Foto: Alex Ruiz
Com certeza, você esbarra em amigos e vizinhos no shopping, no cinema, em restaurantes e barzinhos, mas hoje dificilmente conhece alguém próximo que sai de casa para ir à missa aos domingos. O que antes era uma obrigação a cumprir, uma espécie de ritual familiar, com direito a roupa nova, hoje nada mais é do que uma cena do passado distante.
Os pais não se sentem mais à vontade em impor uma religião às crianças, como há 50 anos, quando a doutrina passava de pais para filhos. Sem querer obrigá-los os filhos a seguir os mesmos passos, os pais – em sua maioria criados na religião católica – não sabem mais como agir. (...)
Para responder a essa inquietação dos pais, especialistas explicam por que continua sendo imprescindível transmitir aos filhos conceitos de fé, amor e respeito. O teólogo e escritor Leonardo Boff é um dos que ensinam aos pais como apresentar o sagrado às crianças. “Nunca passar a ideia de um Deus vigiador e castigador. Isso gera medo. E o que se opõe à fé não é a não fé, mas o medo. A criança com medo tem dificuldades de crer, de confiar, de se entregar a alguém.”
Emerson Pedersoli, psicólogo com formação clínica e especialista em psicologia da educação, sempre envolvido com casais e famílias, confirma: “Os pais estão realmente perdidos. Vieram de uma educação rígida, mas não conseguiram achar o meio do caminho. Saíram do extremo da rigidez para a liberdade em excesso.”
Nos cursos e palestras que ministra, Pedersoli conversa muito com os pais e percebe que, hoje, eles tendem a deixar a orientação espiritual para o futuro, quando os filhos estiverem crescidos. “Mas a ideia de deixá-los crescer sem apresentar nenhum parâmetro já é deixá-los perdidos”, assegura. Aí, pode ser tarde, “porque eles não terão como decidir, porque não foram orientados”.
Ele acredita que em tempos de grande liberdade de escolha, dar aos filhos orientação espiritual é “fundamental”, mas avisa: “Costumo dizer que é preciso associar a fé ao raciocínio. E não ter uma fé cega, do tipo acreditar porque estão dizendo. Ao contrário: acredito porque pesquiso, estudo e aprofundo”.
Compreensão do mundo
Nem sempre pais e filhos têm a mesma opinião quando o tema é espiritualidade. Especialistas sugerem que os adultos não rotulem ou usem juízos de valor para tratar do assunto com as crianças Nem a rigidez de antes nem a liberdade excessiva. Como os pais podem encontrar o meio do caminho e apresentar o sagrado às crianças? Quem responde é Leonardo Boff (...). Depois de abandonar suas funções de frade franciscano (...), Boff vive atualmente no Jardim Araras, região campestre ecológica do município de Petrópolis (RJ), e compartilha vida e sonhos com a educadora Márcia Maria Monteiro de Miranda.
“Creio que devemos entrar pela porta certa, que é a inteligência emocional. A criança não entende conceitos que não passam por alguma experiência ou metáfora. Deus é uma realidade grande demais para ela fazer uma representação”, observa.
Ele crê que os pais devem primeiro mostrar à criança o sagrado. “Ela é sensível ao sagrado. A gente faz isso entrando numa igreja. Ela percebe que lá é outra lógica, diferente da rua, do mercado, dos shoppings. Na igreja há silêncio ou se fala baixinho, há espaços altos, as figuras, os altares. Dessa experiência nasce o respeito, a veneração: estamos diante de algo importante. É preciso dizer que Deus mora ali. Mas Ele gosta mesmo de morar no coração da criança, protegendo-a, iluminando-a, fazendo-a querida para as outras pessoas.”
Outra experiência importante do sagrado, segundo o teólogo, é mostrar as estrelas. “Sempre há noites estreladas, mesmo nas grandes cidades. E perguntar: ‘Quem se esconde atrás daquelas estrelas?’, ‘Quem faz com que elas se movimentem?’, ‘Quem criou aquele céu todo?’. E aí dizer: ‘Foi Deus quem quis embelezar nossas noites e alegrar nossos olhos. Todos nós nascemos das estrelas, porque tudo o que está no nosso corpo veio delas, especialmente do Sol. Todos nós queremos brilhar. E com razão. Porque devemos ser como as estrelas: nascemos para brilhar.’”
Ele aponta outra experiência importante – o nascimento de um bebê. “A criança logo se interessa: ‘De onde veio?’. Sabe que veio da mãe. E a mãe veio de onde? De quem ela recebeu a criança? E daí explicar que há no céu um pai carinhoso e uma mãe bondosa que nos amam e nos mandam essas crianças. Cada criança é um sinal de amor de Deus. Enquanto nascerem crianças é prova de que Deus ainda nos ama e ama o mundo.” O contato com o mar também fala do sagrado: “É a experiência da majestade e da grandeza, que inspira respeito e cuidado. Deus tem majestade. É um mar de amor e de vida”.
Outra forma é despertar a criança para a beleza da natureza: “De uma flor, de um gatinho que nasce, de um cachorrinho, de um pássaro ou mesmo o descortinar de uma paisagem a partir de um lugar alto. Aí emerge o mistério da vida e da beleza. Deus é aquele que dá vida e faz tudo belo neste mundo”.
Por fim, o teólogo constata: “A criança é muito sensível à oração. À noite, antes de deitar, os pais podem ensinar pequenas orações, como ‘Com Deus me deito, com Deus me levanto, com o Pai, o Filho e o Espírito Santo’. Há tantas fórmulas… Cada família tem a sua. Conheço pais que são ateus e as crianças pedem à mãe para rezar. E aí é importante encenar a oração: fazer silêncio, juntar as mãos, pensar no mais alto do céu, nas estrelas e num grande pai bom ou numa grande mãe bondosa. E só quando estiverem concentrados, então fazer a oração. Geralmente, pedem para repetir. Mas não troquem as fórmulas de oração. As crianças querem sempre a mesma fórmula”.
Estado de Alma
Professora do Instituto de Ciências Humanas da PUC Minas e mestre em ciências da religião, Luzia Werneck acha importante que os pais trabalhem com as crianças a compreensão do mundo: “Se você trilha o caminho da espiritualidade, tudo fica mais leve”.
Para Luzia, a questão da espiritualidade, da fé e da religião não deve ser uma imposição. “Os pais devem pegar a criança pelas mãos e trilhar esse caminho da compreensão do mundo. Conheço pais que são ateus, mas ensinam valores humanos. Será que posso afirmar que não há espiritualidade ali, mesmo que eles sejam ateus?”
Espiritualidade, para Luzia, é “olhar o mundo como se fosse a primeira vez. Não viciar o olhar. Até para conversar sobre a existência de Deus você não pode impor sua opinião. Se você fizer isso, impede o outro de compreender o mundo a partir da própria vivência”. Ela cita uma letra de um canto gregoriano dos monges trapistas, que diz o seguinte: ‘O mundo é um grande berço e nós temos que pensar que mãos vão embalar esse berço. Quando um filho nasce, o lar é um grande berço. E devemos saber que mãos vão conduzir esse sujeito e qual a espiritualidade que vai permear a vida. Para mim, espiritualidade é um estado de alma’”.
Sem filhos, Luzia, no entanto, tem sete sobrinhos. “Converso muito com eles e a espiritualidade acontece em qualquer hora e lugar. Outro dia, passeando num sítio para olhar as árvores e os pássaros, nos deparamos com um ninho onde a fêmea tomava conta dos filhotes. Paramos para observar e conversar sobre o saber cuidar, que não é só da condição humana.”
- Déa Januzzi, para o Estado de Minas
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