"Todas as famílias merecem a igualdade"
Nosso amigo Rev. Marcio Retamero estará, dia 15 de maio, em uma audiência no Senado Federal, expondo temas pertinentes à comunidade LGBT. Neste texto, escrito para o Bule Voador, um site (excelente, por sinal) dedicado ao humanismo secular, ele conclama diferentes grupos progressistas a se unirem em prol dos direitos humanos e no combate à instalação de um Estado teocrático no Brasil.
Não faz muito tempo que ateus e cristãos formavam um par binário de opostos. Quando muito, a questão girava em torno do debate se Deus existe ou não; se a religião é alienante ou não; se o criacionismo era uma teoria válida ou puro mito (e é mito!). Geralmente tais debates descambavam para enquetes bem rasas e ingênuas do tipo: você crê que Deus criou o mundo em sete dias ou crê na teoria do Big Bang?
Enfim, não havia diálogo, mas apenas embates infrutíferos, tal como continua acontecendo entre ateus e cristãos fundamentalistas, aqueles cujos representantes estão no Congresso Nacional e que não abrem mão de lutar pela imposição de sua cosmovisão à sociedade como um todo. Aqui no Rio de Janeiro temos até uma campanha que lemos nos carros: “Bíblia sim, Constituição não!”
Cristãos fundamentalistas não se abrem ao debate, eles elegem certas passagens da Bíblia e as leem literalmente, enquanto deixam intocadas outras ou relativizam muitas, o que desvela a desonestidade intelectual deles em relação às Escrituras Cristãs, o Antigo e o Novo Testamentos. São fechadíssimos ao debate e tomam como “verdade literal” o que selecionam na Bíblia deles.
Cristãos fundamentalistas possuem um projeto sólido de poder político, um verdadeiro assalto ao Estado Laico que tem sido desvendado diante dos nossos olhos, desde os anos 90, eleições após eleições. Crescem em progressão geométrica e, segundo dados da revista Veja, já são 25% da população brasileira, ou seja, um grupo social que decide qualquer pleito eleitoral seja no nível municipal, estadual ou federal.
As últimas eleições para o Palácio do Planalto revelou aos brasileiros e brasileiras a importância, em nossos dias, do voto evangélico. Os dois candidatos com reais condições de vencer as eleições buscaram nos caciques das Igrejas Cristãs Fundamentalistas apoio e compromisso. Cartas foram publicadas, como a então candidata Dilma Rousseff publicou a “Carta ao Povo de Deus”, comprometendo-se, enquanto presidente, a jamais sancionar nada que fosse contra os valores da família brasileira e do cristianismo (qual cristianismo?).
José Serra, apoiado pelo midiático pastor assembleiano Silas Malafaia, não levou a melhor. Dilma conseguiu construir alianças mais largas com o povo evangélico de vertente fundamentalista e levou a melhor. A outra candidata, vista por muitos como “a via média”, também é evangélica de vertente fundamentalista (Marina Silva é afiliada à Assembleia de Deus) e sua agenda descartava, por exemplo, o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, porque segundo a então candidata, casamento é sacramento (uma mentira deslavada, pois nenhuma igreja evangélica fundamentalista tem em sua doutrina o conceito sacramental de casamento, mas somente a Igreja Católica Romana). Na esteira de Marina Silva, sempre que os outros dois candidatos eram confrontados com perguntas sobre os direitos não concedidos à população LGBT, principalmente o casamento civil, saíam pela tangente, dizendo que casamento era coisa de Igreja (?!). Ou seja, ignoravam o Código Civil Brasileiro que não tem no *casamento civil* uma base teológica sacramental. Claro que eles não são ingênuos e sabem disso, mas tal discurso agradava aos evangélicos da vertente fundamentalista.
Neste ano de 2012 teremos eleições municipais e nas principais capitais do país a luta cerrada pela conquista do voto evangélico já começou. Aqui no Rio de Janeiro, o atual prefeito Eduardo Paes (PMDB/RJ) que tenta a reeleição, já apareceu nas capas dos principais jornais sendo “abençoado” por caciques das Igrejas Universal do Reino de Deus e da Assembleia de Deus, esta, a maior denominação evangélica brasileira, de vertente fundamentalista. O par Rodrigo Maia (DEM/RJ) e Clarissa Garotinho (PR/RJ) formam uma tentativa de equilibrar de um lado o “progressismo” de um deputado federal, que enquanto atuava na Câmara dos Deputados apoiava as questões mais prementes de direitos humanos, inclusive a agenda LGBT, integrando a Frente Parlamentar LGBT daquela Casa. Sua candidata a vice, por outro, representa o lado mais conservador, com amplo apoio entre as igrejas cristãs, desde as históricas, como a Igreja Batista, às neopentecostais, como a Renascer em Cristo e congêneres.
Fato é que o mesmo tem acontecido em São Paulo. Hadadd, candidato pelo PT à prefeitura, já declarou que não é o responsável pelo kit Escola Sem Homofobia, projeto abortado pela Presidenta Dilma Rousseff, quando os deputados federais e senadores da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) bateram no Planalto “cobrando” a dívida de apoio nas eleições. Conseguiram. Hadadd aproxima-se do eleitorado paulistano evangélico, buscando apoio neste setor, pois sabe que Gabriel Chalita (PMDB/SP) tem amplo apoio dos católicos carismáticos, quantitativamente majoritários em relação aos evangélicos de cunho fundamentalista.
Toda essa equação política nos dá a certeza que o voto evangélico vem sendo disputado acirradamente entre os candidatos, seja no nível municipal, estadual ou federal. Os políticos e políticas já sabem a importância e o peso do voto evangélico de vertente fundamentalista e buscam se adequar à agenda política de tais grupos, prometendo lutar pelos “valores cristãos e da família brasileira”.
É preciso refletir sobre o atual fenômeno político com muita seriedade. Por isso desejo com este texto chamar atenção dos ateus e dos cristãos que chamo de progressistas para o perigo que nos ronda em pleno século 21: o obscurantismo e o assalto ao Estado Laico pelo fundamentalismo religioso.
Cristãos Progressistas encontramos tanto na Igreja Católica Romana (são os católicos e católicas herdeiros da Teologia da Libertação que ainda não está morta), quanto nas Igrejas Evangélicas, como as Igrejas Inclusivas (abertas ao público LGBT) e históricas em alguns setores, pois geralmente não há unanimidade entre as históricas (como as Igrejas Presbiterianas e as Metodistas). Entre os Batistas temos uma ala abertamente de esquerda, a Aliança Nacional de Batistas do Brasil, da qual sou membro.
Os Cristãos Progressistas são o avesso dos cristãos fundamentalistas: são engajados socialmente; preocupam-se com o atual rumo da política e do exercício da política no Brasil; são defensores do Estado Laico, ou seja, a total separação entre Igreja e Estado; apoiam as agendas dos Direitos Humanos, inclusive a agenda LGBT e não tomam a Bíblia como paradigma para a criação de leis; relativizam valores de acordo com o atual contexto histórico, principalmente o de família (tão cara aos fundamentalistas) e o de Igreja, sendo esta vista como “consciência do Estado”, ou seja, como aquela que vigia o Estado e o denuncia quando não cumpre seu papel de promover o bem estar social e o avanço da cidadania dos seus cidadãos.
Creio que podemos enxergar entre a agenda política dos Cristãos Progressistas e dos Ateus uma convergência de propósitos: inclusive o apoio da retirada de símbolos religiosos cristãos dos espaços públicos dos três poderes constituídos da nossa nação, bem como de todo e qualquer estabelecimento público; a retirada da frase “Deus seja Louvado” das cédulas do Real e a laicidade do Estado.
Existe uma agenda em comum entre Ateus e Cristãos Progressistas que ultrapassam os velhos debates pseudo-teológicos sobre a existência ou não de um Deus Soberano e Criador, prevalecendo uma dimensão histórica, do chão da vida, da nossa existência enquanto cidadãos de um país cada vez mais “cristão”, mas fundamentalista cristão.
Creio que essa agenda pode ser ampliada, não apenas enlaçando Ateus e Cristãos Progressistas, mas todas as outras minorias que sofrem e sofreriam quando este país se tornar um teocracia republicana, se é que existe ou seja possível existir tal conceito. Falo das prostitutas, das travestis, dos homossexuais e lésbicas e bissexuais, do “povo de santo (candomblé e umbanda), ciganos, dentre outras muitas minorias que coexistem neste país continental.
A ameaça cristã fundamentalista é real. O avanço deles ao poder é real, basta ver que um dos representantes desta ala, o bispo Marcelo Crivella já chegou ao Executivo; o crescimento deles, segundo os dados oficiais que dão conta dos números também são reais. Eles detém concessões públicas de TV e Rádios (tanto católicos fundamentalistas quanto evangélicos fundamentalistas), possuem muito dinheiro advindo das doações dos fiéis através dos dízimos e ofertas; vendem milhares de exemplares de revistas e jornais deste segmento e são vorazes proselitistas, lançando mão de todo o tipo de mídia para conquistar o cidadão e a cidadã.
Os políticos já demonstraram que estão cada vez mais dispostos a conquistarem os votos dessa gente e adotarem sua agenda conservadora e que ameaça à laicidade do Estado, criando leis que obrigam, por exemplo, o ensino religioso confessional nas escolas municipais e estaduais, dentre outras coisas bem sérias, como aconteceu na suspensão do kit Escola Sem Homofobia.
Nós precisamos construir uma ampla frente apartidária e política, apesar das nossas convicções religiosas ou não, apesar das nossas afiliações partidárias ou não e acima dos nossos preconceitos se quisermos parar o assalto do cristianismo de vertente fundamentalista ao Estado Laico. Todos nós, Ateus, Cristãos Progressistas e demais minorias temos muito a perder se o Brasil continuar caminhando para esse abismo que é o casamento do Trono, no nosso caso os Poderes Legislativos, Executivos e o altar e o púlpito. Nuvens obscurantistas pairam sobre nossas cabeças e, antes que elas vertam suas águas que matam e ferem, é melhor nos unirmos, construirmos uma agenda em comum e começarmos a botar os nossos pés nas ruas, clamando contra o atual estado de coisas em nosso país.
- Rev. Marcio Retamero, teólogo e historiador.
Mestre em História Moderna/Uff e pastor da Igreja Presbiteriana da Praia de Botafogo e da Igreja da Comunidade Metropolitana Betel do RJ.
(Fonte: Bule Voador)
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