Foto: Kurt Moses
Assumir-se peregrino é, antes de mais, aceitar peregrinar ao próprio coração. Só a partir daí podemos caminhar com outros como experiência de autêntica fraternidade. (...) Todos nós, no decorrer da nossa história, em muitos momentos fomos feridos. Como resposta defensiva a estas situações fomos encontrando, ainda que inconscientemente, os nossos próprios mecanismos de proteção; estes permitiram-nos “sobreviver”, mas a partir de uma ilusão, de uma não verdade no olhar sobre nós e sobre os outros, transformando-se assim em obstáculo no acesso ao nosso eu profundo e, como consequência, no acolhimento confiante e gratuito do outro. Estes mecanismos de proteção são identificados, por exemplo, como medos, inseguranças ou falsas seguranças, e, até mesmo, bloqueios.
Peregrinar ao coração – entrar no deserto – é tantas vezes um processo doloroso, porque marcado pelo encontro com estes “fantasmas” que nos habitam. No entanto, o afrontar esta realidade é condição de acesso ao nosso eu profundo, “lugar” da nossa identidade de seres criados à imagem e semelhança de Deus, “lugar” a partir do qual nos experimentamos em harmonia com o Todo, e por isso, “lugar” onde nos sentimos livres. Só a partir daqui é possível o encontro autêntico com o outro, é possível a escuta. (...)
O outro, particularmente aquele que nos parece mais estranho, aquele que é mais diferente, é frequentemente o mais revelador das nossas próprias sombras e, por isso, o mais decisivo do ponto de vista do crescimento pessoal. As feridas que trazemos em nós, fazendo-nos sofrer, a nós e àqueles que connosco se relacionam, contêm em si um potencial imenso de vida quando, precisamente, a partir daí, nos abrimos à infinita ternura de Deus.
A fragilidade, na experiência do encontro com Jesus, é o lugar privilegiado da Graça. Zaqueu testemunha-o de forma muito expressiva: «Senhor, vou dar metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei alguém em qualquer coisa, vou restituir-lhe quatro vezes mais» (Lucas 19, 8). Quando entramos na nossa sombra e aí nos experimentamos amados tal como somos, o nosso coração convertido pela misericórdia dilata-se para além de todas as fronteiras.
- Carlos Maria Antunes
In "Atravessar a própria solidão", ed. Paulinas
Reproduzido via Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (Portugal) Tweet
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