domingo, 14 de agosto de 2011

Sobre pais e filhos


Meus pais se separaram quando eu tinha menos de dois anos de vida. Durante a infância, convivi com meu pai de forma intermitente: finais de semana, viagens, encontros ocasionais, saídas da rotina.

Meu pai nunca fez parte da minha rotina diária, mas enquanto eu era apenas uma criança, ele foi um pai carinhoso, alegre, divertido. Gosto de pensar que herdei dele a alegria e o jeito descompromissado de brincar com a vida, encontrando leveza.

Mas um dia eu deixei de ser criança – cresci, e precisei de mais do que um colo para me carregar de cavalinho, ou uma companhia para jogar cartas, ou um acompanhamento no violão para as minhas afinadas tentativas musicais. E aí, as distâncias e os desencontros começaram: ele nunca foi alguém com quem eu pudesse contar. Nunca esteve lá quando eu precisei, nunca escutou minhas questões e dificuldades, nunca me ofereceu o ombro ou o colo para chorar nas horas difíceis. A vida foi acontecendo, ele se perdeu de mim – acho que de si mesmo também –, e eu dele.

Meu pai viveu uma série de dificuldades e questões pessoais que não vêm ao caso agora – para contar bem resumidamente, ele é alcóolatra e dependente químico. Luta contra essas dependências há anos, conhecendo todos os picos e todos os vales – ultimamente, muito mais destes últimos do que daqueles. Eu não sei como foi viver essa dependência do lado de dentro, mas sei muito bem como foi conviver com isso do lado de fora – sendo filha, vendo alguém tão amado desconstruindo a própria vida a passos largos, precisando de alguém que não tinha a menor condição de estar ali como eu desejava.

Em determinados momentos da minha vida, eu tive muita raiva do meu pai. Raiva pelo abandono, pela ausência, pelas faltas tão sentidas. Pela irresponsabilidade e imaturidade, por não ter crescido e encarado as questões difíceis de frente, quando a vida assim exigiu. Pelo vazio que deixou na minha história, um vazio que fica para sempre, que ninguém jamais irá preencher – porque era o espaço dele na minha vida, e ele não o ocupou como deveria.

Mas de novo, a vida aconteceu. Eu me tornei mãe, e como mãe, aprendi na lida diária tão cheia de descobertas e desvendamentos, que limitações fazem parte da vida de todos, que perfeição é delírio besta que se desfaz ao menor sopro. Compreendi por experiência própria que não há uma varinha mágica que nos torne miraculosamente onipotentes, onipresentes e cheios de sabedoria, quando nos tornamos pais. Talvez gostássemos de acreditar que sim, mas a verdade é que continuamos os mesmos: humanos, falíveis, imperfeitos. Amadurecendo a cada dia, aprendendo com as experiências, tentando acertar – e errando de vez em quando, quase sempre mais do que gostaríamos.

Meu pai e eu estivemos afastados por muito tempo – anos de distâncias, mágoas e silêncios. Mas se o tempo pode afastar, também faz acalmar a dor e nascer compreensão onde ela antes não existia. Ter me tornado mãe, ter aprendido a aceitar minhas próprias limitações e impossibilidades, fez brotar em mim novamente aquele amor teimoso que sentia a menina diante do pai, aquele que acreditava um herói, capaz de tudo e maior do que tudo. Mas agora, não era mais um amor ingênuo – era um amor adulto, consciente, uma escolha.

Eu não gosto de dizer que ‘perdoei’ meu pai. Quem sou eu, afinal, também tão cheia de defeitos e cometendo meus erros ao longo do caminho, para perdoar alguém? Prefiro dizer que o acolhi – da maneira possível, sem expectativas irreais, sem desejos de transformação que não encontrassem eco na realidade. Aprendi a compreender e aceitar. Não com condescendência, mas com respeito. Porque é fácil respeitar o que é grande, forte e bom – difícil é respeitar também o erro, o desalinho, o imperfeito.

Meu pai é o que é, assim como eu sou o que sou. Talvez eu, como mãe, faça melhor do que ele fez como pai. Assim como minhas meninas, provavelmente, serão mães melhores do que eu mesma fui – não é essa a ordem natural da vida, não é para isso que viemos ao mundo: crescer, aprender e melhorar?

Todos os dias, penso na história que tenho escrito com minhas filhas, cheia de imperfeições e maravilhas que são só nossas. Como mãe, antes de qualquer outra coisa, importa-me que o amor esteja presente. Como filha, talvez eu tampouco precise de qualquer outra coisa.

Tenho compreendido, a cada dia mais, que maternidade e paternidade não têm nada a ver com infalibilidade, com onipotência, com ausência de dúvidas, de medos ou de inseguranças. Tem a ver com entrega, do jeito que for possível, fazendo o melhor – que talvez nem sempre seja suficiente, mas é o que se tem para dar. E cada um constrói sua história a partir daí – pais e filhos.

Não sei dizer bem ao certo de onde nasceu essa reflexão toda – talvez tenha sido a proximidade do dia dos pais, uma data que sempre me faz parar para pensar, muito além da parafernália publicitária e do consumismo desenfreado. Talvez tenha sido mesmo só o amor que apesar de tudo existe, persiste, e resiste.

Ser mãe tem me ensinado muito. Ser filha, também. De um lado e de outro da experiência, talvez o aprendizado mais valioso seja esse: aceitar e amar o outro como é, com defeitos e limitações, sem esperar acertos todo o tempo, sem cobrar perfeição – não é disso que o amor é feito.

Amar é acolher a inteireza: aceitar a luz, mas também a sombra. E compreender que cada um faz o que é possível para si, e que não ser para nós o que esperávamos que fosse não significa ter menos amor para dar – significa apenas dar todo o amor que se tem, da maneira que se sabe.

- Tata
Reproduzido via blog Mamíferas

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