, o que Marcos, por sua vez, interpreta em uma narrativa, isto é, utilizando o modo narrativo. O que os reúne é o fato de que, tanto para um como para outro, a verdade de Cristo, e bem mais a verdade do Cristianismo, só se expressa na cruz.

Se tomarmos, por exemplo, o Evangelho de Marcos, veremos, nos primeiros capítulos, Jesus curador, um Jesus que se põe diante do desamparo humano, que cura ou expulsa demônios. Mas o evangelista Marcos mostra constantemente que, na verdade, não se pode compreender Jesus se somente sua capacidade de curar for considerada, porque isso faz dele um curador de sucesso, um homem dotado de poderes de cura que responde assim a todos os pedidos para se desvencilhar das dificuldades da vida que a multidão lhe dirige.

Marcos quer mostrar que Jesus é, de fato, curador, mas que esta libertação da humanidade custará o preço de sua própria vida. Então é a coerência entre o fazer e o viver, entre o dizer e o viver que Marcos mostra no fato de que, no Evangelho, cada vez que alguém ou algum discípulo, como Pedro, diz que Jesus é filho de Deus, Jesus lhe pede para se calar. Se Jesus ordena que se calem é porque se faz necessário esperar a morte de Jesus para que, ao pé da cruz – Marcos 15, 39 – um centurião diga: “Este era realmente o filho de Deus”. É o percurso de Jesus e a manutenção de sua fidelidade alcançando esse ponto de extrema fragilidade que validam, que legitimam sua palavra e seu agir. Portanto, é realmente uma validação do agir de Jesus por uma fidelidade divina. Trata-se novamente da coerência necessária entre o viver e o agir.

Paulo, por sua vez, de outra maneira, pela argumentação, afirma que tudo o que podemos dizer a respeito de Deus, do Deus do Evangelho, deve ser dito a partir da cruz, ou seja, a cruz torna-se o critério de verdade de qualquer afirmação sobre Deus. Na verdade, esta é a medida, o padrão, que serve para medir toda e qualquer afirmação cristã sobre Deus. É aí que Ele se dá a conhecer, e não como em nosso imaginário, que não cessa de produzir imagens de Deus poderoso. O seu poder é manifestado dessa forma.

Como retomar o sentido da cruz no anúncio do Evangelho em uma sociedade como a de hoje, que se diz pós-moderna e não admite o sofrimento?

Se o sofrimento for proposto como ideal de vida, somente os masoquistas vão aderir a tal programa e, neste caso, precisam ser tratados. Mas o Evangelho não é isso. O dolorismo é que faz do sofrimento um ideal de vida. Jamais o Evangelho.

Em contrapartida, apesar do que possa ser dito a respeito da descristianização, esta não faz desaparecer a necessidade de espiritualidade. E a necessidade de espiritualidade manifesta-se especialmente no momento em que o ser humano encontra-se desamparado. Em que momento ele está desamparado? Quando deve enfrentar um câncer, quando se defronta com um fracasso, quando é expulso de sua comunidade... É justamente nessas situações de dificuldade em que a sociedade não o ajuda – porque esta veicula modelos de desempenho de vida –, quando o ser humano não tem bom desempenho, nem é vitorioso, nem ganhador, não é nada... A sociedade nada tem a propor para que ele possa enfrentar a extrema dificuldade que está atravessando.

É nesse momento, então, que se manifesta a necessidade de espiritualidade. É preciso que os cristãos tenham nesse momento uma linguagem verdadeira, e esta linguagem verdadeira é a de um Cristianismo voltado não para uma cruz dolorista, mas para uma cruz – insisto – como promessa de vida ligada àquele que vive seu sofrimento com a convicção de que Deus o impulsiona para a vida. Portanto, existe uma necessidade de espiritualidade evidente que não é menor do que a de antes, com a diferença de que o público desconfia de fórmulas prontas, o que eu chamo de fórmulas do catecismo, fórmulas doutrinárias que não se orientam para a existência.

E para isso, de fato, é preciso voltar à Escritura, porque é assim que aprendemos a despojar nossa linguagem das fórmulas calcadas, dos slogans, para seguirmos o percurso de vida de pessoas que podem atestar a presença de Deus que as acompanha.

Por Moisés Sbardelotto
Tradução: Vanise Dresch
Reproduzido via IHU. Grifos nossos.

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