Caravaggio, S. Mateus e o anjo, 1602
Quando os primeiros cristãos liam - ou, mais provavelmente, ouviam - as palavras iniciais do Evangelho de João, absorviam de imediato muito mais do que nós, hoje.
Muitos deles deviam lembrar que, em hebraico, "palavra" e "coisa" são a mesma coisa, e todos sabiam que, em grego, a "palavra" usada no texto abrange uma imensa gama de significados: no nível mais simples, é apenas alguma coisa que é dita; mas indica também um padrão, uma lógica, por assim dizer, e mesmo a estrutura do universo como um todo, vista como algo que faz sentido para nós, a estrutura que dá sentido ao que existe e nos permite pensar.
Nesse contexto, podemos vislumbrar o que está sendo dito a respeito de Jesus. Sua vida é o que Deus diz e o que Deus faz; é a vida em que as coisas fazem sentido; é graças à vida que nele vive que nos tornamos capazes de pensar. Jesus é o ponto onde toda a realidade encontra foco e significado. Aqui podemos ver, como em nenhum outro lugar, o que conecta toda a realidade - toda a experiência humana e todas as leis naturais.
(...) Segundo o evangelho de João, a quase infinita variedade da vida que encontramos não passa de variações sobre um mesmo tema, aquele apresentado em uma única melodia, a vida de Jesus de Nazaré. "Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens."
Nem por isso, porém, podemos deixar de lado a imagem subjacente. A vida que vive em Jesus, a eterna agência divina que nele se encarna de maneira única, é como algo que é dito - uma palavra que nos é dirigida. Porque, como qualquer palavra que nos é dirigida, demanda uma resposta. E o evangelho logo nos informa que a resposta esperada não viria.
Antes mesmo que as palavras do evangelho nos levem ao Natal, somos levados à Sexta-feira da Paixão e à dolorosa verdade de que a vinda de Jesus divide o mundo entre aqueles que respondem e aqueles que não.
Uma vez dita essa palavra no mundo, não há volta. O evangelho diz e repete que a resposta que cada pessoa lhe dá é o que mostra quem e o que cada um de fato é, o que tem de mais profundo e o que lhe importa mais. O que dizemos ou fazemos em nossa resposta a Jesus é a maneira que temos de descobrir por nós mesmos e mostrar uns para os outros o que é real em e para cada um de nós.
Como os demais evangelistas, João insiste que certas pessoas respondem de forma profunda e verdadeira a Jesus mesmo sem saber plenamente quem ele é ou o que exatamente estão fazendo em resposta a ele; não estamos falando de nenhuma receita para algum tipo de exclusivismo religioso. Ainda assim, a verdade é irredutível: quem não puder ou não quiser responder se afasta da realidade e adentra um campo de falsidade.
Há uma pergunta que não podemos ignorar. A primeira pergunta que ouvimos na Bíblia não é feita pela humanidade a Deus, mas sim feita por Deus a nós: Deus caminha pelo Jardim do Éden, procurando por Adão e Eva, que tentam esconder-se dele. "Adão, onde está você?"
A vida de Jesus é essa pergunta traduzida numa vida humana real, os diálogos e encontros com um ser humano de carne e osso como todos os demais - exceto pelo fato de que quem o encontra diz, como a mulher no poço de Samaria, "Eis um homem que me disse tudo o que já fiz".
Bem no coração da fé e da prática cristãs há esse encontro com as perguntas que Deus nos faz: "quem é você, onde você está?" Você está do lado da vida que vive em Jesus, a vida da graça e da verdade, da generosidade irrestrita e da honestidade sem limites, a única vida que dá vida aos outros? Ou você está do seu próprio lado, o lado da desconexão, da rivalidade, do acúmulo de bens, da obsessão pelo controle?
Responder que estamos do lado da verdade não quer dizer, de modo algum, que agora podemos relaxar em uma difusa filosofia de conforto "a favor da vida". Pelo contrário: significa que nos dispomos a encarar tudo aquilo que, em nós, é mesquinho, medroso, insincero e evasivo, e permitir que a luz se derrame sobre os cantos mais obscuros da própria alma.
Como Pedro, no último capítulo do evangelho de João, tudo o que podemos dizer é que procuramos amar a verdade que existe em Jesus, ao mesmo tempo em que reconhecemos que tudo o que já fizemos vai de encontro ao seu espírito. E dizemo-lo por confiar que somos amados por esse mistério inefável que vem até nós sob a forma de um menino recém-nascido, "cheio de graça e verdade."
Encontrar palavras para responder ao Verbo feito carne é, e sempre foi, uma das tarefas mais difíceis para os seres humanos. Não acredite, de modo algum, que a linguagem religiosa é mais fácil nem mais vaga do que o restante de nossa linguagem. Aliás, é justamente o contrário.
Imaginemos S. João escrevendo seu evangelho, elaborando o ritmo lento e às vezes repetitivo de uma narrativa que permite a Jesus mudar a perspectiva passo a passo, à medida que os diálogos se desdobram. Pensemos em S. Paulo, perdendo o rumo em meio às frases, tropeçando entre metáforas enquanto luta para encontrar as palavras necessárias para algo tão novo que não existem precedentes para expressá-lo. Ou em todos os grandes poetas e contemplativos dos séculos de cristandade.
Não admira que tanto necessitemos das palavras dos outros; e é de imensa importância que tenhamos à mão palavras que tenham sido usadas por outros de evidente profundidade e integridade em suas vidas. É aí que se torna tão importante a linguagem de nossa adoração comum.
(...)
As questões mais importantes com que hoje nos deparamos, pode-se dizer, são quem somos nós e onde estamos enquanto sociedade. Elos foram rompidos, houve muito abuso e perda da confiança. (...) O quadro geral é de fragmentação e obscuridade.
Foi nessas trevas que a Palavra de Deus veio penetrar, com amor e juízo, sem que nada a derrotasse; nas trevas essas indagações se fazem ouvir com mais clareza do que nunca, questionando a cada um de nós, à nossa Igreja e à nossa sociedade: "Onde você está?" Onde estarão as palavras de que podemos nos valer para responder?
- Rowan Williams, Arcebispo da Cantuária e primaz anglicano
Reproduzido a partir de Religion and Ethics, com tradução nossa. Tweet
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