Foto: i can read
Recebemos de um amigo este lindo depoimento, e é com muita gratidão e sentindo-nos muito honrados que o reproduzimos aqui.
Enquanto homossexual não saberia dizer se a homossexualidade nos faz mais sensíveis. Penso que na condição de seres humanos vivemos num mundo diverso, pronto a ser descoberto na sua riqueza existencial infinita. Por isso, seria importante que estivéssemos sempre sensíveis a tudo que nós rodeia. Sou daqueles que acreditar que sensibilidade também se aprende. Mas, talvez, aqueles que, por algum motivo, não são desejados pela sociedade tentem a criar um mundo particular e, neste mundo, vivem seus sonhos e pesadelos, tentando, de algum modo, encontrar a forma como aparecer no mundo concreto sem precisar sofrer muito.
Enquanto permanecemos no mundo particular ganhamos tempo para nos compreender internamente. Percebo que nesta experiência ganhamos em sensibilidade na medida em que é preciso criar pequenos modos de felicidade. Lembro-me, por exemplo, da minha infância na qual por não poder brincar com bonecas eu pedia aos meus pais lápis de cor e muitas folhas para poder desenhá-las e, assim, me divertir com elas no meu imaginário. Deste modo, eu fui desenvolvendo a sensibilidade para as cores. Também comecei a prestar atenção às bonecas para poder reproduzi-las, em detalhes, no papel. Enquanto as outras crianças já tinham o seu brinquedo pronto, eu era desafiado a aguçar as minhas capacidades perceptivas e criativas. E quanto mais eu desenhava e melhorava o meu traço, apesar de muitos estranhamentos por parte das pessoas por eu só reproduzir bonecas, era muito elogiado por todos. Bom, mas é claro que, por outro lado eu sofria. Sofria porque enquanto criança o mundo era severamente posto de uma forma na qual eu não encontrava um lugar. E, apesar de todos perceberem a minha homossexualidade, era como se ela não existisse. O que existia era uma criança sensível, diferente das demais. Muitas vezes introvertida. Fui crescendo num mundo confuso, entre formas de disciplinamento heterossexuais e a fantástica descoberta da minha sexualidade. A atração pelo mesmo sexo provocava em mim, ao mesmo tempo, prazer e medo. Eu achava curioso o encantamento pelo mesmo sexo. Minha sensibilidade me dizia intimamente que aquela combinação era uma coisa bonita, e isso era muito natural. No entanto, eu não podia imaginar em dizer isso para ninguém. Tinha medo de não ser compreendido e aceito. Parece estranho dizer, mas isso era dolorido e delicioso ao mesmo tempo.
O tempo passou, e eu fui direcionando todas as minhas energias para os estudos. Lembro-me que quando cursava o segundo grau eu me apaixonei por um rapaz. Ele era da minha turma. Como era bom conversar com ele! Mas, com medo de que ele se distanciasse de mim, calei. Foi duro! Acabamos brigando. Foi uma forma que eu encontrei para não sofrer mais. Depois que o ano letivo terminou, eu nunca mais o vi. Entrei na faculdade e comecei a investir pesado nos estudos. Na minha família ninguém cursou uma faculdade, e para mim era um desafio. Concluí a faculdade com boas expectativas. Fui elogiado e incentivado pelos professores a realizar o mestrado e seguir a carreira docente. Embora introvertido, me fascinavam as relações humanas, e via na relação de ensino e aprendizagem a mais bonita forma de diálogo. Esse passou a ser o meu grande projeto. O mestrado foi concluído com sucesso.
Neste percurso não deixei de pensar, sofrer e me alegrar com a minha sexualidade. Mas o fato é que até então eu não havia vivido a minha homossexualidade. Eu não tinha tido uma experiência homossexual. Não tinha amigos gays e nunca havia falado sobre a minha sexualidade para ninguém. Pode-se imaginar como é difícil não poder falar o que se sente? Mas o fato é que eu tinha me tornado um homem inteligente e sensível e, também, bonito. Já não era mais um menino franzino. Faltava apenas que eu me percebesse.
Logo retorno aos estudos para a realização do Doutorado, com 27 anos. E assim continuava a minha trajetória de estudos. Paralelamente a minha sexualidade permanecia oculta para o mundo. Hoje penso que não ter falado sobre a minha condição me afastou da possibilidade de experiências afetivas e sexuais. Mas, se até então eu não havia tido a coragem de revelar a minha sexualidade, as circunstâncias da vida me puseram a prova.
Um colega com o qual eu convivia por aquele período começou a me notar. Mas eu acreditava que me mantinha tão imperceptível do ponto de vista da sexualidade, que não acreditei que ele pudesse ser gay e que estava interessado em mim. O fato é que ele era gay e tinha interesse. A cada encontro nos aproximávamos mais. E quando dei por mim eu já estava apaixonado. Talvez não pelo rapaz, e sim por toda aquela situação que para mim era uma extrema novidade. O fato é que eu lhe despertei o interesse. Neste caso eu me vi percebido por ele. Alguém havia me visto e isso mexeu demais com a minha auto-estima. Bom, custei a entender que o meu colega não estava apaixonado por mim, era apenas uma atração. Claro que eu sofri muito, pois me vi apaixonado e ao mesmo tempo vivendo e descobrindo as possibilidades da minha sexualidade. Parecia que uma represa tinha se rompido dentro de mim. Não sabia o que fazer com todos aqueles sentimentos e descobertas. Era a minha sexualidade me confrontando e me dizendo: como é que você vai querer viver daqui em diante?
Na ocasião eu revelei a situação a uma amiga. A escuta dela foi fundamental. Pela primeira vez eu me via falando sobre a minha sexualidade, ainda com muitos receios, mas eu falava, eu expressava. Esta amiga, na tentativa de me ajudar, apresentou-me a um amigo seu que era gay. Ela fez isso por acreditar que ter um amigo gay iria me ajudar. O rapaz tinha 21 anos e uma cabeça de adolescente. Ele vivia na região serrana, numa cidade pequena e cheia de repressões. Eu percebia que isso havia aflorado a sua rebeldia e ele se expressava de maneira bem intensa, parecendo querer provocar a atenção de todos. Apesar de um tanto assustado, eu comecei a manter contato com ele. Assim nos aproximamos e, após duas semanas de contato, fui conhecê-lo na sua cidade. Comprei um tênis all star, vesti uma bermuda, coloquei um boné e uma mochila nas costas. Segui viagem pela Serra. Essa sensação da viagem foi maravilhosa! Era como se eu estivesse mudando o cenário da minha vida. Dizem que às vezes é preciso viajar, sair de si, para depois retornar à nossa essência. Eu acho que era um pouco isso que estava acontecendo comigo. Trajado do modo como descrevi anteriormente, ali eu era um adolescente. Enfim, eu experimentava a adolescência que não havia vivido! Encontrei-me com o rapaz, juntei-me ao seu grupo de amigos adolescentes e vivi dias maravilhosos. Acordei no dia seguinte com as badaladas do sino da igreja local, que me transmitiam sinais de vida. Retornei para casa com entusiasmo para prosseguir. O namoro com o rapaz não foi adiante, e nem tinha condições de dar certo. Era mais uma experiência que a vida estava me anunciando. O anuncio era: nunca mais deixe as páginas da sua vida em branco, você tem o direito de ser feliz, você é especial.
Nesta experiência acabei me apaixonando pela região serrana. Aquela sensação do ônibus subindo a Serra mexia comigo, me enchia os pulmões e, eu sentia, alargava os meus caminhos de liberdade. Numa dessas subidas conheci outro rapaz. Um homem simples, mas com imensa sabedoria, cultivador de orquídeas na região. Eu sempre gostei de flores e ele me apresentou muitas delas. Passamos um final de semana num lugarejo chamado São Pedro da Serra. Este é um lugar que vai ficar pra sempre na minha memória! Lá pude entrar em contato com muitas cores. Eu precisava de cores, muitas cores! Fiquei encantado com a diversidade da natureza e, nesta experiência, pude compreender a minha própria riqueza e diversidade. No contato com cada flor, com cada fruta, com cada planta que ele me apresentava eu descobria uma sensação nova, um novo sentido! Marcou-me uma experiência em que ele me levou diante do espelho e chamou atenção para a minha aparência, para que eu valorizasse a minha aparência no mundo. Eu não podia mais me esconder, e nem tinha porque fazer isso.
Namorei este rapaz por alguns meses e com ele aprendi muito. A relação afetiva com ele foi fundamental. Com a sua simplicidade e sabedoria ele me mostrou como ser gay podia ser especial, como podia ser maravilhoso o sentimento entre dois homens. Sou-lhe grato por isso e, até hoje, tenho um carinho e uma amizade muito especial por ele.
Assim eu prossegui a minha experiência de vida. Conheci pessoas, namorei, conheci novos lugares, continuei me empenhando nos estudos... apareci para mim e para o mundo, com serenidade e orgulho. Ficou-me a certeza de que eu podia conhecer!
O mais importante dessa história foi que eu pude, entre dores e amores, me apresentar à vida. Apresentar-se a vida é confirmar a nossa existência. Como é que as pessoas saberão quem você é, quais são os seus valores, se você não se apresenta para o mundo? E quanto mais temos orgulho ao nos apresentar, mais as nossas relações afetivas vão se ampliando...maiores são as possibilidades de ser feliz!
E hoje me apresento à vida com grande orgulho de ser gay! Deus me fez especial nesta condição, e como é bom vivê-la sem medo! Embora a minha vida não se resuma a minha sexualidade, ela não seria nada se eu não pudesse expressar e viver as minhas relações sociais e afetivas como gay. Compreendo que a minha riqueza, o que me torna singular e especial neste mundo é a minha condição sexual. Não seria inteligente e justo anular justamente aquilo que me torna especial. Por isso - embora eu compreenda que ser gay não é uma opção - se eu tivesse que optar eu escolheria ser gay sempre! O bom é viver e poder se apresentar à vida, ao mundo! E, sobretudo compreender que não estamos sós. Há uma infinidade de pessoas no mundo e o nosso desafio é construir relações com elas. Quando eu decidi assumir a minha sexualidade eu me perguntei: “que mal há em viver o que somos de modo verdadeiro e digno”? “Ser homossexual não é um crime, então eu não preciso viver em clandestinidade”. “Para quem sobrará o ônus da infelicidade se eu não me assumir”? Mas até chegar a essa compreensão foi um longo caminho. Não é nada simples. As famílias, as instituições, algumas religiões, apesar de toda a mudança ocorrida nos últimos tempos no mundo, ainda não estão preparadas para acolher e respeitar a diversidade. A produção da culpa, da violência, da exclusão infelizmente ainda é recorrente. É preciso esclarecimento, fé, apoio e coragem! Mas o bacana é descobrir a nossa essência, o quanto somos especiais e o quanto é bom defender a nossa auto-estima com vigor. O que nos sustenta e amplia horizontes não são somente as dores, mas, sobretudo os amores. E eu decidi que estou na vida para amar. Eu escolhi amar e por isso sou feliz na minha condição. Nesta minha caminhada, entre dores e amores, ficou um aprendizado: O mais duro não é sofrer por amor...o mais duro é sofrer pelo desamor, pela ausência, por aquilo que não vivemos, ou deixamos de viver. Abraçar a nossa homossexualidade e vivê-la com plenitude, responsabilidade e fé é um ato de amor por si, pelos outros e pelo mundo!
- Bruno Peres Tweet
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