segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Sobre a necessidade de acreditar em deus (e as palavras)

Imagem daqui

Saiu há poucos dias no excelente Minoria é a Mãe, de que já falamos aqui, este texto da Kamila que achamos que valia muito a pena reproduzir. Afinal, o que ela escreveu acaba sendo - mesmo sem pretender - uma explicação simples e bem argumentada do porquê da debandada de fieis que as religiões em geral, e o catolicismo em particular, têm sofrido. Bom, vamos ao texto, que eu comento depois.

"Fui criada em uma família que pratica o que eu chamo de “catolicismo padrão”. O católico brasileiro padrão é aquele que conhece e até segue as tradições básicas da religião, mas não a pratica à risca - só vai pra missa em ocasiões especiais, por exemplo.

"Eu segui algumas das tradições católicas no começo. Fui batizada, fiz catecismo, aprendi a rezar, tentei até ler a Bíblia algumas vezes, mas confesso que nunca consegui terminar. O fato do qual eu tentei fugir durante muitos anos, no entanto, foi que nada disso me tocava. Então eu evitei a questão até que finalmente consegui encará-la de frente e me questionar: afinal, eu acredito em deus ou não? E isso é mesmo necessário? Quando eu finalmente consegui me perguntar isso, cheguei a uma estranha conclusão: meu problema nunca foi com deus, mas sim com a religião.

"Mas eu queria chegar no seguinte fato: quando criança, dificilmente alguém vai te dizer que existe a possibilidade de questionar deus, ou a religião. Mas você geralmente questiona assim mesmo, é isso que crianças fazem. Só que, em um momento ou em outro, você acaba absorvendo que, afinal, não existe por que questionar. Desde muito cedo somos ensinados que existe uma necessidade inerente a todo ser humano de acreditar em um deus. Se converter para outra religião ou não ter religião nenhuma não é tão condenável do que não acreditar em deus, porque isso simplesmente não é visto como uma possibilidade.

"O cristianismo em geral nunca me tocou porque eu não via sentido nele. Jesus pode ter existido e ter sido um cara legal, mas por que as pessoas precisam tentar provar isso, eu me perguntava. Por que as pessoas que são de outras religiões vão automaticamente pro inferno? O que me dá o direito de considerar a minha religião verdadeira e as outras falsas? Por que eu tenho que fazer coisas boas visando agradar a deus pra que eu vá para o paraíso quando morrer? Por que as pessoas não amam e respeitam as outras, se era isso que Jesus queria e é a ele que elas estão seguindo? Por que deus pedia sacrifícios? Por que deus achou que seria uma boa ideia fazer um dilúvio? Por que as pessoas não entendem que o Jardim do Éden é uma metáfora? Por que as pessoas insistem que religião e ciência são mutuamente excludentes?

"Então eu aprendi que deveria construir minhas crenças. E, na minha cabeça, as coisas devem fazer sentido. O conceito de divindade - especialmente a judaico-cristã - não era lógica o suficiente e nunca entrou na minha cabeça. No entanto, mesmo achando perfeitamente plausível que deus não existisse, eu ainda acreditava. E cheguei à conclusão de que, bem, ele existe pra mim. O que eu chamo de deus pra facilitar a vida na verdade não é uma personificação, mas sim uma força universal, por mais brega que isso possa soar. É aquilo que rege as leis da física, a matemática, o nascimento e morte das estrelas, o funcionamento perfeito dos órgãos do corpo humano. Isso tudo sempre foi mais divino pra mim do que o sermão do padre. Isso tudo sempre me tocou, sempre me fez admirar o mundo e o simples fato de existirmos. E é justamente isso que eu acho tão importante: conseguir admirar a existência.

"Resumindo a história, hoje em dia eu já descobri que isso tem um nome: eu sou teísta agnóstica. O que basicamente significa que eu acredito em deus, da minha própria maneira, mas que não tenho como saber se ele de fato existe ou não e na verdade não me importo muito em saber. A definição simples de agnosticismo, aliás, é essa: a visão de que a razão humana é incapaz de proporcionar fundamentos racionais suficientes para justificar o conhecimento da existência ou não de Deus. [Wikipedia]

"O que eu quero dizer com isso tudo é que, assim como em qualquer outro aspecto da vida, não vale a pena tentar impor sua religião sobre outra pessoa. Algumas coisas simplesmente não funcionam para algumas pessoas, assim como o catolicismo não funcionou pra mim. Às vezes nós nos damos bem com aquilo que nos é ensinado e às vezes nós precisamos ir atrás do que vai dar certo pra gente. Às vezes nós simplesmente não precisamos. O fato de acreditar em um deus em nenhum momento torna uma pessoa melhor do uma que não acredita - e o contrário também é verdadeiro: não acreditar em deus não torna ninguém melhor do que outra pessoa.

"Somos muito mais do que uma característica só na vida. Às vezes a sua religião define o seu modo de viver, às vezes você simplesmente não tem uma. Eu não tenho um problema específico com religião alguma, além do fato de não compreendê-las totalmente. O único problema, ao meu ver, acontece quando você usa o seu deus e a sua religião como uma muleta para o desrespeito. Não conheço nenhuma religião que pregue o desrespeito ao próximo; e, no entanto, muitas vezes ela é usada a torto e a direito como uma desculpa plausível para isso. O fato de a sua religião condenar a homossexualidade, por exemplo (o que por si só já é um fato questionável), não te dá o direito de desrespeitar alguém e não faz com que esse ato seja menos condenável.

"Li em algum lugar uma vez que algumas pessoas estavam reclamando do fato de a lei contra a homofobia estar comprometendo a liberdade de expressão. O argumento era que não poderia ser considerado crime o fato de a sua religião condenar a homossexualidade e você seguir isso. Acontece aqui um erro muito claro de interpretação: existe uma grande diferença entre você não gostar de homossexuais - seja lá por qual motivo for - e cometer algum crime de ódio ou desacato. Nesse momento, a bandeirinha da opinião costuma ser levantada, e ela é muito perigosa. 'Eu não tenho preconceito, só não gosto de viado, por que vocês não respeitam a minha opinião?'

"O perigo desse argumento é que ele mascara o preconceito com a liberdade de expressão. Veja você o caso do Danilo Gentilli e da piada do macaco: 'Alguém pode me dar uma explicação razoável por que posso chamar gay de veado, gordo de baleia, branco de lagartixa, mas nunca um negro de macaco?', ele disse. Isso é uma distorção do conceito de poder. Eu posso fazer muitas coisas. Pra falar a verdade, eu posso fazer praticamente qualquer coisa, mas eu não faço, por diversos motivos. Um deles é que nós não devemos fazer algumas coisas, apesar de teoricamente poder.

"Eu uso palavras que dificilmente seriam consideradas politicamente corretas. Mas uso dentro de um determinado grupo, onde nós nos apropriamos dessas palavras e onde elas não são usadas como ofensa. Eu digo 'viadagem' com essas pessoas, mas em momento nenhum digo em qualquer outro lugar. Porque em qualquer outro lugar, e sem um acordo prévio entre as pessoas que estão ouvindo, eu vou simplesmente estar ofendendo alguém. Há muito e muito tempo, convencionou-se que viado é um xingamento, pois significa que você está chamando a pessoa de gay. Um heterossexual costuma se ofender com isso porque não quer ser confundido com um homossexual. Um homossexual, no entanto, se ofende porque convencionou-se que o termo deveria ser ofensivo. Ele se ofende com a sua própria sexualidade porque nos fazem acreditar que ela está errada e que devemos ter vergonha.

"Eu já fui chamada de puta várias vezes, nos mais variados contextos e por pessoas diferentes. Em pouquíssimas me senti realmente atingida, mas foi mais porque a pessoa realmente acreditava que aquilo era uma ofensa, e das piores. Eu gosto da palavra puta - acho sonoro, acho bonito. Mas convencionou-se que puta é uma coisa ruim pra se dizer a uma pessoa, porque é basicamente dizer que ela faz sexo por dinheiro. No entanto, curiosamente, puta não é tão usado assim nesse contexto; quantas vezes você já não ouviu alguém se referir a alguma moça como puta porque ela gosta de sexo ou por que se veste de determinada maneira? O fato de ser um xingamento só reflete mais ainda o fato de a sexualidade da mulher ser condenada.

"Nós não ofendemos e somos ofendidos por palavras, pura e simplesmente, mas sim pelo significado que foi atribuído a elas e que nós absorvemos. Vamos parar um pouco e pensar, então, no que estamos falando, no que estamos ouvindo e, principalmente, no que estamos entendendo disso tudo."

- Kamila

Pois aí está: quando as pessoas usam a religião pra fazer juízo de valor do outro e justificar menosprezá-lo, excluí-lo ou condená-lo, como a Kamila descreve - que talvez nem seja a religiosidade mais comum, mas certamente é a mais barulhenta - essa religião, vivida dessa forma, é, na minha opinião pessoal, simplesmente detestável. E, com relação aos cristianismos, ela tem toda razão ao intuir que a religião, praticada dessa forma, nada tem a ver com a Boa Nova que Cristo nos veio anunciar.

Outro dia postamos aqui no blog um texto em que Raymond Gravel comentava que as pessoas em geral não têm problemas com Deus, ou com Cristo: "Os fiéis e os cristãos que tomaram distância em relação à Igreja, não é a Cristo que eles rejeitam, mas à instituição que pretende representá-lo. As pessoas não se tornaram anticristãs; pelo contrário, nossos modos de viver sempre refletem os valores cristãos fundamentais: a justiça, a liberdade, a igualdade, a dignidade das pessoas. O que as pessoas rejeitam são os gurus, os aiatolás, os ditadores religiosos que creem deter a verdade sobre Deus e sobre o mundo e que esmagam os fiéis com interditos, regras e leis que convidam à intolerância, ao ódio e ao desprezo da pessoa humana."

Ou seja, o que escandaliza é essa imagem de Deus que tantos religiosos, infelizmente, têm vendido por aí. Esse Deus é inaceitável. Ninguém quer um Deus ranzinza, cruel, pronto a condenar ao menor deslize. Ninguém precisa de um Deus que tolhe. O ser humano precisa se realizar em sua plenitude, precisa se abrir, precisa de alegria e paz. Essa imagem de Deus não representa nada disso, e talvez seja mesmo muito saudável que a rejeitemos com todas as nossas forças, apesar de toda a pressão em contrário.

Sendo você religioso, agnóstico ou ateu, esse senso de reverência e beleza, essa capacidade de se emocionar diante do universo, esse senso de que há algo grande para além de nós, e que o universo simplesmente não gira ao redor do umbigo de cada um - isso é o que tantos filósofos, místicos, teólogos descrevem como o senso do sagrado, e que pessoalmente me parece que é inerente ao ser humano. Se uma religião facilitar para você entrar em contato com isso mais profundamente, ótimo. Aí, a religião será ponte, será portas e janelas abertas, será ligação mais profunda consigo mesmo e com os outros seres humanos, que aí chamaremos de irmãos - "meus iguais": nem abaixo, nem acima. Sem divisões, sem exclusões.

Mas, se você for religioso, agnóstico ou ateu, ou pegar qualquer outra crença e torná-la importante para você de um modo que te feche para o encontro e para o diálogo, e a use para julgar, condenar, menosprezar e excluir o outro - aí entra em ação um mecanismo que é uma tentação permanente para os seres humanos, e que se manifesta independente da religião (ou falta de) da pessoa. Tenho visto muito isso entre os ateus: uma maneira de defender seu ateísmo chamando os religiosos de estúpidos e cegos que soa muito parecido com os religiosos dizendo que os ateus são imorais e vão para o inferno.

Vejam bem, acho perfeitamente válido ser ateu. José Saramago era ateu, militava ativamente contra a Igreja Católica, e era um humanista de carteirinha. Era de um humanismo tão profundo e tocante que é evidente que, com Cristo ou sem Cristo, ele captou a ideia da coisa melhor do que muito cristão que se encontra por aí. E, sinceramente, isso - como você vive a sua vida e se relaciona - é muito mais importante do que a palavra que você usa para se descrever. No Evangelho, aliás, é também disso que Cristo fala ao advertir que não adianta dizer "Senhor, Senhor", declarar-se seu seguidor, e não agir como tal. Ele deixa muito claro que os atos são muito mais importantes que as palavras.

Sobre as palavras e as opiniões... outro dia li uma discussão (não me lembro onde agora, se lembrar coloco o link) toda baseada em argumentos técnicos do Direito em que essa história de brandir o direito à liberdade de expressão como desculpa para poder sair ventilando ofensas por aí, do ponto de vista do Direito, é um equívoco, porque o respeito à dignidade humana se antepõe à liberdade de expressão. Quer dizer, existem direitos mais importantes que outros, e o direito que eu tenho de ser respeitada é mais importante do que o seu de falar qualquer coisa que lhe venha à cabeça. Muito simples.

Um beijo, com todo o amor. Cuidem-se bem por aí neste Carnaval.
;-)

Cris

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