Arte: Diana E. Eastman
Somos templos de Deus, e, com esse título, valemos mais do que todas as igrejas e todas as catedrais do mundo...
A reflexão é de Raymond Gravel, sacerdote de Quebec, Canadá, publicada no sítio Culture et Foi, comentando as leituras do 2º Domingo de Quaresma (4 de março de 2012). A tradução é de Susana Rocca. Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.
Referências bíblicas:
1ª leitura: Ex 20,1-7
2ª leitura: 1 Co 1,22-25
Evangelho: Jo 2,13-25
“Destruam esse Templo, e em três dias eu o levantarei” (Jo 2,19). Eis a mensagem central do trecho do Evangelho que temos no 3° Domingo de Quaresma do ciclo B. Esse episódio narrado por todos os evangelistas é teológico, evidentemente, mas comporta uma dimensão histórica. Isso porque se sabe, hoje, que esse episódio de Jesus, expulsando os vendedores do templo, está na origem da prisão de Jesus e na causa da sua condenação. Mas porque essa versão de João em lugar da de Marcos, o evangelista do ano B? Simplesmente porque São João, que situa o evento no início da missão de Jesus, dá mais precisões importantes para a Igreja do 1°século, que não encontramos em Marcos e nos outros evangelistas, que situam o evento justamente antes da prisão de Jesus, da sua paixão e da sua morte.
Esse trecho, então, seja qual for o lugar em que os evangelistas se situam, retoma, sem dúvida, o gesto histórico de Jesus no momento de uma peregrinação a Jerusalém... um gesto que lhe custou a vida. Por outro lado, como é uma narrativa composta após a Páscoa, trata-se de uma releitura teológica de um evento histórico verdadeiro... Para nós que relemos essa narrativa, que devemos reter como mensagem?
1. Jesus, um revolucionário. Jesus, como profeta, se opôs abertamente ao poder religioso, civil e político do seu tempo, e o templo é a representação fiel desse tipo de poder: o templo de Jerusalém era, para os judeus, o lugar da presença de Deus; ele era gerenciado pelos sacerdotes e pelos avôs, e eles faziam um comércio um tanto lucrativo. Cada judeu devia ir em peregrinação ao Templo de Jerusalém, ao menos uma vez na vida, para oferecer sacrifícios a Deus. Havia mesas de cambistas, pois a moeda imperial era rechaçada. Os ricos obtinham bois, a classe média, ovelhas, e os pobres compravam pombas ou pombinhos, mas todos ofereciam sacrifícios a Deus. Que Jesus, em peregrinação com seus amigos, havia denunciado abertamente essa prática, é mais do que acreditável, e é sem dúvida o que permitiu às autoridades arrestá-lo e condená-lo. Então, podemos situar esse evento alguns dias antes da sua prisão.
2. Um anúncio da paixão de Jesus. São João faz alusões à paixão de Jesus nesta narrativa: fazendo um chicote de cordas para expulsar os vendedores do Templo (Jo 2,15), o evangelista anuncia o chicote com que Jesus, o novo templo de Deus, será flagelado ao momento da paixão (Jo 19,1). Tirando as moedas dos cambistas (Jo 2,15) e dos vendedores de ovelhas (Jo 2,14), podemos ver o anúncio que Jesus, ele mesmo, será vítima de um tráfico absolutamente indigno da casa de Deus, pois ele, o verdadeiro templo, o cordeiro pascal, será vendido por 30 moedas, que Judas voltará para jogar no templo, sujando-o definitivamente (Mt 26,15; 27,5).
3. A idolatria e a exploração dos pobres. Como diz verdadeiramente o teólogo Charles Wachenheim, é um mesmo sopro libertador que inspira os preceitos do Decálogo (1ª leitura) e a narrativa joânica dos vendedores expulsos do templo. Nos dois casos, os crentes de ontem e de hoje são chamados a livrar-se do culto dos ídolos que ameaça, incessantemente, escravizá-los:
3.1 A Lei. Após ter liberado seu povo da escravidão do Egito, Deus lhes oferece a maneira de alcançar no dia a dia a sua liberdade. É desta forma que nós devemos compreender o Decálogo ou os Dez Mandamentos. Wackenheim escreve: “Portanto o bezerro de ouro não está longe. Preferindo um ídolo morto ao Deus vivo, o povo reproduz nos seus próprios rangos de servidão o que denuncia a Lei divina: desrespeito dos pais, morte, adultério, furto, falso testemunho, luxúria. O coração da Lei, o penhor de uma autêntica libertação, é o reconhecimento do Deus único, o amor de seu nome e a observância do sabbat”.
3.2 O Evangelho. Confundindo comércio e religião, os contemporâneos de Jesus transformam o templo em casa de tráfico (Jo 2,16). Jesus quer liberar esses homens de uma imagem perversa de Deus. Se ele pega especialmente os vendedores de pombas (Jo 2,16), é porque esses vendedores exploram descaradamente os fiéis mais pobres, e isso é inaceitável. Ainda hoje, nos acontece de deformar o rosto de Deus, quando o utilizamos para esmagar e explorar as pessoas carentes, para condenar ou para excluir os feridos da vida, os marginalizados. Wackenheim escreve: “O homem religioso tende a sacralizar livros, tradições, instituições, prédios, ritos e doutrinas, enquanto que na Bíblia os únicos sagrados são Deus e o próximo”.
3.3 O Corpo de Cristo. Não podemos encerrar Deus num templo de pedras e de tijolos. O único caminho até Deus, a sua verdadeira casa entre os homens, é seu Filho feito homem. Wackenheim acrescenta: “Jesus de Nazaré revela, ao mesmo tempo, a eminente dignidade de todo ser humano e a humildade de um Deus que, no encontro com todos os ídolos, se apaga no dom que ele faz de si próprio”. A pedido das autoridades judaicas para que Jesus lhes explicasse seu gesto: “Que sinal nos mostras para agires assim?” (Jo 2,18), Jesus responde: “Destruam esse Templo, e em três dias eu o levantarei” (Jo 2,19). Jesus revira não somente as mesas, mas também a maneira de reencontrar Deus. Deus não está mais encerrado num templo de pedras, mesmo se fosse preciso 46 anos para construí-lo; o novo templo de Deus é o Cristo que levou três dias para levantar-se, para ressuscitar, e esse templo, hoje, são os cristãos de todos os tempos que são eles mesmos o Corpo de Cristo ressuscitado. Isso significa que o Cristo de São João dessacralizou os templos de pedra para sacralizar os templos de carne: os humanos que levam neles mesmos o Deus vivo. E, para estar mais seguro de ser bem entendido, o evangelista João o diz explicitamente: “Mas o Templo de que Jesus falava era o seu corpo” (Jo 2,21).
3.4 Escândalo para uns e loucura para outros. É evidente que a fé cristã repousa sobre um evento paradoxal e estratégico: a morte-ressurreição de Jesus; ainda mais porque se trata de uma morte por crucifixão: era a pena de morte infligida aos bandidos, aos assassinos e aos malfeitores. Então, é um escândalo para os judeus, diz são Paulo, e é pura loucura para os pagãos (1Co 1,23). É por isso que não dá para separar o Crucificado do Ressuscitado, pois o Cristo, o Messias, é poder de Deus e sabedoria de Deus por causa da Páscoa, por causa do Crucificado-Ressuscitado. O que quer dizer que são Paulo estaria escandalizado de ver, hoje, essa devoção popular que se desenvolveu após ele, ao redor de Jesus crucificado e ensanguentado, sem referência à Ressurreição. Sim, Jesus foi crucificado, mas ele está ressuscitado e as nossas cruzes devem significá-lo. Estou convencido de que os representantes de Cristo ressuscitado, com a cruz atrás, correspondem mais à teologia dos primeiros cristãos que contemplavam a cruz, no entanto à luz da Páscoa, do brilho da ressurreição.
Concluindo, estejamos cientes, hoje, na nossa caminhada de Quaresma, que somos templos de Deus, e, com esse título, valemos mais do que todas as igrejas e todas as catedrais do mundo... Tweet
Nenhum comentário:
Postar um comentário