quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Sobre Deus

Foto: Isac Goulart

Três homens olham para o horizonte. O sol se anuncia colorindo de abóbora e sangue umas poucas nuvens escuras. Um deles diz: "Vejo, no meio das nuvens vermelhas, uma casa. Na janela, um vulto acena para mim." O segundo homem diz: "Vejo, no meio das nuvens vermelhas, uma casa. Mas não há nenhum vulto acenando para mim. A casa está vazia, é desabitada." O terceiro homem diz: "Não vejo vulto, não vejo casa. Vejo as nuvens abóbora e sangue... E como são belas! Sua beleza me enche de alegria!"

Essa é uma parábola metafísica. O primeiro homem vê, no meio das nuvens, um vulto, quem sabe o senhor do universo. Se eu gritar, ele me ouvirá. Para isso há as orações: gritos que pronunciam o Nome Sagrado, à espera de uma resposta. O segundo vê a casa, mas a casa está casa vazia, não tem morador. É inútil gritar, porque não haverá resposta. É o ateu... E como dói viver num universo que não ouve os gritos dos homens... O terceiro, que não vê nem casa e nem vulto, vê apenas a beleza -que nome lhe dar? Acho que o nome seria "poeta".

A beleza é o Deus dos poetas. Quem disse isso foi a poeta Helena Kolody: "Rezam meus olhos quando contemplo a beleza. A beleza é a sombra de Deus no mundo."

Borges relata que, segundo o panteísta irlandês Scotus Erigena, a Sagrada Escritura contém uma infinidade de sentidos. Por isso, ele a comparou à plumagem irisada de um pavão. Séculos depois, um cabalista espanhol disse que Deus fez a Escritura para cada um dos homens de Israel. Daí por que, de acordo com ele, existem tantas Bíblias quantos leitores da Bíblia. Cada leitor vê na Bíblia a imagem do seu próprio rosto.

O teólogo Ludwig Feuerbach disse a mesma coisa de forma poética: "Se as plantas tivessem olhos, gosto e capacidade de julgar, cada planta diria que a sua flor é a mais bonita." Os deuses das flores são flores. Os deuses das lagartas são lagartas. Os deuses dos cordeiros são cordeiros. Os deuses dos lobos são lobos. Nossos deuses são nossos desejos projetados até os confins do universo. Dize-me como é o teu Deus e eu te direi quem és...

Mosaicos são obras de arte. São feitos com cacos. Os cacos, em si, não têm beleza alguma. Mas, se um artista os juntar segundo uma visão de beleza, eles se transformam numa obra de arte. As Escrituras Sagradas são um livro cheio de cacos. Nelas se encontram poemas, histórias, mitos, pitadas de sabedoria, relatos de acontecimentos portentosos, textos eróticos, matanças, parábolas... Ao ler as Escrituras, comportamo-nos como um artista que seleciona cacos para construir um mosaico. Cada religião é um mosaico, um jeito de ajuntar os cacos.

Como no caso do labirinto literário de Borges cujos cacos eram peças de um quebra-cabeças que, juntos, formavam o seu rosto, também o mosaico que formamos com os cacos dos textos sagrados tem a forma do nosso rosto. Há tantos deuses quanto rostos há. Assim, quando alguém pronuncia o nome "Deus" há de se perguntar: "Qual?"

- Rubem Alves
Reproduzido via Conteúdo Livre

Um comentário:

Equipe Diversidade Católica disse...

Querido Anônimo,

Para ser gay, hétero ou qualquer outra coisa não é preciso fazer sexo. De fato, a sexualidade humana, e por conseguinte a identidade sexual de cada um, é expressão de algo muito mais amplo do que a mera genitalidade. A sexualidade - diferente de sexo - tem a ver com a afetividade, a afetuosidade, e também com o prazer, com o prazer com o próprio corpo e com o corpo do outro, com o dar e receber prazer. Nesse sentido, a sexualidade (inclusive o ato sexual, mas não só ele) pode e deve ser a expressão máxima da entrega ao outro, da troca afetiva com o outro, da possibilidade de dar e receber e experimentar essa possibilidade de abertura e entrega com o outro.

As epístolas de Paulo são muito mal interpretadas quando são lidas como uma condenação ao prazer e a tudo o que se relaciona com o corpo. Paulo condenava determinadas características culturais do paganismo. Nem ele, nem Cristo, condenaram o corpo, pura e simplesmente. À luz da nossa vivência do Pai Amoroso, não faria sentido que Ele criasse um corpo para nós que fosse inerentemente mau apenas para nos tentar, para nos colocar à prova.

Na busca de estarmos cada vez mais próximos de Deus, porém, cabe a cada um buscar o que faz mais sentido para si. Há aqueles para quem o celibato faz sentido e é o melhor caminho para aproximá-los de Deus. Para outros, não.

Não pretendemos fazer apologia aqui de nenhum estilo de vida, e muito menos mudar as escolhas do outro. Cada um de nós apenas procura ouvir a voz do Pai em seu coração e viver de acordo com sua consciência.

A esse respeito, talvez você se interesse por ler as colocações do Pe. José Lisboa, autor de "Acompanhamento de vocações homossexuais". Temos dois posts com citações comentadas de seu livro, aqui e aqui.

Um grande abraço!

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