Foto: Bertil Nilsson
Como uma árvore, a Igreja precisa de uma “interação dinâmica” com seu meio ambiente: a chuva, o sol, o vento e até o pássaro ocasional. Senão, “encerrada em si mesma, ela morreria”. Por isso, a fé cristã precisa de “uma cultura que nos capacite a debater com a sociedade, em vez de ficarmos na defensiva”.
Para Timothy Radcliffe, teólogo e frei dominicano, único inglês a ser eleito para o superior geral de sua ordem desde sua fundação, em 1216, a Igreja tem uma longa tradição de lidar com a diferença, como demonstram os quatro Evangelhos e as demais tradições teológicas da vida católica. Porém, hoje, além de adotar a “tolerância contemporânea”, precisamos oferecer mais, “um envolvimento com as outras pessoas que leve a sério o que elas dizem, para dialogar com elas na crença de que juntos podemos nos aproximar mais da verdade”, afirma, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
E esse diálogo – considerado por ele como a única forma de pregar, como demonstrou Jesus, que “se tornou humano na forma de um homem do diálogo” – também se refere a questões internas da Igreja (como a ordenação de homens casados, “uma bênção”, e do celibato, “exigente, mas belo, se vivido com generosidade”), com outros credos (“se eu dialogo com um muçulmano, espero que ambos sejamos convertidos”) e com relação ao mundo (“o tempo está pronto para que a Igreja ofereça uma nova visão moral”) .
Nascido na Inglaterra, Timothy Radcliffe é teólogo e frei dominicano. Em 1992, foi eleito Mestre Geral da Ordem dos Pregadores [Dominicanos]. Antes disso, havia sido capelão do Imperial College London, prior provincial da Inglaterra e presidente da Conferência dos Superiores Religiosos de Inglaterra e Gales, tendo lecionado Sagrada Escritura na Universidade de Oxford. Em 2001, após deixar o cargo de mestre geral da ordem, voltou a lecionar na universidade.
Atualmente, é membro da comunidade dominicana de Blackfriars, Oxford, na Inglaterra. Presidente do International Young Leaders Network, Racdliffe foi um dos fundadores do Las Casas Institute, que aborda questões referentes à ética, política e justiça social, ambos desenvolvidos na Universidade de Oxford.
Em 2007, seu livro “What is the point of being a Christian?” [Qual é o sentido de ser cristão?] (Ed. Burns & Oates, 2005) recebeu o prêmio Michael Ramsey de Escritos Teológicos, criado pelo primaz da Igreja Anglicana e arcebispo de Canterbury, Dr. Rowan Williams, para encorajar as obras teológicas mais promissoras. Radcliffe também é autor de diversos livros sobre espiritualidade, como “”I Call You Friends” [Chamo-lhes amigos] (Ed. Continuum, 2001), “Seven Last Words” [As últimas sete palavras] (Ed. Burns & Oates, 2004) e “Why Go to Church? The Drama of the Eucharist” [Por que ir à Igreja? O drama da Eucaristia] (Ed. Continuum, 2008).
Confira a entrevista, reproduzida via IHU On-line.
Qual a sua opinião sobre os rumos da Igreja na primeira década do século XXI, sob o papado de Bento XVI?
Os papas deveriam se concentrar em fazer o que melhor sabem fazer. O Papa Bento XVI é um professor, e é isso que ele oferece muito bem à Igreja. Muitas pessoas esperavam que ele se preocupasse sobretudo com a disciplina e o combate à modernidade, por causa de sua reputação na época em que ele era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Mas ele está determinado a escapar dessa imagem de disciplinador, que detestava, e, assim, suas encíclicas vêm tentando nos levar de volta aos aspectos essenciais de nossa fé, começando com o amor. Como acadêmico, ele gosta do debate e queria que seu livro sobre Jesus de Nazaré provocasse discussão. Essa é possivelmente a primeira vez que um Papa tenha escrito buscando uma reação intelectual ativa de outros teólogos. Um grupo de teólogos notre-americanos e britânicos aceitou o desafio e ofereceu uma resposta que é positiva e crítica. Portanto, todo esse aspecto de seu papado é muito positivo.
Entretanto, tem havido dificuldades em sua comunicação com a mídia, como, por exemplo, a revogação da excomunhão do bispo lefebvriano que parecia negar o Holocausto, as observações do Papa a jornalistas sobre preservativos em sua viagem à África etc. Essas coisas provocaram alvoroço, e o Vaticano parece não ter condições ou disposição para se relacionar com a mídia de forma profissional. Isso talvez está ligado às profundas divisões existentes dentro do Vaticano, que estão enfraquecendo seu papel de serviço à Igreja universal.
O cardeal Basil Hume percebeu claramente que necessitamos de uma reforma do governo da Igreja, em que o Vaticano sirva ao seu governo por meio do Papa e dos bispos, em vez de os bispos serem muitas vezes vistos como servos do Vaticano. Este é um desafio central, e não se poderia esperar que o atual Papa, com a idade que tem e não obstante todos os seus dons e sua inteligência, o empreendesse.
Questões éticas em torno da vida e da morte (como os casos de Terry Schiavo e Eluana Englaro) e questões culturais (como os crucifixos em salas de aula na Itália e na Espanha) têm suscitado uma reação do Vaticano. Isso é a demonstração de um certo conservadorismo nesses debates por parte da Igreja ou é apenas uma tentativa de normatização de uma instituição histórica? Essa é uma luta da Igreja para defender sua identidade em uma sociedade plural?
Uma fé cristã precisa de uma cultura cristã que a sustente. A fé em Cristo significa que veremos o mundo de uma forma diferente das pessoas que estão enredadas no mundo do mercado e na cultura contemporânea do consumismo. Veremos o mundo em termos de bênçãos, gratidão e indícios de transcendência. Essa percepção da realidade precisa ser sustentada por uma cultura, que está necessariamente em tensão com a cultura secular global de nosso planeta. A tentação para os cristãos é tentar sustentar essa cultura simplesmente lutando contra a modernidade e seus pressupostos. Isso poderia levar a Igreja a um gueto que estaria muito distante da hospitalidade aberta de Jesus. Precisamos de uma cultura cristã que, ao mesmo tempo em que tenha autoconfiança, também esteja aberta para ser alimentada por nossos contemporâneos, independentemente de eles crerem ou não. Em outras palavras: precisamos de uma cultura que nos capacite a debater com a sociedade, em vez de ficarmos na defensiva. A imagem que gosto de usar neste sentido é a de uma árvore, que é uma imagem bíblica tradicional. É claro que a árvore é ela mesma, mas só pode florescer se tiver uma interação dinâmica com seu meio ambiente – a chuva, o sol, o vento e até o pássaro que pousa nos seus galhos. Encerrada em si mesma, ela morreria.
Portanto, esses debates a respeito de várias questões culturais são formas pelas quais estamos negociando que espécie de interação temos com a sociedade. Às vezes, a Igreja é tentada a ficar nervosa e defensiva demais, mas precisamos nos envolver mais positivamente com as pessoas mais criativas e imaginativas de nossa época. Em vez dessas discordâncias serem conflitos de poder, elas requerem um envolvimento inteligente com nossa sociedade, suas esperanças e seus temores.
Como o senhor analisa as recentes negociações da Igreja com os lefebvrianos, os anglicanos conservadores e os ortodoxos? O que isso indica para o futuro do ecumenismo no século XXI?
O Papa tem uma percepção profunda da necessidade de reunir os cristãos em unidade. A unidade cristã é um aspecto necessário e profundo do chamado que Cristo nos dirige. Depois da ressurreição, os discípulos dispersos foram reunidos, e, assim, a unidade visível em Cristo é uma parte intrínseca da maneira como somos o Corpo de Cristo. Assim, a cura da divisão precisa ser uma prioridade, e ela está por trás de muitas das iniciativas do Papa. Está claro que ele fez muito progresso na cura da mais antiga das divisões, que é com os ortodoxos. Eles o respeitam como um homem que tem uma visão teológica profunda, arraigada no evangelho e nos mesmos teólogos antigos do Oriente que eles também reverenciam.
A iniciativa do Papa de ir ao encontro dos anglicanos que estão descontentes com mudanças recentes em sua Igreja também faz parte desse desejo de curar as feridas do passado. É claro que ela também é uma iniciativa arriscada na medida em que poderia, ao mesmo tempo, debilitar a crescente amizade entre as Igrejas Católica e Anglicana. Penso que o Papa tentou manter um equilíbrio oferecendo um lugar em nossa Igreja a esses anglicanos descontentes e, ao mesmo tempo, dando ao arcebispo de Canterbury [Rowan Williams] uma cruz episcopal, o que é um sinal de respeito e amizade.
Sua iniciativa de ir ao encontro dos anglicanos criou muita ansiedade na Grã-Bretanha. Isso se deve em parte a um medo de que sejamos inundados por anglicanos tradicionalistas que atrapalharão nossa própria evolução na Igreja Católica. É importante entender que muitos dos anglicanos que se tornaram católicos em anos recentes de modo algum são tradicionalistas misóginos mesquinhos. Muitos não são contra a ordenação de mulheres como tal, mas creem que certas decisões só podem ser tomadas pela Igreja universal e que, ao fazer isso sozinha, a Comunhão Anglicana está perdendo todas as possíveis reivindicações de ser membro dessa Igreja universal. Infelizmente, a questão foi mal encaminhada pelo Vaticano, sem uma consulta adequada junto aos bispos católicos ou anglicanos nesse país ou até junto a outras partes do próprio Vaticano.
É claro que o mesmo desejo de curar a divisão e trazer as pessoas de volta para a unidade do corpo de Cristo está presente na iniciativa do Papa de ir ao encontro dos lefebvrianos. Espero que a Igreja mostre a mesma abertura e vá da mesma maneira ao encontro das pessoas que se afastaram da Igreja por causa de opiniões que são mais progressistas!
Outro problema que a Igreja enfrenta é a redução do número de novos padres. Já foram indicadas algumas possíveis soluções, radicais demais para o Vaticano, como a ordenação de homens casados (os chamados “viri probati”), o fim do celibato e a ordenação de mulheres. Como o senhor analisa isso? O celibato é o principal problema?
Não creio que o celibato seja o principal problema. Muitas Igrejas que têm clérigos casados também têm problemas semelhantes. Isso acontece em parte porque, muitas vezes, os jovens percebem os sacerdotes como empresários excessivamente ocupados, com pouco tempo para a vida “real”. Como podemos ser sinais do Deus de vida abundante se estamos correndo para lá e para cá, como se fôssemos os salvadores do mundo? Nós precisamos mostrar que ser sacerdote ou religioso é realmente uma forma de estar vivo, imaginativa, emocional e humanamente vivo!
Creio, entretanto, que precisamos pensar sobre a ordenação de homens casados. Perderíamos muito se o celibato deixasse de fazer parte da vida de nossos sacerdotes. Ela é uma vida que só faz sentido como um sinal do Reino. Ele é exigente, mas belo, se vivido com generosidade. Mas se tivéssemos sacerdotes casados, também ganharíamos muito. Eles trariam sua experiência do casamento e da criação de filhos para nossa pregação, e isso seria uma bênção. Assim, temos de discutir isso como Igreja, e, já que o sacerdote é o servo do povo todo de Deus, precisamos saber o que os leigos pensam e querem. Eles estariam, por exemplo, dispostos a arcar com a considerável despesa adicional de manter uma família no presbitério?
Como a Igreja pode lidar com o mundo contemporâneo em um tempo de crise, “líquido”, incerto?
Um dos desafios com que nos deparamos hoje, mais do que nunca, é nos defrontar com a diferença: diferenças entre culturas, diferenças entre religiões, diferenças entre gerações, diferenças sempre crescentes entre ricos e pobres. Isso só pode ser feito com o diálogo inteligente e a razão caridosa. A Igreja deveria ser capaz de oferecer um modelo disso. Papas recentes, especialmente Bento XVI, acentuaram que nós cremos na razão. Temos uma longa tradição em lidar com a diferença, desde os quatro Evangelhos, até as múltiplas tradições teológicas que fazem parte de nossa vida católica. Assim, deveríamos ter condições de oferecer um bom modelo de envolvimento com a diferença. Para nossa cultura contemporânea, o modelo usual é o da tolerância. Isso é excelente, e é maravilhoso que vivamos numa sociedade que é imensamente mais tolerante. Mas tolerância não basta. A mera tolerância pode ser uma forma de deixar de se envolver com as pessoas e de levar a sério no que elas creem. “Se você quer acreditar que deus é um alienígena do espaço sideral, se você se sente bem assim, não há qualquer problema”. Como Igreja, certamente precisamos adotar a tolerância contemporânea, mas oferecer mais, que é um envolvimento com as outras pessoas que leve suficientemente a sério o que elas dizem, para dialogar com elas na crença de que juntos podemos nos aproximar mais da verdade. Isso quer dizer que precisamos descobrir na Igreja não apenas como crer na razão teoricamente, mas nos envolver num diálogo mais caridoso e inteligente.
É possível praticar o diálogo inter-religioso sem que as Igrejas percam sua identidade? Nesse sentido, quais são os desafios para o futuro da Igreja Católica?
O diálogo é a única forma de compartilhar nossa fé. Nós cremos na Trindade, a conversa eterna e amorosa do Pai e do Filho que é o Espírito Santo. Essa é a razão pela qual Deus se tornou humano na forma de um homem do diálogo. Todo o Evangelho de João consiste numa série de conversas: Jesus conversa com Nicodemos à noite ; ele conversa com a mulher junto ao poço , para escândalo dos discípulos que se perguntavam por que ele haveria de falar com uma mulher de má reputação; conversa com o cego de nascença, ao passo que todas as outras pessoas só falam sobre ele. Toda a Última Ceia é uma longa conversa . Ele conversa com Pilatos até que este põe fim à conversa dizendo: “O que é a verdade?” . E na manhã de Páscoa, o diálogo ressuscita dentre os mortos quando ele dirige a palavra a Maria Madalena no jardim: “Maria”; “Rabunni!” .
Essa é uma doutrina que só podemos compartilhar com outras pessoas numa conversa. Não é coincidência que São Domingos tenha fundado a Ordem dos Pregadores [Dominicanos] num bar! Ele conversou a noite toda com o dono da taverna, e, como disse um de meus irmãos, ele não pode ter passado a noite inteira dizendo: “Você está errado, você está errado!”.
Há um certo nervosismo em relação a essa equiparação da pregação com o diálogo. No Sínodo dos Bispos Asiáticos em Roma, os “lineamenta” [“estado da arte” sobre determinado tema] insistiram inicialmente que precisamos pregar o Evangelho. Se acentuássemos o diálogo demasiadamente, isso poderia levar ao relativismo, como se uma religião fosse tão válida quanto a outra. Mas isso é uma dicotomia errônea. A única forma de proclamar a boa nova do Deus Trino é através da conversa. O meio é a mensagem. Agir de outra forma seria como espancar as pessoas para que elas se tornassem pacifistas. O diálogo não é uma alternativa à pregação. Ele é a única forma de pregar. Isso é algo que o Papa Bento XVI entende bem. Em sua última encíclica, “Caritas in Veritate”, ele afirma: “Com efeito, a verdade é 'lógos' que cria 'diá-logos' e, consequentemente, comunicação e comunhão.”
Toda conversa verdadeira leva à conversão, mas para todo mundo! Se eu dialogo com um muçulmano, espero que ambos sejamos convertidos. Que forma essa conversão vai assumir é algo que está nas mãos de Deus.
A encíclica “Caritas in Veritate” faz referência indiretamente ao humanismo cristão, como um critério orientador de ação moral. Em sua opinião, como a Igreja pode ser fonte de ensinamentos morais em um mundo secularizado?
Em “Secular Age”, Charles Taylor demonstrou brilhantemente como o Iluminismo esteve na raiz do que ele chama de “cultura do controle”. Vemos a ascensão de monarcas absolutos, o desenvolvimento do poder do Estado centralizado, a escravidão, que é o maior exercício de controle na história da humanidade, o imperialismo. Tudo isso estava ao menos em parte arraigado numa compreensão do mundo como um mecanismo que pode ser ajustado e manipulado. Depois de deixarmos de crer no governo providencial do mundo por parte de Deus, nós tínhamos de assumir as coisas e dirigir tudo por conta própria! Isso é ateísmo prático. E essa mesma cultura de controle acabou infectando a Igreja também, que, em parte tentando manter sua liberdade face ao poder crescente do Estado, tornou-se cada vez mais parecida com aquilo a que se opunha. Tudo isso levou a uma compreensão da moralidade como controle de nossas ações. Tínhamos de nos submeter à vontade arbitrária do Estado e de Deus. Isso é a moralidade como obediência a coações externas. Isso não pode sustentar uma sociedade humana. Assim, o tempo está pronto para que a Igreja ofereça uma nova visão moral.
Os Dez Mandamentos eram um convite para estabelecer uma relação pessoal com Deus. “Eu sou o Senhor teu Deus que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros deuses diante de mim” (Êxodo 20,2s.). Os Dez Mandamentos não são a vontade arbitrária de Deus. Eles significam compartilhar da amizade e liberdade de Deus. Eles foram dados a Moisés, com quem Deus falava como se fala com um amigo. São um aprendizado na liberdade da amizade.
O mesmo ocorre no caso de Jesus. Ele revela seu novo mandamento aos discípulos na noite anterior à sua morte, no exato momento em que os chamou de amigos. “[...] vos chamo amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai vos dei a conhecer” (João 15,15). Na Bíblia, os mandamentos não são a submissão da vontade, mas o estabelecimento de amizade com Deus e uns com os outros,
Creio que o recente renascimento do interesse na ética das virtudes é muito empolgante. Mas isso tem a ver com se tornar alguém que é verdadeiramente um agente moral, alguém capaz de veracidade e justiça, alguém que tem maturidade moral e, em última análise, encontra a felicidade na amizade com Deus. Se pudermos compartilhar essa visão moral com nossa sociedade, as pessoas descobrirão que não estamos colocando fardos pesados sobre seus ombros, mas oferecendo amizade umas com as outras e com Deus. A amizade pode ser exigente, mas não é um fardo.
(Reportagem de Moisés Sbardelotto) Tweet
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