Foto: Craig Easton
Qohelet, autor do Eclesiastes, é o testemunho de um Deus pobre que está perto de nós, não em virtude da sua onipotência, mas da sua "encarnação", e é nessa fraternidade que ele salva e se revela.
A análise é de Gianfranco Ravasi, cardeal presidente do Pontifício Conselho da Cultura, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 25-11-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o artigo, aqui reproduzido via IHU, com grifos nossos.
Um pseudônimo hebraico, Qohelet, remete ao vocábulo qahal, "assembleia", em grego ekklesia, de onde o greco-latino Eclesiastes se tornou a titulação comum no Ocidente cristão de uma obra objeto de diversas decifrações ainda.
Interpretado como texto pessimista, cético, considerado expressão da ideologia da aurea mediocritas, influenciado pela filosofia grega do século III a.C., considerado um guia ascético de desapego e desprezo do mundo à parte da tradição cristã, ele foi, nas últimas décadas, reportado por alguns exegetas ao leito reconfortante do otimismo por causa de algumas passagens, sendo específico, sete (2, 24-25; 3, 12-13; 3, 22; 5 ,17; 8, 15; 9, 7-9; 11, 7-10), das quais surgiria um apelo ao sereno gozo das escassas alegrias que a vida reserva.
A essa interpretação também se aproximaria, paradoxalmente, o escritor francês Albert Camus, quando, no Mito de Sísifo, vê em Don Giovanni "um homem nutrido pelo Eclesiastes", "um louco que é um grande sábio", porque "esta vida o satisfaz" (...)
O tom dominante é o da inconsistência, emblematicamente encarnada no vocábulo caro a Qohelet, hebel/habel, que ressoa 38 vezes, às vezes na forma superlativa habel habalîm, o célebre vanitas vanitatum da versão latina da Vulgata: o termo alude à fumaça, ao vapor, ao sopro e, portanto, define a realidade como vazio, vacuidade, caducidade irreversível. (...)
A rachadura que revela a presença do hebel no ser e no existir se encontra também na inteligência humana. Qohelet é um sábio, um escriba, um intelectual (12, 9-10); despreza estupidez, em 85 vezes introduz as suas reflexões em primeira pessoa, consciente de uma originalidade do seu pensamento. Porém, o resultado final do conhecer é áspero: grande sabedoria é grande tormento, quem mais sabe mais sofre (1, 13-18).
"Até o filósofo que acredita guiar o mundo" – escreve um comentarista, Daniel Lys – "não guia mais do que o vento. O paradoxo da sabedoria é que a sabedoria suprema consiste em saber que a sabedoria é vento quando pretende ser suprema".
Não há, então, nenhuma diferença entre sabedoria e estupidez? Não, responde Qohelet, há uma diferença e é terrível: o sábio é atormentado, o ignorante é hilário na sua vulgaridade. Só o inteligente vê o vazio que corrói o ser e a morte que permeia todo ato que se realiza debaixo do sol. (...)
O Deus de Qohelet é um Deus absconditus: "A imensidão de Deus não tem, para Qohelet, nada de emocionante; maravilha em si, permanece pura impenetrabilidade" (Horst Seebass).
Os bons motivos que Deus – chamado 32 vezes de 40 de ha-'elohîm, isto é, "o Deus", de modo frio e distante – pode ter são para nós isentos de incidência, porque permanecem desconhecidos para nós. A sua obra contém dentro de si uma incompreensibilidade tal que extingue qualquer interrogação e torna vã não só a contestação, mas também qualquer tentativa de decifrar o seu sentido (veja-se sobretudo 4 ,17 - 5, 6).
Nesse ponto, surge uma interrogação: como podemos, depois de ter lido todas as páginas desse autor de temas muitas vezes desconcertantes e até provocadores, definir Qohelet como "palavra de Deus"? Ou ainda, como fez o cânone das Escrituras judaicas, e, portanto, a comunidades judaica e cristã, acolher em seu próprio interior um texto aparentemente "escandaloso"?
Certamente, a interpretação "ascética", que usou a obra como se fosse um apelo ao desapego das coisas, ajudou na inserção de Qohelet nas Escrituras, ou, pelo menos, serviu para amortecer a provocação como, além disso, aparece no epílogo do redator final que reduz o ensino Qohelet à dogmática sapiencial clássica (12, 13-14).
Os rabinos, para "justificar" Qohelet, também recorreram aos seus sete apelos ao gozo das alegrias lícitas, apelos distribuídos na obra, ou ao fato curioso e alegórico de que a primeira e a última palavra do livro (respectivamente: dibrê, "palavras", e ra', "perverso, mau") encontram-se na Torá, isto é, a Lei!
Na realidade, há um caminho para compreender como essa teologia tão nua e pobre possa, em seu bom direito, fazer parte e ser coerente com a "Revelação" bíblica. Para a Bíblia, a palavra divina se encarna e se expressa através da história e da existência. Ela, por isso, também adquire míseros revestimentos, pode se fazer pergunta, súplica (Salmos), até imprecações (Jó) e dúvida (em Qohelet). Quer-se, assim, afirmar que, na própria crise do homem e no silêncio de Deus, pode-se esconder uma palavra, uma presença, uma epifania secreta divina. O terreno humano da interrogação amarga, assim como o de Jó, pode ser misteriosamente fecundado por Deus.
A Revelação, portanto, pode passar por meio das escuridões de um homem como Qohelet, desencantado e em crise de sabedoria, já perto da fronteira do silêncio e da negação. O silêncio de Deus e da vida não é, para a Bíblia, necessariamente uma maldição, mas é uma paradoxal ocasião de encontro divino ao longo de estradas inéditas e surpreendentes. Qohelet é, portanto, o testemunho de um Deus pobre que está perto de nós, não em virtude da sua onipotência, mas da sua "encarnação", e é nessa fraternidade que ele salva e se revela. Tweet
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