domingo, 6 de maio de 2012

Da missa tridentina à reforma litúrgica do Vaticano II (parte 2)

Imagem daqui

Publicamos aqui a segunda e última parte da análise do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose (leia a primeira parte, publicada ontem à tarde, aqui), sobre a passagem da missa tridentina para a nova forma da missa, após o Concílio Vaticano II. O artigo foi publicado na Revista do Clero Italiano, n°. 3, de março de 2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


A missa tridentina – As primeiras reformas
Além da missa dos dias de semana e da missa dominical, gostaria também de lembrar uma outra missa muito solene, que era celebrada por ocasião de funerais ou missas de sufrágio, mas somente para pessoas ricas ou nobres. Sim, os ricos podiam pagar não só a missa "dita" pelo pároco, a ordinária, ao alcance das pessoas comuns, mas também a chamada "missa grande levítica".

Nessa ocasião, vinham de fora outros dois padres, que revestiam o papel levítico do diácono e do subdiácono: estes últimos vestiam a dalmática e assistiam o pároco durante a missa. Era uma missa que admirava pela solenidade (devida sobretudo à presença simultânea de três padres), pelo canto (executado pelo coro), pela presença de um catafalco altíssimo e ornado com inúmeras velas, diferente do dos pobres, montado especialmente para acolher o caixão, ou, no caso de missas em memória do falecido, para fingir que ali estava o caixão (até se incensava o catafalco vazio...).

Mas então, ninguém pensava que este era uma farsa ou que na liturgia era necessária a verdade, não a simulação. Nas cidades pequenas como a minha, a "missa grande levítica" era um evento raro de se ver, e o sentimento predominante era a maravilha pelo seu caráter solene, grandioso, espetacular.

Para mim, a missa de então era a única missa, e eu não tinha nenhum problema com relação à forma da sua celebração. Eu entendia o latim, tinha o messalino [pequeno missal popular] e era um cristão muito convicto. Não por acaso, aos 11 anos, contra a vontade do meu pai (a minha mãe havia morrido há três anos), eu quis ir para o seminário para me tornar padre, principalmente – dizia eu – para poder celebrar a missa.

Além do serviço cotidiano como coroinha no altar, era um exercício à liturgia e dava uma subjetividade cristã certamente nada fraca, mas convicta. Eu confesso que, de toda a celebração da missa, para além da consagração, para mim era importantíssima a meditação sobre a [oração da] coleta da missa do dia, em particular o domingo. A coleta da tradição latina, de fato, muitas vezes é uma "pérola", uma verdadeira síntese da oração cristã, um esboço para quem quer rezar segundo o coração da Igreja. Por isso, eu conhecia de cor muitas coletas, de modo que eu podia rezá-las em ocasiões diversas, sem recorrer à leitura do messalino.

Um evento muito significativo foi, depois, a reforma da Semana Santa desejada por por Pio XII no início dos anos 1950. Para mim que tinha dez anos se tratava de aprender novos ritos junto com o pároco: a introdução do lava-pés na Quinta-Feira Santa, a vigília pascal na noite entre sábado e o domingo apareciam como novidades que requeriam empenho e dedicação. Sim, porque até 1954 – perdoe-se e compreenda-se a expressão popular de então – "Jesus Cristo ressuscitava no sábado de manhã".

A liturgia pascal, de fato, ocorria por volta das 9h da manhã, em uma igreja obscurecida por cortinas, de modo a poder celebrar a luz da ressurreição. Na igreja, éramos muito poucos, menos do que em uma missa de semana em que participavam os parentes do falecido pelo qual se celebrava o sufrágio.

Por volta das 10h30, ouvia-se o som dos sinos, soltos na leitura do Gloria in excelsis Deo, depois de terem sido amarrados na Quinta-Feira Santa à noite, e as pessoas que ficavam em casa corriam para os córregos para se lavar o rosto.

Essa era, na época, a celebração da ressurreição de Jesus. Não foi fácil, portanto, aceitar essa primeira reforma litúrgica. Eu, o pároco, as freiras e alguns dos cristãos mais instruídos aprendíamos a compreender a grandeza do mistério das ressurreições. Para outros, ao invés, o comentário era: "Mudam até a nossa Páscoa!".

Uma reação não muito diferente daquela suscitada pela reforma litúrgica posterior, do Vaticano II, quando a exclamação era: "Mudam até a nossa missa!".

A missa pós-conciliar
Com Pio XII, a dinâmica da mudança já havia entrado na liturgia, e João XXIII, ele também, simplificaria alguns ritos e mudaria algumas fórmulas. Certamente, teria sido necessário explicar mais às pessoas o porquê da reforma, despertar nas pessoas um interesse pela "nova missa", iniciá-las à escuta das Sagradas Escrituras.

Foi feito muito pouco, mas posso dizer que, na minha cidadezinha, o pároco fez muito, todo o possível, eu acredito. Mas já haviam chegado os anos do boom econômico, as pessoas haviam mudado: o sábado e o domingo haviam se tornado ocasiões para ir ao mar ou – se dizia – para "dar uma volta". Era a televisão que dava lições no lugar dos padres. Os jovens andavam por aí para dançar...

Quanto a mim, tendo chegado a Turim para a universidade, ia sempre todos os dias à missa, mas não mais como coroinha. Aqui, lembro-me de missas ditas às pressas, tantas missas em diversos altares simultaneamente, ao menos na igreja mais perto do meu alojamento, o Santuário della Consolata.

Mas o Concílio já havia começado e estávamos cada vez mais convencidos de que, para chegar a uma reforma da vida do cristão e de toda a Igreja, era preciso dar vida a um caminho de reforma acima de tudo do ponto de vista litúrgico. Sentia-se a necessidade dela e ela também era esperada, nesse sentido, por parte das pessoas comuns.

Assim, pouco a pouco, chegavam "novidades". As novidades realmente existiam, mas – infelizmente – eram introduzidas aos trancos e barrancos, porque os presbíteros acabavam anunciando antes da missa: "A partir de hoje, na missa, muda-se isto... Esta parte da missa não é mais em latim, mas sim em italiano... Não se faz mais como se fazia, mas se faz de forma diferente...".

Essa modalidade, talvez, não era a mais adequada para fazer com que os cristãos comuns entendessem a intenção da reforma, e poucos presbíteros explicavam com paciência e competência as mudanças. Não houve revolta por parte das pessoas, mas, ao contrário, uma acolhida passiva. E a exclamação "Mudam até a nossa missa!" não tinha amargura, era quase uma piada, naquela hora em que a Itália do boom econômico estava mudando tudo. Porém, precisamente porque mudava a vida dos cristãos, também devia mudar a forma da liturgia.

Pouco a pouco, a reforma litúrgica mudou profundamente o modo de ir à missa. Podemos sintetizar essa mudança através de uma eloquente mudança de linguagem: "do tomar missa (ou assistir à missa)" para "participar da missa". Em primeiro lugar, todos ficaram agradecidos pela introdução da língua italiana, porque, finalmente, podiam compreender palavras que, até aquele momento, pareciam monopólio do presbítero e do coroinha.

O que o presbítero fazia ao altar não era mais obscuro, secreto, mágico para alguns, mas era algo compreensível e cada vez mais referido ao que Jesus fizera e dissera. Pense-se, depois, na maior riqueza de leituras na missa. Para dar só um exemplo, se, antes, no conjunto das missas dominicais e festivas, ouviam-se (ou, melhor, eram lidos em latim) cinco trechos do Antigo Testamento e dez do evangelho segundo Marcos, com o novo lecionário, os trechos do Antigo Testamento proclamados eram cerca de 240, e os de Marcos, quase 40.

As pessoas ouviam pela primeira vez páginas jamais ouvidas, das quais a pregação podia se tornar uma explicação e um comentário. Depois de um longo exílio, a palavra de Deus voltava ao coração do povo de Deus, e, acima de tudo, os evangelhos eram conhecidos quase na sua inteireza.

Além disso, começou-se a responder às palavras do padre. Teve-se verdadeiramente aquela "missa dialogada", como se dizia na hora do Concílio, tão desejada pelos párocos e pelos fiéis. Desapareceu o uso de conjugar a missa de semana com a missa "de morto": nessas liturgias, as leituras escriturísticas também eram variadas e abundantes.

Em suma, deve-se confessar – e por isso também é preciso agradecer ao Senhor – que se voltava verdadeiramente a uma comunidade, a uma assembleia celebrante, mesmo que as pessoas não tinham plena consciência disso.

Além disso, o presbítero, ao presidir a liturgia, aparecia mais claramente como sinal de Cristo para a assembleia e como sinal da assembleia para com Deus.

Não digo que não foi cansativo aceitar todas as mudanças introduzidas, mas a consciência de uma renovação necessária da liturgia me fez participar a partir de dentro dessa reforma, até por causa da minha amizade e assiduidade com os especialistas liturgistas que, em Turim, no centro litúrgico da Elle Di Ci de Leumann, trabalhavam para fazer uma contribuição de qualidade para toda a Igreja italiana.

A convicção e a determinação do cardeal Michele Pellegrino e a frequentação dos mosteiros beneditinos e trapistas franceses me ajudaram muito a acolher a reforma dentro da minha comunidade, que, desde 1968, já tinha feito da liturgia a “opus Dei” sobre a qual se podia construir a sua vida monástica.

A única tristeza, diante da qual eu senti toda a minha e a nossa impotência, foi a introdução de cantos e músicas cuja feiúra e banalidade, e cujo caráter ideológico muitas vezes deturpavam a liturgia. Compreendi que, nas paróquias, não se podia cantar o gregoriano (de fato, desapareciam os coros e eram introduzidas as bandas juvenis), mas se podia buscar, esperar e não ceder às novas modas musicais.

De nossa parte, enraizando-nos na liturgia monástica, fomos preservados dessa contaminação, e o nosso canto permaneceu em continuidade com a grande tradição latina, embora em língua italiana. Nenhuma alteração, mas sim um progresso, um crescimento da liturgia em si mesma.

Conclusão
Então, a missa mudou? Sim, mudou na sua forma, como sempre mudou nas diversas épocas da história da Igreja. Ao mesmo tempo, porém, a missa é a mesma em uma continuidade bem mais profunda do que a língua ou os gestos com os quais é executada.

Na verdade, para quem vive uma fé autenticamente cristã e eclesial, a liturgia da Palavra não mudou desde a da assembleia presidida por Esdras no retorno do exílio (cf. Ne 8), e a liturgia eucarística é sempre a mesma, desde o partir do pão da comunidade de Jerusalém na hora da Páscoa até hoje.

No meu coração, há, portanto, uma enorme gratidão ao Vaticano II e a Paulo VI, que atuaram pela reforma em fidelidade à tradição, à grande tradição cristã, mas não tenho sentimentos depressivos, muito menos negativos, lembrando a missa como era celebrada antes da reforma conciliar.

Há 40 anos, eu recolhia na reforma litúrgica principalmente as novidades. Hoje, reconheço sobretudo a continuidade, a tradição que se acresce e se renova para não morrer ou decair, mas que sempre sabe conservar a mesma missa, a mesma celebração da aliança entre Deus e o seu povo.

Ha 40 anos, a missa era, para mim, o sacrifício da cruz: hoje, ainda é o sacrifício da cruz, que tem como êxito a ressurreição, a vitória de Cristo sobre o mal e sobre a morte. Hoje, na missa, eu vivo com mais consciência o mistério pascal, renovo a aliança com o Senhor, ofereço a minha vida, o meu corpo em sacrifício (cf. Rm 12,1), oferece toda a criação com uma epiclese, invocação ao Espírito Santo, para que transfigure essa criação em reino dos céus.

E continuo convencido de que haverá outros desenvolvimentos, outros acréscimos e mudanças na liturgia, porque a liturgia, assim como a Igreja, é semper reformanda. Tudo isso, porém, em uma continuidade que tem como referência a grande tradição do Oriente e do Ocidente, e que completará o que faltar, corrigirá o que for necessário, enriquecerá o que parecer mísero.

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