sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Homofobia em família: as unhas e a caixa de ferramentas


Entro em uma loja especializada em produtos para unha e cabelo e uma voz bem alta para que toda a loja ouvisse me chama atenção: “não, ele não gosta de unhas, não! Ele gosta é de ferramentas! Não é fulano? Lá em casa ele tem uma caixa de ferramentas! Eu dei a ele. Não gosta de unhas não, gosta de ferramentas!” Isso gritado para um menino de talvez pouco mais de dois anos, e, claro, para o restante da loja. Fiquei em choque. Fiquei ali, muda, estática, estarrecida, olhando fixamente para aquela cena. Eu estava de costas, mas virei metade do corpo em direção àquela família e fiquei encarando toda a cena. O que algum tempo depois me fez pensar como a escandalosa não me perguntou o que eu tanto olhava. Passado o choque, fiquei pensando: a preocupação é o que vão pensar sobre o filho dela, se vão pensar que é um viadinho? Ou ela acredita na idéia escrota de que se a pessoa for criada direito não “se torna” homossexual? Ou ela acha que se o cara gostar de esmalte, claro que é viado? Ou se o cara gostar de caixa de ferramenta não é viado, pois viado que é viado gosta mesmo é de esmalte?

Depois foi um turbilhão de sensações e pensamentos. Como será a vida desta criança? Crescerá um homofóbico, um machista, um conservador, uma bicha reprimidíssima, destas que precisam reafirmar a masculinidade das formas mais controversas e ridículas? O que a família fará com esta criança? O que causará a ela? Ele, se percebendo gay um dia, terá coragem de assumir? Achei tão triste e dolorosa aquela cena. Não apenas pelo garoto, tão vulnerável e frágil, mas por ser a história de todos nós. Sim, é a história de cada um de nós. Quem nunca sofreu homofobia em família, em maior ou menor grau, de forma explícita ou velada? Quem nunca se viu no meio de questões com saia, tipo de sapato, corte do cabelo e insistência na história d@ namorad@? É por isso, por nossa própria homofobia em família, que sabemos bem que não se trata apenas deste menino nem de um episódio isolado.

Fiquei muito triste. Aquela cena me abalou de um jeito que eu não esperava. Talvez tenha mexido fundo em minha própria história. Talvez tenha gritado na minha cara que eu ainda faço muito pouco, que tenho que fazer mais. E como eu gostaria que cada pessoa LGBT entendesse a necessidade de se posicionar, a necessidade de lutar. Como eu gostaria que tod@s, agora, neste exato momento, procurassem como ajudar na luta por nosso reconhecimento, na luta contra a discriminação, contra a homofobia e a favor do amor.Afinal, não podemos mais permitir este tipo de comportamento tacanho. Não podemos mais permitir agressões e mortes cotidianas. E não falo somente de agressões e mortes físicas. Há muitas outras que deixam marcas indescritíveis, como todos nós, infelizmente, sabemos tão bem. Não se trata somente de mim ou de você. Trata-se de cada um de nós e também dos que ainda estão a caminho. Trata-se de cada uma destas crianças. Que elas não sofram o que não precisariam sofrer.

Por tudo isso é que assumir é um ato político. É uma questão social. Assumir é a melhor cura para nossos males de opressão. Não assumir é carregar todas as mágoas em silêncio e em absoluta solidão. Não assumir é continuar sofrendo todo tipo de perversidade. Não assumir é uma dor infindável. Não assumir é uma prisão, mas não apenas sua. Não assumir é se omitir. Não uma omissão individual, particular, é uma omissão social, uma omissão política, é não colaborar com a quebra do ciclo perverso a que somos subjugados. Não assumir é morte lenta. Sei que assumir não é fácil. Assumir é conversar com papai e/ou mamãe. É vê-los chorar. É se sentir nu. Assumir é reconhecer toda uma parte da vida trancada, oprimida, tolhida – e saber que não se poderá recuperá-la. Assumir é reconhecer o quanto se foi magoad@ e dizer para quem nos magoou: você me machucou naquele dia, no outro, aqui, ali, desta e daquela forma.

Assumir é dizer ao mundo que sim, eu sou @ mesm@ de sempre, mas jamais serei @ mesm@.

- Ivone Pita
Publicado originalmente na Políticativa, coluna da autora no Gay1

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