terça-feira, 29 de novembro de 2011

Por que ainda ser cristão hoje?


A última edição de 2006 da revista da IHU On-Line procurou, através de diversos depoimentos, responder o título desta entrevista: Por quê ser cristão hoje? Uma das vozes ouvidas foi a do teólogo espanhol Andrés Torres Queiruga. Ele respondeu as questões que seguem por e-mail para a IHU On-Line.

O Prof. Dr. Andrés Torres Queiruga é professor da Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha. Ele é licenciado em Filosofia e Teologia pela Universidade de Comillas, Espanha, é doutor em Filosofia pela Universidade de Santiago de Compostela, Espanha, e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Itália. Entre suas obras publicadas em português, citamos "Creio em Deus Pai. O Deus de Jesus como afirmação plena do humano" (São Paulo: Paulinas, 1993); "O cristianismo no mundo de hoje" (São Paulo: Paulus, 1994); "A revelação de Deus na realização humana" (São Paulo: Paulus, 1995); e "Repensar a ressurreição" (São Paulo: Edições Paulinas, 2004).

Confira a entrevista, aqui reproduzida via IHU com grifos nossos.


IHU On-Line - Por que ainda ser cristão hoje? Quais as razões de ainda ser cristão numa sociedade mediada pela técnica e pela ciência, ante a secularização que é característica da pós-modernidade?
 Andrés Queiruga -
No fundo, pelas mesmas razões de sempre. É todo o nosso ser que clama pela Transcendência. Há épocas que o tornam mais difícil: épocas de “eclipse de Deus”, como disse Martin Buber (não de “silêncio de Deus”, como se diz às vezes com demasiada alegria e pouco respeito por seu amor incondicional!). A secularização aponta a um desses eclipses. Porém não é um eclipse total. O que nos pede é um esforço por reencontrar e repensar Deus na nova circunstância, primeiro em nós, os e as crentes; e logo, para saber poder anunciá-lo de maneira crível aos demais. Morreu um cristianismo pré-moderno. Porém diante de nós está todo o futuro de Deus, se soubermos ser fiéis aos novos apelos.

IHU On-Line - Por que crer em Jesus? Quais os seus argumentos para a fé, nos dias atuais, no Deus uno e trino, na ressurreição e na segunda vinda de Cristo?
 Andrés Queiruga -
Cremos, ou, concretizando, creio pessoalmente em Jesus, porque nele encontro expressa em palavra e, sobretudo em obra e vida, essa abertura fundamental à presença de Deus. Jesus não foi, por sorte, o único na história humana em expressar essa Presença. Mas é aquele em quem encontro a maior e, em definitivo, insuperável manifestação do que nosso coração e nossa história estão buscando. Porque ele nos abriu o Mistério definitivo: o de um Deus que ama sem reservas – bons e maus! - e perdoa sem condições. Um Deus que, entregando-se em seu amor salvador, faz-nos viver de sua vida e de seu Espírito, fazendo-nos filhos e filhas no Filho. Por isso, em Jesus compreendemos de maneira plena e integral o que, em seu amor de Abbá, Deus estava realizando desde o começo da humanidade: que Ele não nos deixa cair na morte, que nos ressuscita. A segunda vinda de Cristo é assim um símbolo da esperança final: ressuscitando-nos a todos, no final, quando acabar o tempo – não sabemos como – nos encontraremos reunidos na grande família de filhos com o Filho. Então, segundo a magnífica visão de são Paulo, Deus “será tudo em todos”.

IHU On-Line - Em que medida os valores do cristianismo nos ajudam a conviver melhor com os outros seres humanos, com os animais e com a sociedade em que vivemos?
Andrés Queiruga -
Só podemos levar a sério a nossa filiação, só creremos sem hipocrisia em Deus como Pai/Mãe, se vermos e tratarmos os demais como irmãos e irmãs. E não “de palavra e de boca, senão com obras e em verdade”. De fato, esta intuição, inclusive oculta e bastante deformada pelos defeitos da cristandade, fecundou a história, como apareceu nos ideais da revolução francesa: liberdade, igualdade, fraternidade. O que se nos pede hoje, insistindo principalmente na fraternidade, é encarnar este ideal – que confessamos em teoria – numa práxis conseqüente que busque alcançar os excluídos e marginalizados. E, se à idéia de criação por amor unirmos hoje a consciência evolutiva, compreenderemos que a criação é universal: somos constitutivamente solidários de todo o cosmo, desde o último átomo ao animal mais elevado. Nela vivemos e vamos construindo a nossa vida. Toda a criação é nosso “corpo”: somos graças a ela e ela alcança em nós a consciência, a liberdade e o amor. Isso, se se quer, é antropocentrismo. Porém antropocentrismo solidário e fraternal. Não é preciso igualar tudo ou ignorar que a humanidade é a “flor da evolução”, para compreender que, justamente por isto, devemos olhar com profundo agradecimento, respeito e amor todas e cada uma das criaturas.

IHU On-Line - Fé e razão são incompatíveis ou complementares? Como podem os ensinamentos de Jesus conviver com o discurso da ciência?
Andrés Queiruga -
Fé e razão são dois modos ou intencionalidades distintas de nossa relação com o mundo, com o único e idêntico mundo. São visões complementares, pois respondem a distintas necessidades da mesma humanidade. O processo cultural pôs a descoberto sua diferença. Porém somente uma má interpretação pode traduzir a diferença por antagonismo. Estamos hoje em condições de compreender que a diferenciação cultural é um ganho para todos, desde que renuncie ao imperialismo da própria visão, evitando invadir as competências alheias. A Igreja teve que aprendê-lo duramente, quando, a partir de uma falsa leitura da Bíblia, invadiu o terreno da ciência. Hoje também a ciência deve aprender a lição: também ela não deve invadir o terreno da religião (nem o da filosofia). Com relação ao princípio e à lucidez histórica, a batalha da justa compreensão está ganha. Mas, na prática, nem todos a compreenderam ainda. Karl Rahner fez a advertência de que convivemos com pessoas que estacionaram no século 19. Se o dizia aos teólogos, vale igualmente para os cientistas. Controvérsias como as do Criacionismo vs. Evolucionismo são, neste sentido, um espetáculo triste... e anacrônico. Eles agem com positivismos cientificistas indignos da ciência atual e com literalismos fundamentalistas que são uma vergonha para a teologia.

IHU On-Line - Qual é a interferência de Paulo de Tarso nos ensinamentos transmitidos por Jesus Cristo?
Andrés Queiruga -
Paulo não tratou diretamente com Jesus de Nazaré. Isso lhe permitiu meditar teologicamente sobre o significado de sua vida e de sua mensagem. Isso lhe permitiu igualmente explicitar aspectos e abrir profundidades que antes não se haviam percebido com clareza. Como dizia Blondel, no que se vive imediatamente – no l’implicit vecu – há sempre riquezas que não se percebem nem podem fazer-se conscientes de imediato. Junto com outros autores do Novo Testamento, Paulo foi um grande explicitador e um eficaz organizador. Porém, como em todo o humano, também isso teve seu preço: concentrou sua teologia no final da vida de Jesus. Ademais, interpretou sua morte-ressurreição de uma maneira excessivamente pontual e sacrifical. Isso pode levar ao mal-entendido de converter numa espécie de ato cúltico (realizado na Cruz, para reconciliar-nos com Deus) tudo o que em Jesus foi o processo e o exemplo de sua vida inteira, de sua atividade e de sua palavra. É preciso superar esse perigo de unilateralidade, completando a profundeza da morte-ressurreição com uma dialética integradora que recupere toda a riqueza da vida de Jesus, pois é ela que lhe dá fundamento e sentido. De fato, foi isso que, no fundo, levou a escrever os Evangelhos que, por isso, têm o caráter de uma biografia – embora seja no estilo de então – que ensina ser seu inteiro destino o que constitui tanto a revelação de Deus, como o modelo integral da vida cristã.

IHU On-Line - Quais são os maiores desafios do cristianismo no século 21?
Andrés Queiruga -
Do ponto de vista teórico, o desafio é repensar todos os grandes temas da teologia, ultrapassando fundamentalismos e tradicionalismos, e recuperar seu significado para a vida cristã. Já do olhar eclesial, é desafiador democratizar profundamente o governo da Igreja, superando toda discriminação interna – sobretudo, a da mulher – e eliminando o autoritarismo, em direção a uma comunidade inclusive “mais que democrática”. Isso o quis e o mandou Jesus de maneira explícita: “Sabeis que os chefes das nações as dominam como senhores absolutos, e os grandes as oprimem com seu poder. Não há de ser assim entre vós, senão que, quem queira ser grande entre vós, será vosso servidor, e quem queria ser o primeiro entre vós, será vosso escravo”. Com relação à missão no mundo, o desafio é gerar sentido e esperança, mostrando-o principalmente no serviço comprometido com os mais pobres e abrindo-se, com generosidade fraternal, ao diálogo e à colaboração com as demais religiões.

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