segunda-feira, 30 de abril de 2012

Abre, Senhor, os meus lábios...


Na religião judaico-cristã a palavra ocupa um lugar central. Para o judeu, ouvir Deus e orar a Ele fazia parte da sua identidade; ele repete todos os dias o “Shemá Israel” (escuta, Israel...(Dt 6,4-9). Esta prática cotidiana estava ligada diretamente com a saúde, pois o “Shemá”, diziam, 248 palavras que corresponderiam aos 248 órgãos que acreditavam ter o corpo humano. Assim, recitavam as 248 palavras pela “saúde” dos respectivos órgãos do corpo, pois não é só a boca que ora, mas também o fígado, os rins e cada músculo...

Ser “surdo e mudo”, para o hebreu, afastava-o da essência da devoção, pois não podiam usar o ouvido nem a palavra.

Para a psicologia, quem não fala nem escuta não desenvolve a linguagem, característica mais íntima do ser humano. Este é o pano de fundo para considerar esta cura, feita por Jesus com a linguagem não-verbal, linguagem mais primitiva e anterior à palavra. Para o bebê, a linguagem não-verbal (gestos da mãe, olhar, aconchego, alimento...), o constrói como ser humano e assim é humanizado. Também nós precisamos desta cura profunda!

Eis os passos, cheios de simbolismo, que o Evangelista Marcos nos apresenta (Mc 7, 31-37):

1. Jesus conduz o surdo-mudo à parte, longe da multidão... Condução não-verbal, pela mão, longe da massificação. E o surdo-mudo deixa-se conduzir... Confiança originada não na fala, mas em outros sinais captados interiormente. E lá, o deficiente é cuidado na sua limitação.

2. Jesus pôs os dedos nos ouvidos... Literalmente: pôs o dedo na ferida! A mão, fonte de contato, é passagem do amor e do poder curador.

3. Depois, tocou-lhe a língua com saliva... Como a saliva da mãe que aplaca a dor e limpa a ferida do filho. Quem não fez isso alguma vez? Não é a palavra que sai da boca de Jesus, mas o líquido que cura, remetendo a uma comunicação por líquidos, como no útero. Freud diz que o sofrimento vem da sensação de desamparo, quando fomos expulsos do paraíso do ventre materno. Jesus restitui essa ligação primordial, e restaura uma conexão que faz suportar o “desamparo” com o amparo da compaixão.

4. Levantando os olhos ao céu... para o alto, em direção ao Pai. É preciso remete-se sempre ao Pai, origem de toda vida e ser de novo “matriciado” e gerado. Com esse olhar, Jesus introduz aquele que não fala nem ouve no “Shemá Israel”: O Senhor é o nosso único Deus!

5. Jesus suspirou... "Ruach" solidário, sopro do Espírito, presença invisível de Deus e anúncio do sopro que logo passará pelas cordas vocais e pela língua, para ser transformado em palavras.

6. E disse-lhe: ‘Effatha’ (abre-te!). Depois dos gestos não-verbais e primitivos, vem a força da palavra. E o surdo-mudo começa a falar; insere-se nos devotos que ouvem a Deus e proclamam que Ele é o único. Sua cura revela que o Reino de Deus chegou.

Uma pergunta: O que está mudo em você? (O que não fala e deveria dizer? Que palavras se transformaram em condutas agressivas?)

- Pe. J. Ramón F. de la Cigoña sj, em seu blog Terra Boa

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