Foto: Jeff Clow
Em dezembro de 2006, a Revista IHU On-line teve como tema a pergunta "Por que ainda ser cristão?", respondida em forma de depoimentos e testemunhos, que reproduziremos aqui espaçadamente. Esperamos com isso convidar também você, leitor, a refletir sobre a importância da fé e do cristianismo, qualquer que seja o lugar por eles ocupado em sua vida. Um forte abraço! :-)
Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, em Letras Neolatinas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), em Teologia pela Hochschule Sankt Georgen, em Frankfurt, Alemanha, o João Batista Libânio, SJ, é também mestre e doutor em Teologia, tendo cursado o seu Doutorado na Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG) de Roma. Libânio leciona Teologia no Instituto Santo Inácio de Belo Horizonte, e é autor de diversos livros publicados.
A relevância de Jesus e sua mensagem
A epístola aos hebreus manifestou certeza impressionante ao afirmar que “Jesus Cristo ontem e hoje é o mesmo também pelos séculos” (Hb 13, 8). O autor ousou dizer logo no início do cristianismo que Jesus tinha valor e significado permanentes. E vinte séculos depois fazemo-nos a mesma pergunta e damo-nos a mesma resposta. Se Cristo permanece até hoje com extrema significação, ser seu seguidor participa da mesma relevância. E por quê? Distingo três níveis de relevância de Jesus e, por conseguinte, de adesão à sua mensagem.
Em nível puramente sociocultural. A proposta de sociedade feita por Jesus conserva enorme atualidade e permanece ainda no nível da utopia, tão grandiosa fora. Depois de dois milênios os humanos não conseguiram, embora tivessem tentado de várias formas, realizar o projeto humano de convivência imaginado por Jesus. Os princípios básicos são extremamente simples na formulação. Indicarei alguns deles. A lei fundamental da relação humana define-se pelo mandamento novo de que nos amemos uns aos outros, assim como o Senhor nos amou (Jo 13, 34). E como ele nos amou? Até o perdão dos inimigos: “Pois eu vos digo: Amai vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem, para serdes filhos de vosso Pai que está nos céus” (Mt 5, 44s). E no sermão escatológico teceu a página do amor anônimo: dar de comer a quem tem fome, de beber a quem tem sede, acolher os estrangeiros, vestir os nus, visitar os doentes e encarcerados (Mt 25, 35). Imaginemos uma sociedade construída sobre esse alicerce do amor radical e preferencialmente pelos segregados sociais. Se muitos consideraram o saldo positivo maior do primeiro mandato do Governo Lula a bolsa família, que pensar de toda a sociedade estruturar-se em torno da proposta de Jesus e não simplesmente um programa periférico? Vale a pena socioculturalmente empenhar-se em tal utopia. O sonho socialista hauriu muito da proposta de Jesus. Mas fracassou porque esqueceu um ingrediente necessário para Jesus: tal opção pelo amor não vem imposta, mas nasce da conversão do coração. S. Paulo usa a expressão de “homem novo” em contraste com o homem velho, feito de egoísmo, da autopromoção, altamente cultivado na sociedade capitalista.
Alcance universal
A sociedade moderna da técnica e da ciência permanece fundamentalmente no nível dos meios, dos instrumentos. Não atinge os valores. E a proposta de Jesus ultrapassa tal patamar. O alcance universal lhe vem precisamente por não se deter na imediateidade instrumental, que está sempre a variar, mas em falar à dimensão última do ser humano enquanto pessoa e sociedade. Por isso guarda valor definitivo e não presas a conjunturas geoistóricas.
A proposta de Jesus vai além do projeto histórico-social. Afeta a visão e a compreensão de Deus. É religioso. Aqui também mantém atualidade e relevância única. A imagem de Deus nas culturas oscila entre dois extremos. As tradicionais alimentam a onipotência e a arbitrariedade de um Ser Supremo que os ritos administrados pelos sacerdotes apaziguam. Daí vem o poder sacerdotal até às raias do despótico. Dele o povo simples, temeroso depende e a ele se submete. A cultura moderna lançou fora tal domínio de Deus. No primeiro momento, pensou-se que foi libertação. No entanto, ao defender o ateísmo, ela gestou vida sem sentido e sociedade sem fundamento ético. O preço não foi menor. Em vez do poder clerical, outros assumiram-lhe o bastão não menos severo e ameaçador. A relevância da proposta cristã manifesta-se precisamente em contraposição aos extremos. Liberta-nos das carrancas divinas, do poder totalitário da religião ao anunciar um Deus Pai. O amor é-lhe a natureza do próprio ser. Logo tudo o que se opuser ao amor contradiz a figura do Deus cristão. Em resposta ao secularismo ocidental, oferece fundamento absoluto para a ética: Deus amor. Ela não se tece de mero consenso, laboriosamente construído entre nós, mas decorre da exigência do amor ao irmão, fundado no amor de e a Deus. O amor é a única realidade que consegue vincular internamente a liberdade sem ser opressão. Paulo formulou-o com clareza ao dizer que a única coisa que nos obriga é o dever da caridade. “A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, a não ser o amor com que deveis amar-vos uns aos outros. Porque quem ama o próximo, cumpriu a Lei” (Rm 13, 8). O anúncio de um Deus que é Pai e amor guarda enorme atualidade.
Mais profundamente, ser cristão permanece ainda mais claramente válido. Ser cristão significa seguir a Jesus Cristo, filho de Deus. Deus nunca é transitório. Não se pode crer em Deus por um tempo. Já não seria crer. Tudo que afeta a Deus é absoluto, definitivo. As mudanças culturais tocam unicamente maneiras concretas de expressar a condição cristã, mas não põem em questão o fato de ser cristão. Enquanto Deus for Deus, ser cristão, aderindo a ele na pessoa do Filho, manterá sentido. A realidade cristã se desfaria se o último sentido da realidade humana fosse o nada, o absurdo. Mas se for o Ser, o Sentido, vale a pena entregar-se àquele que é a palavra escatológica de Deus na história: Jesus Cristo.
“A fé não é racional, mas razoável”
Antes de tudo, a fé não se dependura no final de um raciocínio. Isso é filosofia. Nem se baseia na evidência de fatos constatáveis. Deixemo-lo para as ciências. A fé existe primeiro como dom de Deus. A iniciativa vem de cima. Aí está o conteúdo central da conversa de Jesus com Nicodemos. Faz-se mister nascer do alto, da água e do Espírito, para ver o Reino de Deus, isto é, para seguir a Jesus, ser cristão (Jo 3, 3). Tudo começa com o primeiro toque de Deus. J. Alfaro, nas pegadas de Santo Tomás, usa a bela expressão que a fé se inicia no coração humano por meio da “atração da Verdade primeira”. De dentro da fé, buscamos razões de credibilidade que nos permitem justificar a nós mesmos e a outros que o peçam a “razoabilidade” da fé em Cristo, do fato de ser cristão. Há duas palavras parecidas, mas de sentidos bem diferentes a respeito da reflexão em curso. A fé não é racional, mas razoável. Não é racional, como dissemos acima porque não se conclui com evidência de nenhum argumento racional. Crer ou não crer não resulta de ser inteligente ou rude, intelectual ou iletrado. A fé não se deixa reduzir totalmente às categorias da racionalidade humana de alguma filosofia. No entanto, é razoável. Significa que não renunciamos a racionalidade de ser humano para crer. Portanto, é dolorosamente falsa a afirmação repetida por alguns que se julgam heróis na fé: “creio porque é absurdo”. No absurdo, não se pode crer. A fé é entrega radical a Deus. E o cristão reconhece em Jesus o Filho, o enviado, o mensageiro escatológico de Deus. E por isso crê nele. Para tal encontra mil sinais de credibilidade, de razoabilidade por meio do testemunho dos discípulos e da longa Tradição de dois mil anos de fé cristã. As mudanças culturais pedem contínuas reinterpretações da maneira de ser cristão e do conteúdo fundamental dessa fé.
Trindade, ressurreição e parusia
Agora falarei sobre esses três pontos importantes: Trindade, ressurreição e parusia ou vinda gloriosa final de Jesus. De cada uma indicarei um elemento de razoabilidade para a cultura moderna. Para a Trindade, basta citar a bela frase de L. Boff: “No princípio está a comunhão dos Três e não a solidão do Um”. Confessar a Trindade significa, entre outras coisas, dizer que o último fundamento do ser humano é a comunhão com os outros e com o Outro, e não a solidão egoísta. Imaginem as conseqüências de asserção tão densa e profunda para uma economia, política e cultura da comunhão. A ressurreição afirma que nada do ser humano de bondade e de justiça se perde e que ele, na totalidade – isso significa corpo e alma –, viverá da e para a eternidade de Deus. Somos cidadãos eternos.
A parusia afirma a glorificação geral da história e do cosmos, passando pelo ato purificador e recriador de Deus. Tais verdades da fé cristã apontam valores que ajudam a conviver melhor com os outros seres humanos, com os animais e com a natureza. Na base da convivência, está a comunhão. Se o cristão se convence de que se origina da comunhão trinitária e anuncia-a aos outros, resulta-lhe a necessidade de antecipar nas sociedades terrestres a comunidade que será o convívio eterno. A ressurreição e a parusia mostram a raiz última e profunda do respeito na relação com as coisas. Não se trata unicamente do argumento centrado no ser humano de que o ecocídio nos destrói a nós também, mas avança-se a uma sacralidade transcendente. Base para a mística ecológica.
Fé e razão – incompatíveis ou complementares?
Tal foi o tema central da luminosa encíclica de João Paulo II Fides et ratio. Funda-se na lídima tradição tomista. Deus é o principio de ambas. A revelação é autocomunicação de Deus ao ser humano em vista de sua salvação. O fiel, que crê, estriba-se nela. Acolhe-a como fundamento último de sua existência e salvação. A razão humana é criada por Deus como a faculdade feita para a verdade. Deus é a verdade no ser e os conhecimentos humanos participam de tal verdade. Qualquer choque vem de falsa intelecção de uma das duas realidades ou de ambas. Portanto, cabe dialogar para elucidá-lo. Na imagem de João Paulo II, fé e razão são as duas asas para voarmos até Deus. Seguindo ainda o itinerário do Papa, quando fé e razão se divorciam, ambas sofrem detrimento. A fé perde a necessidade de buscar razoabilidade e razões que a ajudem a perceber que ela é um ato do ser humano. Cai facilmente em emocionalismo, fanatismo, fundamentalismo, perigosos pela inerente irracionalidade. A razão, ao afastar-se da fé e ao arvorar-se em última instância de verdade e de bem, corre o risco do desvario orgulhoso, da autonomia absoluta, que, quando se percebe frágil e ameaçada pelo erro, arrisca viver no provisório sem horizontes de transcendência. E assim abdica da dignidade de chegar à Verdade para a qual foi criada, contentando-se com o regime de verdades fracamente relativas, sem garantia de universalidade e definitividade.
Se parece tão simples a relação entre fé e razão, por que tantos problemas, não só no passado, mas até hoje? A revelação de Deus, absoluta e fundamento da fé, é transmitida no interior da cultura humana passageira e limitada. Confundir tal condição do conhecimento humano com a incapacidade de atingir a Deus abre espaço para negar qualquer valor e verdade absolutos. Do lado da fé, importa ter lucidez para distinguir aspectos relativos próprios de toda linguagem humana e a realidade absoluta do Deus que se revela a si e o desígnio salvífico que são absolutos. E do lado da ciência, cabe também distinguir em que ela tem palavra a dizer sobre aspectos equivocados da linguagem da Revelação, e nisso purificar os conhecimentos religiosos, e em que ela pretende ultrapassar o próprio horizonte de saber, querendo negar o Absoluto da revelação. Portanto, resta um só caminho: lúcido, corajoso e livre diálogo com a consciência dos limites do próprio saber e da originalidade e peculiaridade do outro.
O cristianismo no século XXI
No livro Qual o futuro do Cristianismo. São Paulo: Paulus, 2006, apontei alguns deles. Os tempos pós-modernos em que vivemos caracteriza-se por doentio presentismo, corroendo a esperança e as utopias. E como o presente favorece os países, classes e indivíduos ricos, a cultura pós-moderna acaba por ser politicamente reacionária. Conseqüentemente acentuam-se os traços hedonistas e consumistas. O cristianismo, ao encarnar-se na história humana, em profunda comunhão com as classes desprezadas, foi embalado, desde o início, por perspectiva de esperança e por traços escatológicos. E nisso alimentou a história da utopia no Ocidente (J. Servier, Histoire de l’utopie. Paris: Gallimard, 1967). Com o triunfo da Cristandade, ele julgou ilusoriamente ter realizado o projeto do Reino de Deus e sedou a ânsia utópica. Hoje vivenciamos barbáries não menores que as piores vistas na história. Implantou-se terrível situação de injustiça social para os pobres. E, mais uma vez, o cristianismo é provocado a empunhar a bandeira utópica da libertação dos pobres, da civilização do amor, da sociedade das bem-aventuranças. Tarefa hercúlea.
A secularização vem amadurecendo a ponto de estar já produzindo o fruto sazonado do secularismo ateu. Em tal situação extrema, encontra-se o cristianismo diante do dilema do silêncio da teologia da morte de Deus ou do anúncio profético de Deus. Mas não de qualquer Deus. E sim do Deus do amor. E isso continua válido onde o secularismo se impõe. Nessa linha, tem escrito com enorme pertinência o teólogo espanhol Andrés Torres Queiruga.
Paradoxalmente assistimos ao reverso do fenômeno: a explosão religiosa. Então o desafio é outro. Com as grandes tradições religiosas não-cristãs impõe-se o lúcido diálogo inter-religioso em que a clareza das próprias identidades se confronta com a positividade das alteridades de modo que no final todos saiam enriquecidos. Entre as denominações cristãs, o diálogo ecumênico faz-se ainda mais imperioso. Nalguns casos já vai avançado e em outros esbarra com problemas no campo dos ministérios e dos sacramentos. E diante da atmosfera religiosa que se carrega de tanto magnetismo difuso de denominações pentecostais e neopentecostais, Nova Era e expressões religiosas altamente exóticas, cabe ao cristianismo a tarefa de verdadeira evangelização. Anunciar, como fez no Império Romano, para dentro do pânteon a originalidade de Jesus Cristo que converte e assume de modo que surja um cristianismo com novos rostos.
Crise ética
O mundo moderno vive gigantesca crise ética que afeta grandemente a convivência humana, a política e a relação com a natureza. A proposta cristã orienta-se na linha de uma ética do cuidado (L. Boff, Saber cuidar: ética do humano - compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999) que atinge o conjunto das relações, da ética na política que se contrapõe a tsulama atual e uma ética ecológica que cria nova concepção de ser humano em face da natureza.
Na limitação do espaço, indico mais um desafio para finalizar. O cristianismo iniciou a carreira histórica sob o impacto da ordem de Jesus: “Ide, pois, fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a observar tudo quanto vos mandei. Eis que eu estou convosco, todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 19-20). E tentou fazê-lo geograficamente, ao levar a todas as regiões do mundo a mensagem já pronta. Hoje é impensável impor uma cultura às outras. Desafia-nos, portanto, a inculturação em profundidade, sobretudo nas culturas do Oriente, da África e em regiões da Ameríndia. Mas o mais grave é que se constrói no próprio Ocidente de alta tecnologia nova subjetividade devedora a nenhuma cultura exótica, mas fabricada pela tecnociência. A pretensão é plasmar artificialmente o sujeito humano por meio da biotecnologia já acessível. E isso transforma a consciência ocidental, não só daquele que será fabricado de outra maneira diferente da do amor conjugal humano, mas, sobretudo, daquele que se julga doravante ser criador e senhor também da vida humana de modo que nunca tinha sido. Próximo para não dizer igual ao do Criador. Como anunciar o evangelho à cultura da biotecnologia? Tornando mais complexa a situação de tal novo sujeito, à biotecnologia avançada soma-se a tecnologia da comunicação transformada em nova cultura. Nesse universo novo, altamente artificial e produzido pela fábrica humana, cabe ser cristão e testemunhar aquele que se fez pobre entre os pobres, pequeno entre os pequenos. Contraste fabuloso. Na sociedade por excelência do conhecimento, desafia-nos testemunhar o Logos divino, que, ao fazer-se carne e história, não optou por escrever nem por deixar obras folhudas, nem por trilhar o caminho dos poderosos e intelectuais, mas pregou na linguagem simples e pobre do povo. É o paradoxo de um Paulo anunciando no areópago o Cristo morto e ressuscitado alheio à cultura grega. No imenso palco da sociedade dos avanços tecnológicos e científicos, anunciamos o camponês e artesão da Galiléia de parábolas rurais e ribeirinhas. Eis o desafio!
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