terça-feira, 1 de maio de 2012

Hildegard de Bingen e a igualdade entre homens e mulheres na história da Igreja

Imagem daqui

A transposição da imagem de Hildegard de Bingen, que viveu entre os séculos XI e XII, para a mulher de hoje não pode se limitar a algumas observações exaltantes sobre os seus dons excepcionais como abadessa, compositora, filósofa, farmacêutica, "conselheira" dos grandes do seu tempo e ecologista. Busquemos descobrir um rosto de Hildegard mais próximo da realidade histórica.

A opinião é da teóloga italiana Karin Heller, doutora em História das Religiões e Antropologia Religiosa pela Sorbonne, Paris IV, e professora de Teologia na Whitworth University, em Spokane, Estados Unidos. O artigo foi publicado no sítio
Comité de la Jupe, 19-04-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU (aqui e aqui).

O anúncio romano da próxima canonização e proclamação como "Doutora da Igreja", de Hildegard de Bingen (1098-1179) repercutiu na mídia em torno do Natal do ano passado. Podemos nos alegrar com esse reconhecimento das autoridades romanas oito séculos depois da morte da "Sibila do Reno".

Quanto ao significado dessa promoção tardia, é preciso, acima de tudo, ir buscá-lo nas duas audiências públicas feitas por Bento XVI nos dias 1º e 8 de setembro de 2010, consagradas à pessoa e à vida de Hildegard. Nelas, o papa delineia um retrato da "santa", bem enquadrado pela Mulieris dignitatem e dedicado à exaltação do "gênio feminino", segundo o ponto de vista vaticano.

As mulheres do século XXI, cristãs e católicas favoráveis a um diálogo com o mundo do espírito das aberturas teológicas criadas pelo Vaticano II, não se deixarão enganar. A transposição da imagem de uma mulher que viveu entre os séculos XI e XII para a mulher de hoje não pode se limitar a algumas observações exaltantes sobre os dons excepcionais de Hildegard como abadessa, compositora, filósofa, farmacêutica, "conselheira" dos grandes do seu tempo e ecologista antes do tempo. À espera dos discursos oficiais dessa promoção tardia, busquemos descobrir um rosto de Hildegard mais próximo da realidade histórica.

Hildegard viveu no fim de uma era em que os "mosteiros duplos" ofereciam um acesso aos estudos superiores indistintamente aos homens e às mulheres que viviam sob a regra de São Bento. Essa igualdade de oportunidades se enraizava na profunda convicção de uma igualdade entre os sexos, praticada pelo cristianismo do primeiro milênio. Depois de Hildegard, ao contrário, abre-se uma época que exclui todas as mulheres das universidades nascentes, das quais a Universidade de Paris foi uma das mais renomadas.

A exclusão das mulheres da vida universitária se deveu essencialmente à lei do celibato eclesiástico promovida pelas reformas gregorianas (séculos XI-XIII). Era preciso, a todo custo, separar o clero das mulheres para garantir a castidade do clero, condição incontornável para celebrar a missa e tocar no corpo e no sangue consagrados de Cristo. O destino de Abelardo e de Heloísa é uma ilustração perfeita da incompatibilidade de uma vida de estudo no quadro aberto de uma escola catedral ou de uma universidade que acolhia homens e mulheres. Enquanto os mosteiros garantiam um ambiente relativamente seguro para manter uma conduta casta para os homens e para as mulheres, não era mais assim com o estabelecimento de escolas ligadas a uma catedral.

Hildegard ainda é uma testemunha do que um intercâmbio intelectual praticado entre homens e mulheres pode produzir para o progresso da vida humana à luz do Evangelho de Cristo. Pela sua decisão de excluir as mulheres do debate intelectual público, as autoridades eclesiásticas causaram uma interrupção brutal de um desenvolvimento muito promissor. Privaram a Igreja e a humanidade de um progresso nas ciências humanas, teológicas e espirituais para o milênio seguinte.

Heloísa é um exemplo perfeito dessa evolução que culminará na redução de todas as abadessas ao estado laical. Ela será testemunha e protagonista da batalha que oporia a Escola de Laon a Abelardo, apoiado por outros teólogos da sua época. Essa escola havia produzido os Glossalia ordinaria, que estipulavam a exclusão das mulheres da ordenação diaconal. Essa ordenação ainda conferida às abadessas fazia delas membros do clero. Abelardo e Heloísa perderam essa batalha.

Em seguida, todo traço escrito que fizesse referência a mulheres ordenadas no primeiro milênio foi erradicado, minimizado, degradado. Assim, prevaleceu a convicção de que uma ordenação de mulheres jamais havia ocorrido na Igreja depois de Jesus Cristo. Assim que tal constatação entrou nos documentos compilados pelas reformas gregorianas, não restava nada mais a fazer do que um "copia e cola" de um século ao outro. Ao mesmo tempo, o sacerdócio masculino estava a tal ponto exaltado que se fazia dele um estado metafísico especial, que elevava o indivíduo masculino ordenado acima de todas as outras categorias humanas, e dotado de um selo indelével.

Além disso, até o tempo de Hildegard, a clausura monástica era considerada como um espaço proibido ao que vinha de fora, e não como um lugar do qual não se devesse sair. Depois de Hildegard, ela se tornou uma prisão voluntária para mulheres, ou um refúgio proibido para os homens, onde as mulheres ainda podiam dar livre curso, de algum modo, às suas aspirações de criatividade intelectual e social.

Hildegard ainda se concebia em um mundo em que se podia falar olhos nos olhos com o papa, com o imperador da Alemanha, com o bispo de Mainz, de Colônia, de Würzburg, de Trier ou de Bamberg. Ela pregava do alto da cátedra nas suas catedrais, porque, sendo abadessa, também era diaconisa. Em suas pregações, isentas de toda unção eclesiástica e de todo temor de ser "politicamente correta", ela desenvolvia uma sólida teologia da Encarnação, frente aos erros dualistas do catarismo, e fustigava o clero ávido de riquezas e de honrarias.

Para Hildegard, a visão da relação homem-mulher estava ancorada em uma complementaridade, baseada em uma igualdade entre os sexos. Ela expressa o seu pensamento utilizando uma linguagem emprestada de Aristóteles e de Platão, mas, ao mesmo tempo, distanciando-se deles. Ela explica o ser humano com a ajuda dos quatro elementos da natureza (fogo, água, ar, terra).

Aristóteles opõe os homens às mulheres, torna o homem superior à mulher e associa o homem ao fogo e ao vento, e a mulher à água e à terra. Hildegard, ao contrário, associa o homem ao fogo e à terra, e a mulher ao ar e à água. Assim, ela estabelece um equilíbrio entre elementos leves e pesados, inferiores e superiores, que funciona em favor dos dois sexos.

Apoiada em sua leitura dos relatos do Gênesis 1 e 2, ela se opõe novamente a Aristóteles, que exige a submissão da mulher ao homem, por causa do fato de a mulher não controlar as suas emoções. Novamente, Hildegard rompe com essa visão bipolar, opondo-lhe o argumento seguinte: a mulher, tendo sido criada a partir da carne do homem e não da terra, goza de uma maior estabilidade do que o homem. Portanto, ela não só é capaz de controlar as suas emoções, mas o faz a partir de uma posição que a favorece com relação ao homem. Enfim, à convicção bipolar aristotélica do respeito imposto à mulher por parte do homem, ela opõe o respeito que a própria mulher inspira graças à prática das virtudes no seguimento de Cristo.

Hildegard desenvolveu uma surpreendente análise da interação entre fatores psicológicos e biológicos nos homens e nas mulheres. Ela via em um homem cuja sexualidade era feita de fogo e de vento o caráter equilibrado e a fertilidade moderada, um homem que não buscava a posse de uma mulher, mas sim a união com uma mulher enquanto pessoa integral. Esse tipo de homem seria um bom marido, assim como um bom servo de Deus, engajado no celibato.

Igualmente, ela via em uma mulher cujos músculos tinham uma estrutura de terra e cujo sangue era misturado com o ar uma pessoa que gosta da companhia de um homem sem precisar dele. Hildegard reconhecia nesse tipo de mulher uma pessoa "muito fértil", feita para o matrimônio e apta para suportar uma vida de castidade.

Para Hildegard, o homem de grande perfeição devia estar em relação com uma mulher, ou no matrimônio ou em uma relação de amizade espiritual. Sem nenhuma dúvida, Hildegard teria expressado reservas com relação a um celibato eclesiástico imposto a todos os tipos de homem ou uma vida religiosa para todos os tipos de mulheres. Ela sabia muito bem que os homens e as mulheres não eram iguais perante a "mãe natureza".

No campo das virtudes, Hildegard, ao invés, adota uma atitude platônica, que reconhece aos dois sexos a capacidade de exercer as mesmas virtudes. Tanto Platão quanto Hildegard não consideravam o silêncio ou a obediência como virtudes particularmente femininas, e o tomar a palavra em público ou o comando como reservados apenas para os homens.

Em duas ocasiões, Hildegard se recusou a se curvar às injunções do seu Padre Abade e do seu bispo. Ela rompeu com a tradição dos mosteiros duplos e estabeleceu mosteiros onde só as mulheres estavam no comando. A virtude da mulher está em construir e em falar no mesmo nível do homem. Essas atividades não são um sinal de uma abolição da diferença homem-mulher. Hildegard não adotaria a teoria da indiferença dos sexos, já que, no rastro de São Paulo, ela sabe que "o que é fraco no mundo, Deus escolheu para confundir os sábios" (1Cor 1, 27).

Entre os historiadores, o debate está aberto para saber se a própria Hildegard foi para Paris em 1174 ou se o seu legatário literário, Bruno de Estrasburgo, se encarregou disso. Em ambos os casos, o propósito dessa viagem era a inclusão das obras de Hildegard no currículo dos estudos teológicos. Infelizmente, não foram as obras de Hildegard que foram escolhidas pelas autoridades eclesiásticas para enriquecer o currículo acadêmico, mas sim as de Aristóteles, cuja leitura foi tornada obrigatória em 1255.

A busca da verdade como obra comum dos homens e das mulheres havia acabado definitivamente, e a vitória da bipolaridade sexual aristotélica estava garantida pelos próximos mil anos. Hildegard e as suas obras caíram no esquecimento, o que provavelmente as salvou de uma destruição completa ou parcial por parte de um clero que se pensava "definitivamente" acima das mulheres!

Certamente, nos alegramos com a promoção tardia de Hildegard ao posto de "Doutora da Igreja" pelas mesmas autoridades que a condenaram ao silêncio por tantos séculos. Ao longo das próximas festividades, qual imagem de Hildegard será apresentada aos católicos? De minha parte, acreditarei na sinceridade dessa promoção somente se uma mulher do temperamento de Hildegard for convidada pelo Vaticano para pregar um retiro de Quaresma!

Leia também:
Hildegard de Bingen, uma “artista” mística e profética
Hildegard de Bingen: futura Doutora da Igreja

Breve bibliografia que inspirou este artigo:
Ir. Prudence Allen, The Concept of Woman. The Aristotelian Revolution, 750 a.C.-1250 d.C.. Grand Rapids: Eerdmans, 1985.
Barbara Newman, Sister of Wisdom. St. Hildegard’s Theology of the Feminine. Berkeley-Los Angeles: University of California Press, 1987.
Gary Macy, The Hidden History of Women’s Ordination. Female Clergy in the Medieval West. Oxford University Press, 2008.
Régine Pernoud, Hildegarde von Bingen. Conscience inspirée du XIIe siècle. Editions du Rocher, 1994.
DVD Visão: Sobre a vida de Hildegard von Bingen, dirigido por Margarethe von Trotta, estrelando Barbara Sukowa, 2010.

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