Foto: The Last Lions, NatGeo, divulgação
(...) Todos somos afetados pelo sofrimento alheio. A diferença está no “como” percebemos, interpretamos, respondemos ou reagimos a esta emoção básica de sermos tocados pela dor alheia.
A experiência cristã se constitui como uma “mística de olhos abertos) (J. B. Metz) que, tal como um colírio, dilata as pupilas dos olhos para captar o horror tremendo do inferno da pobreza e da exclusão.
As vítimas da injustiça estão clamando a nós a “responsabilidade de ter olhos quando outros os perderam (José Saramago). Trata-se de educar o olhar que desvela a mentira da realidade e ao mesmo tempo revela suas oportunidades históricas.
A espiritualidade cristã nos ajuda a transitar pelos cenários humanos com os olhos abertos, e nos oferece uma nova fonte de conhecimento que brota da indignação diante de tanto sofrimento inocente e injusto que nos fere.
Educar a visão é deixar-se olhar pelo outro, pelo pobre, pela vítima do sistema. A honestidade com a realidade reclama de nós uma alteração de nossa visão, um movimento sutil de nossos olhos que nos conduzem a colocar-nos “na mira do outro”.
Olhar-se com os olhos do outro que nos visita supõe uma autêntica revolução interior. O olhar do outro nos arranca do fechamento que nos cega e desmascara a enfermidade raiz de nossa cultura atual, que é a indiferença e a cínica apatia diante da dor dos pobres.
Mais ainda, o olhar do outro manifesta que “fora dos pobres não há salvação”.
Durante a Quaresma há um apelo constante a uma profunda conversão; e a conversão significa, justamente, orientar a cabeça e o coração para as “margens”, mergulhar na compaixão, desenvolver uma sensibilidade solidária e assumir lutas em defesa da vida e da dignidade das pessoas excluídas. A “sensibilidade solidária” é a não-violência em ação; é a fonte de todas as qualidade espirituais: a capacidade de perdão, a acolhida compassiva, a tolerância e todas as demais virtudes.
O filme “Diário de motocicleta”, de Walter Salles, tem uma cena em que Ernesto Guevara decide, na noite de seu aniversário, mergulhar no rio que o separava da comunidade dos hansenianos. Naquele momento, Che optou pela margem oposta – a da cidadania e da solidariedade. Não ficou na margem em que nascera a fora criado, cercado de conforto e ilusões. Essa “travessia” não é apenhas geográfica; trata-se de uma experiência que requer a atitude de abrir-se ao outro como diferente; e isso implica em “passar” para o seu lugar, aprender a ver o mundo a partir de sua perspectiva, deixar-se questionar e desinstalar-se pelo outro, despojado da condição de pessoa.
Ir ao encontro do outro só é possível a partir do cultivo da sensibilidade, entendida como o movimento afetivo necessário para ver a verdade da realidade de quem sofre. Não se trata de “dar” coisas, mas deixar-se “afetar cordialmente” pela dor do outro. A solidariedade nos leva a reconhecer no outro (sobretudo o outro que é excluído, marginalizado...) uma dignidade e uma capacidade criativa de superar suasituação; ela gera protagonismo e nunca dependência; compartilha sem humilhar; cria humanidade em seu entorno, com generosidade, humildade e silêncio; supera todo exibicionismo, sentimentalismo ou instrumentalização do outro.
O “outro” é o lugar originário no qual Deus nos fala e nos encontra, convocando-nos para a responsabilidade e solidariedade.
É o rosto do outro que derruba o eu de seu pedestal e de seus preconceitos e o convoca à bondade, à santidade, à compaixão. A experiência cristã entende a solidariedade como hábito do coração; não é um evento, um ato isolado; ela fermenta, dá calor e sentido ao nosso cotidiano e se encarna nos pequenos gestos de inclusão. Importa “re-inventar” com urgência a solidariedade como valor ético e como atitude permanente de vida. (...)
- Pe. Adroaldo Palaoro, SJ
Mensagem para a quinta-feira da segunda semana da Quaresma do Retiro Quaresmal 2012 do CEI-Itaici Tweet
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