Cartum: Laerte
Nestes tempos de debates sobre "cura" e patologização dos gays, é sempre bom recordar o bom e velho Foucault e suas teses sobre a loucura como mecanismo de exclusão: "em termos filosóficos e políticos, a doença mental continua sendo um mecanismo segregatório, vinculada a uma norma 'faminta e incansável', que atinge inclusive níveis microscópicos", explica o filósofo Alfredo Veiga-Neto aqui.
A esse propósito, a presidente dos Conselhos Regional de Psicologia de SP e Federal de Psicologia vieram ontem a público prestar o esclarecimento abaixo, em artigo já amplamente reproduzido e que também nós aproveitamos para divulgar aqui - pois certas elucidações nunca são demais.
O Conselho Federal de Psicologia (CFP), assim como os conselhos regionais, é uma autarquia de direito público, com os objetivos de orientar, fiscalizar e disciplinar a profissão de psicólogo, zelar pela fiel observância dos princípios éticos e contribuir para a prestação de serviços à população.
Cumprindo as suas atribuições, o CFP, por meio da resolução 01/99, regulamenta a atuação dos psicólogos com relação à questão da orientação sexual.
Considerando que as homossexualidades não constituem doença, distúrbio ou perversão (compreensão similar à da Organização Mundial da Saúde, da Associação Americana de Psiquiatria e do Conselho Federal de Medicina), a resolução proíbe que o psicólogo proponha seu tratamento e cura.
Entretanto, em nenhum momento fica proibido o atendimento psicológico à homossexuais, como afirmado pelo deputado João Campos (PSDB-GO), líder da Frente Parlamentar Evangélica no Congresso Nacional, que propõe um projeto que pretende sustar dois artigos da citada resolução.
Isso fere a autonomia do CFP como órgão que fiscaliza e orienta o exercício da psicologia e contraria as conquistas no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, consolidados nacional e internacionalmente.
A iniciativa do CFP foi pioneira e, na época, o Brasil passou a ser o único país no mundo com uma resolução desta natureza. Por isso, o conselho recebeu dois prêmios de direitos humanos.
Vale ressaltar que, a partir da resolução brasileira, a Associação Americana de Psicologia formou um grupo específico para elaborar documentos de referência para norte-americanos e canadenses, reafirmando posteriormente a inexistência de evidências a respeito da possibilidade de se alterar orientações sexuais por meio de psicoterapia.
A discussão sobre a patologização da homossexualidade é comumente atravessada por questões religiosas, já que certas práticas sexuais são vistas também como imorais e contrárias a determinadas crenças.
Entretanto, há que se reafirmar a laicidade da psicologia, bem como de nosso Estado. Isso significa que crenças religiosas -que dizem respeito à esfera privada das pessoas- não podem interferir no exercício profissional dos psicólogos, nem na política brasileira.
Nesse sentido, ao associar o atendimento à pretensa cura de algo que não é doença, entende-se que o psicólogo contribui para o fomento de preconceitos e para a exclusão de uma parcela significativa de nossa população.
Considerando que a experiência homossexual pode causar algum sofrimento psíquico, o psicólogo deve reconhecer que ele é decorrente, sobretudo, do preconceito e da discriminação com aqueles cujas práticas sexuais diferem da norma estabelecida socioculturalmente.
O atendimento psicológico, portanto, deve, em vez de propor a "cura", explorar possibilidades que permitam ao usuário acessar a realidade da sua orientação sexual, a fim de refletir sobre os efeitos de sua condição e de suas escolhas, para que possa viver sua sexualidade de maneira satisfatória e digna.
- Carla Biancha Angelucci, Presidente do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, e Humberto Verona, Presidente do Conselho Federal de Psicologia
Publicado originalmente na Folha de S. Paulo em 05/03/12.
Reproduzido via Conteúdo Livre.
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A propósito...
A Associação Americana de Psicologia (APA) publicou em 2009 uma resolução determinando que profissionais de saúde mental não disessem a seus pacientes gays que eles poderiam se tornar heterossexuais por meio de terapia ou outra forma de tratamento. A resolução foi baseada em um relatório com os resultados de dois anos de pesquisas, durante os quais foram analisando 83 estudos sobre orientação sexual conduzidos desde 1960. Os 150 profissionais afiliados à entidade "manifestaram firme oposição à chamada 'terapia reparadora', que busca a mudança de orientação sexual. O texto afirma que não há evidência sólida de que essa mudança seja possível", assinalou matéria do G1 sobre o tema (aqui). "Alguns estudos, o relatório ressalta, sugerem até mesmo que esse tipo de esforço pode induzir à depressão e a tendências suicidas. 'Quem atende deve ajudar seus pacientes por meio de terapias (…) que envolvam aceitação, apoio e exploração de identidade, sem imposição de uma identidade específica'", segundo o documento.
O relatório, um extenso documento de 138 páginas (que pode ser lido na íntegra, em inglês, aqui), trata com detalhes a questão de como terapeutas devem lidar com pacientes gays que lutam para permanecer fiéis a crenças religiosas que desaprovem a homossexualidade. O mais interessante é que, segundo a líder da equipe responsável pelo estudo, a esperança é que "o documento ajude a desarmar o debate polarizado entre religiosos conservadores que creem na possibilidade de mudar a orientação sexual e os muitos profissionais da área de saúde mental que rejeitam essa opção. 'Os dois lados precisam se educar melhor', disse a especialista. 'Os psicoterapeutas religiosos precisam abrir seus olhos para os potenciais aspectos positivos de ser gay ou lésbica. Terapeutas não religiosos precisam reconhecer que algumas pessoas podem dar preferência a sua religião, em detrimento de sua sexualidade'."
No Brasil, também em 2009, o Conselho Federal de Psicologia já havia aplicado, ainda segundo a matéria do G1, "uma censura pública como punição à psicóloga Rozângela Alves Justino, que oferecia terapia para que gays e lésbicas deixassem de ser homossexuais [saiba mais sobre o caso aqui]. O órgão concluiu que a profissional infringiu o Código de Ética da Psicologia" e a resolução de 1999 segundo a qual a "homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão".
(Com informações do G1, via Tantas Notícias) Tweet
4 comentários:
Excelente iniciativa montar este blog e o site Diversidade Católica. Quase não deixo comentários, mas sempre estou lendo as postagens que são um verdadeiro bálsamo contra a discriminação/desinformação.
Querido Jônatas,
Muito obrigado por nos acompanhar e por sua participação. É uma alegria para nós essa sua indicação de que estamos no caminho certo!
Um abraço fraterno e carinhoso!
:-)
Obrigado pela acolhida. Gosto muito da qualidades dos textos e fotos. É sempre uma oração fervorosa estar aqui.
Que bom, Jônatas. A casa é sua, fique à vontade! :-)
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