Foto: Jennifer Squires Ross
Para o teólogo mineiro Faustino Teixeira, o livro "Jesus. Aproximação histórica" (Petrópolis: Vozes, 2010), de José Antonio Pagola, tem uma tripla destinação: é dirigido “aos cristãos e cristãs que perderam o contato com a mensagem viva de Jesus, aos que muito ignoram a seu respeito e aos que se decepcionaram com o cristianismo real e buscam outros caminhos de afirmação de sentido”. Na entrevista que segue, concedida à IHU On-Line por e-mail, Teixeira destaca que, “com base nos recursos da investigação moderna e contemporânea, e o apoio interdisciplinar, Pagola busca aproximar-se historicamente da figura de Jesus. O seu objetivo é facultar o ‘contato vivo com sua pessoa’, sem cair em abstrações metafísicas, ainda que sublimes, sobre o seu ser. Assinala sua dificuldade em crer ‘num Cristo sem carne’, ou acessar a Jesus como mistério que dá vida só mediante a doutrina. Adverte sobre o risco de converter Jesus Cristo, de forma exclusiva, a um ‘objeto de culto’, enquanto ‘ícone venerável’, mas destacado de sua condição de profeta do reino de Deus. Esse é o risco de um Jesus sem reino, de que fala também Jon Sobrino . Não há como acessar ao verdadeiro significado de Jesus destacando-o de sua relação com o reino de Deus. Como indica Pagola, ‘o que ocupa o lugar central na vida de Jesus não é Deus simplesmente, mas Deus com seu projeto sobre a história humana’.
Faustino Teixeira é doutor e pós-doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma. É professor-associado e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (PPCIR-UFJF), em Minas Gerais. É autor e organizador de diversos livros. Ao lado de Renata Menezes, é organizador de "Catolicismo plural: dinâmicas contemporâneas" (Petrópolis: Vozes, 2009).
Confira a entrevista, aqui reproduzida via Amai-vos.
IHU On-Line - A quem se destina esse Jesus de Pagola?
Faustino Teixeira - Na apresentação desta nona edição de seu livro, Pagola já manifesta o seu fascínio por Jesus. Sublinha que ele “é o melhor que a humanidade produziu. O potencial mais admirável de luz e de esperança com que nós seres humanos podemos contar”. Argumenta que recuperar essa memória de Jesus é fortalecer o horizonte da história, que ficaria muito empobrecido com o seu esquecimento. O que o autor intenta fazer nesta excelente obra é buscar uma aproximação histórica com base no “Jesus recordado”, ou seja, na lembrança que ele deixou no núcleo de seus seguidores. Sua intenção com a obra é colocar Jesus à disposição de todos, pois sua vida, atuação e mensagem não são propriedade exclusiva dos cristãos, mas constituem um “patrimônio da humanidade”. É uma obra que tem, portanto, uma tripla destinação. É dirigida aos cristãos e cristãs que perderam o contato com a mensagem viva de Jesus, aos que muito ignoram a seu respeito e aos que se decepcionaram com o cristianismo real e buscam outros caminhos de afirmação de sentido. Pagola assinala que sua opção em favor de uma perspectiva narrativa da vida de Jesus intenciona “aproximar o leitor de hoje, crente ou não, à experiência vivida pelos que se encontraram com Jesus, e ajudá-lo a sintonizar com a Boa Notícia que descobriram nele”. E não há como aproximar-se desse “poeta da compaixão” sem sentir-se profundamente atraído por ele e convocado ao seu seguimento.
IHU On-Line - Jesus aparece na obra de Pagola como o “poeta da compaixão”, o “curador da vida” e o “defensor dos últimos”. É possível verificar aí o segredo de seu fascínio?
Faustino Teixeira - Não há dúvida alguma sobre isso. O autor consegue apresentar com imensa felicidade essa faceta extraordinária de Jesus como um buscador singular de Deus, mas de um Deus que tem entranhas de compaixão e misericórdia. Isso me faz lembrar uma reflexão de Roger Haight, em seu livro Jesus símbolo de Deus (1999). Dizia ali que Jesus era teocêntrico, mas que ironicamente o que ele apresentava ao mundo era um Deus antropocêntrico, ou seja, um Deus “intrinsecamente interessado e preocupado com o bem-estar de suas criaturas”. Pagola sublinha em seu livro que a melhor metáfora para expressar a ideia de Deus é a do “Deus compassivo”. A profunda paixão de Jesus pelo reino de Deus, que é o centro referencial de sua vida, faz com que ele traduza na história, em gestos efetivos, a Boa Notícia que ele recebeu de seu Pai. Animado pela experiência do Deus da vida, Jesus anuncia a todos uma notícia que traduz mudança de perspectiva: a de que “Deus já está aqui buscando uma vida mais ditosa para todos”. Tudo isso foi motivo de impacto e sedução em seu tempo. A maneira peculiar com que falava aos outros sobre Deus e seu projeto de vida provocava entusiasmo e paixão nos setores mais simples da Galileia. Era mesmo o que precisavam ouvir: a notícia de que “Deus se preocupa com eles”. Jesus não era somente o “poeta da compaixão”, mas também “curador da vida”. Trata-se de um curador singular, pois despertava nos outros a vontade de viver com dignidade e sinalizava uma relação distinta com o mistério do Deus que abre novos caminhos. Na verdade, como bem expressa Pagola, Jesus contagia saúde, vida e alegria: “Seu amor apaixonado à vida, sua acolhida afetuosa a cada enfermo ou enferma, sua força para regenerar a pessoa a partir de suas raízes, sua capacidade de transmitir sua fé na bondade de Deus. Seu poder de despertar energias desconhecidas no ser humano criava as condições que tornavam possível a recuperação da saúde”. Outro importante traço de Jesus é a sua acolhida aos pobres. Identifica-se como “defensor dos últimos”. Na perspectiva de sua peculiar atuação, sinaliza que o caminho que leva a Deus “não passa necessariamente pela religião, pelo culto ou pela confissão de fé, mas pela compaixão para com os ‘irmãos pequenos’”. Trata-se da “grande revolução religiosa” provocada por Jesus, que abre uma via nova de acesso a Deus, que passa pela acolhida e compromisso com o outro necessitado, sobretudo o mais pobre. E levar a cabo o seguimento de Jesus, como lembra Pagola, é também “pôr no centro de nosso olhar e de nosso coração os pobres. Situar-nos na perspectiva dos que sofrem. Fazer nossos seus sofrimentos e aspirações. Assumir sua defesa”.
IHU On-Line - Um dos traços novidadeiros do Jesus de Pagola é a forma como trabalha o tema de Jesus e as mulheres, inclusive sublinhando o papel protagônico das mesmas no seu discipulado. Há nesse âmbito um campo rico para o trabalho de reflexão?
Faustino Teixeira - De fato, Pagola reserva um lugar de grande destaque às mulheres no discipulado de Jesus. A viva imagem que passa em sua obra é a de Jesus como amigo das mulheres, e num tempo em que elas viviam uma precária situação, de rejeição e exclusão. Jesus lança um olhar diferente sobre elas, tornando-as visíveis e presentes. A palavra chave aqui é a acolhida. Pagola mostra como as mulheres fizeram parte do grupo dos discípulos desde o início, permanecendo todo o tempo fiéis a Jesus e à sua causa. O autor sugere que elas estiveram também presentes na última ceia e assumiram um papel protagônico na origem da fé pascal. Muito rica também a reflexão do autor sobre Maria Madalena (Maria de Mágdala), a melhor amiga de Jesus. Ele desfaz preconceitos a respeito e resgata a imagem de Madalena como “seguidora fiel de Jesus e testemunha eminente do Senhor ressuscitado”, tão viva na Igreja do Oriente.
IHU On-Line - Em artigo publicado em 1993, Jon Sobrino afirmara que o maior receio do terceiro mundo é um “Cristo sem Reino”, ou seja, uma concentração no mediador que relega a segundo plano as exigências da mediação do Reino. Em semelhante linha de reflexão, Pagola assinala que na vida de Jesus o lugar central foi ocupado não por Deus simplesmente, mas “Deus com seu projeto do reino de Deus”. Como explicitar melhor essa questão?
Faustino Teixeira - Com base nos recursos da investigação moderna e contemporânea, e o apoio interdisciplinar, Pagola busca aproximar-se historicamente da figura de Jesus. O seu objetivo é facultar o “contato vivo com sua pessoa”, sem cair em abstrações metafísicas, ainda que sublimes, sobre o seu ser. Assinala sua dificuldade em crer “num Cristo sem carne”, ou acessar a Jesus como mistério que dá vida só mediante a doutrina. Adverte sobre o risco de converter Jesus Cristo, de forma exclusiva, a um “objeto de culto”, enquanto “ícone venerável”, mas destacado de sua condição de profeta do reino de Deus. Esse é o risco de um Jesus sem reino, de que fala também Jon Sobrino. Não há como acessar ao verdadeiro significado de Jesus destacando-o de sua relação com o reino de Deus. Como indica Pagola, “o que ocupa o lugar central na vida de Jesus não é Deus simplesmente, mas Deus com seu projeto sobre a história humana”.
IHU On-Line - É plausível fazer uma aproximação do livro de Pagola com as obras inaugurais da teologia da libertação no âmbito da cristologia?
Faustino Teixeira - Essa comparação surge de forma imediata. Todos os que fomos formados na perspectiva da teologia da libertação sentimos grande familiaridade com a reflexão apresentada por Pagola. Os temas e o enfoque são muito comuns. Não há como deixar de recordar as clássicas passagens de Jesus Cristo Libertador, de Leonardo Boff ou de Jesus na América Latina, de Jon Sobrino. A leitura do livro de Pagola traz novamente à baila reflexões que marcaram decisivamente a formação de inúmeros teólogos e teólogas latino-americanos e nos provoca a todos para um exercício teológico mais ousado e corajoso nesse tempo de encurtamento eclesial.
IHU On-Line - Em sua obra, Pagola busca distinguir a ação de Jesus com respeito à missão de João Batista. Como sinalizar essa diferença?
Faustino Teixeira - Essa foi uma dentre outras questões que provocaram a reação ao livro de Pagola. Sabemos das resistências impostas ao livro pela Comissão Episcopal para a Doutrina da Fé da Conferência Episcopal Espanhola. Em nota a respeito, publicada em junho de 2008, essa comissão apontou algumas dificuldades percebidas pelos bispos, uma das quais tocava a questão do “obscurecimento da realidade do pecado e do sentido do perdão”. Para os bispos da Comissão, a contraposição estabelecida por Pagola entre a missão de João Batista e Jesus acabou silenciando sobre a realidade do pecado. Mas não é assim que Pagola percebe as coisas. Há que entender esta distinção com base no âmbito geral da obra e de seu objetivo. De fato, Pagola estabelece uma diferença entre as duas atuações. Assim como o profeta João Batista, que o precede, Jesus busca captar a vontade de Deus, mas num horizonte distinto. Seu estilo de vida é festivo, marcado pelo tônus da alegria. Vai dedicar-se “a algo que João nunca fez: curar os enfermos que ninguém curava, aliviar a dor de pessoas abandonadas, tocar leprosos que ninguém tocava, abençoar e abraçar crianças”. As palavras de Jesus não traduzem a “dura linguagem do deserto”, mas é envolvida de esperança e poesia. O que busca trazer é uma Boa Notícia, de uma alegria que será para todos. Enquanto a missão do Batista estava vinculada à questão do pecado, o projeto de Jesus tinha como objetivo algo mais amplo e universal: aplacar o sofrimento dos mais excluídos e necessitados, anunciando-lhes uma Boa Notícia. Isso é o que era mais determinante para ele. Isso não significa, como admite Pagola, que o pecado não o preocupasse, mas para ele o pecado mais grave e de maior resistência ao anúncio do reino “consiste precisamente em causar sofrimento ou tolerá-lo com indiferença”.
IHU On-Line - Como podemos responder hoje à pergunta: quem foi Jesus?
Faustino Teixeira - Jesus foi alguém apaixonado pelo reino de Deus e que viveu em profundidade a dinâmica de acolhida, hospitalidade e compaixão pelos outros. Foi alguém que trouxe à tona a possibilidade da alegria e da esperança em tempos propícios à apatia e exclusão. Sua mensagem ou Boa Nova colocou no centro do cenário a bem aventurança dos pobres e a exigência de partilha de sua causa. Concordo literalmente com Pagola quando afirma que não há como aproximar-se dele sem sentir-se atraído e fascinado por sua pessoa, pelo carinho, delicadeza e ternura com que trata os outros, independente de seu gênero, etnia ou religião. O que fala mais alto em Jesus é o seu testemunho de vida, e é este que devemos buscar seguir em nossa trajetória existencial. É importante sublinhar também que o segredo desta atuação profética está na forma singular de sua relação amorosa com Deus. É Deus mesmo, com seu projeto, que está no centro de sua vida, como Presença que o transforma interiormente e faculta a tonalidade de sua vida de abertura, acolhida e compromisso gratuito com os outros. E Jesus apresenta-nos um Deus profundamente interessado pelos humanos, um Deus de entranhas de compaixão, um Deus que não é propriedade de religião alguma pois é Pai de todos, um Deus que é movimento e transformação. Todos podem invocá-lo como Pai, assim como o fez Jesus. Está acessível a qualquer um, manifestando-se abertamente a partir do segredo do coração.
(Por Graziela Wolfart) Tweet
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