Ilustração: Julieta Arroquy
Reproduzimos, a seguir, a apresentação escrita por João Batista Libânio, SJ, mestre e doutor em Teologia e professor de Teologia no Instituto Santo Inácio de Belo Horizonte, para o livro "Fé além do ressentimento: fragmentos católicos em voz gay", de autoria do padre James Alison, autor da "Carta de um padre católico a um jovem homossexual", que já publicamos aqui.
Os grifos são nossos.
Há apresentações de livro formais, comerciais e editoriais. Há aquelas que nascem da amizade. Há aquelas que se forjam baseadas no valor da obra. Distancio-me da primeira espécie para me fixar nas duas seguintes.
Conheci Alison quando fez teologia na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de Belo Horizonte, tendo-o como aluno. Recordo-me de que, certa vez, no final de uma exposição, que eu fizera, sobre a abertura fundamental do ser humano para a Transcendência, inspirado por K. Rahner, ele se voltou para mim e disse: “Pura poesia!”. Naquela hora falou o inglês empírico, mas sem ocultar certa pitada de poesia. Já naqueles idos percebia que ali jazia enorme potencial cultural, que se desabrochou em teologia tão criativa como aparece no livro. Vale dele naquele tempo o provérbio latino: ex digito gigans. Pelo dedo se conhece o gigante.
Neste livro encontrei um poeta. Não romântico, nem lírico, nem elegíaco, mas aquele que deixa aflorar do profundo do ser experiências existenciais densas e as retrata num discurso impregnado de beleza, liberdade e sem ressentimento ou acidez polêmica.
Ele consegue, como poucas obras, já no título apresentar as teses fundamentais desenvolvidas. Quatro blocos: fé, além do ressentimento, fragmentos católicos, voz gay. Todos coerentemente articulados, profundamente elaborados, formam conjunto valioso.
É um livro que brota da fé. Alison trabalha com imensa originalidade textos e contextos bíblicos do Primeiro e do Segundo Testamento. Consegue, sem forçar a exegese, conduzir o leitor à profunda compreensão da passagem bíblica. Logo no primeiro capítulo, nos surpreende com releitura extremamente original e fecunda da cura do cego de nascimento. Escapa das interpretações comuns e conhecidas, introduzindo o leitor, com sutileza, em novo campo hermenêutico.
Recorre com frequência a João, a Paulo e a outros textos bíblicos para levar à reflexão. Entremeia com delicada fineza, leveza e sutileza elementos autobiográficos do processo de integração humana e espiritual de sua condição de homem gay com perspicaz leitura de textos bíblicos. Evita gerar no leitor extremos do sentimento de rejeição da condição gay ou de compaixão pela vítima ou de revolta contra o sistema social ou contra a máquina eclesiástica. Atravessam-lhe a obra transparência e honestidade do relato. Em qualquer situação existencial, gay ou não, o leitor se toca. A pessoa gay certamente encontra uma palavra de libertação, não pela via barata da contestação, mas por honesto processo reestruturante interno, baseado fundamentalmente na ação criativa e bondosa de Deus e apoiado por inúmeras passagens da Escritura feita em voz gay. (...)
Outro toque de genialidade está na postura básica de Alison. O livro desarma os batalhões que porventura viessem a formar-se em torno dele. Por ser tema delicado e de difícil manuseio no mundo eclesiástico, seria previsível que se travasse em volta do livro a batalha entre os que o atacariam como desrespeitoso das normas eclesiásticas e os que o defenderiam precisamente por isso. No entanto, Alison toma distância dessas duas posturas como situações a serem superadas por profunda conversão evangélica. Ambas cairiam na mesma armadilha. Não se trata de fazer das pessoas gays vítimas e cerrar fileiras ao seu lado contra o aparato eclesiástico, nem também de posicionar-se como defensor deste em nome da lei e da norma, sem alcançar o espírito íntimo do cristianismo.
Ambas as posturas refletem ressentimento. E a opção de base de Alison reside precisamente na superação do ressentimento. Já o pratica na própria maneira de conduzir o tema e na releitura de suas experiências de vida, não raro duras, pesadas e traumáticas. E ele o faz, não por uma simples terapia de autoconfiança e de relativização da posição do outro, mas por lento trabalho interior de reconstrução dos escombros da vida pela força da experiência de Deus, que cria e ama. Logo no início, faz tocante leitura de José, do Egito, vendido por seus irmãos e naturalmente posto em situação de ressentimento, e de como ele a superou por generosidade bem arquitetada para proteger os irmãos criminosos em relação a ele. Aparecem já as primeiras intuições sobre essa categoria básica do livro.
Ressentimento não se supera com luta, com batalhas contra ou em defesa de alguma posição julgada errada tanto pelos que rejeitam o mundo homossexual quanto pelos que o defendem. Não vai por aí. Mesmo o mais intransigente inquisidor se sente tocado e questionado pelo livro. Solapa-lhe a base inquisitorial.
Alison conhece profundamente o pensamento de René Girard. Mais.
Girard se lhe transformou num companheiro de caminhada pelos meandros da fé cristã. Fê-lo perceber como, entre nós, funciona uma lógica de culpar a vítima. Jesus fez explodir o ciclo vitimário. Alison, no caso tratado, evita que tanto a pessoa gay como o conjunto eclesiástico sejam vistos como vítimas de ataques opostos. A reflexão vai na linha da superação de tal lógica, nada evangélica. Pelo contrário, Jesus procura inserir a todos na fraternidade inclusiva, universal de filhos de Deus. Só nessa perspectiva se vence esse jogo perigoso. A essa fraternidade se opõe uma fraternidade excludente, fratricida, de Caim a respeito de Abel, que reivindica uma paternidade exclusiva e excludente. Esta se baseia no biológico, no cultural, enquanto a de Jesus, na gratuidade do dom de Deus que nos quer todos irmãos. Com efeito, existe uma natureza fratricida na cultura humana, que atua por meio de muitas instâncias particulares, de que a máquina eclesiástica não se faz exceção. Sob essa ótica, Alison analisa várias das discussões de Jesus com os judeus, como nos relatam João e outras passagens da Escritura, como a saga de Jacó e José, a história de Jonas etc. E ele vê como tarefa cristã começar a desmontar os efeitos da fraternidade violenta em nossa vida e na dos outros. Implica a capacidade de ir mais além de uma montanha de coisas que nos pareciam sagradas e paternas no nosso ambiente familiar, cultural, geográfico, político e religioso. A libertação vem da dupla experiência de sentir-se filho amado de Deus e de poder dizer “nós” numa comunidade de irmãos em Igreja, sinal de um Reino apenas imaginável.
O discurso eclesiástico, que considera algum grupo de pessoa como “os outros”, separando-os do corpo eclesial, gera vítimas. Deus criador de todos, a quem ama incondicionalmente e que nos fala como a irmãos em seu Filho Jesus, refuga os mecanismos geradores da exclusão em nome da inclusão querida por ele. Alison chega a afirmar que “o que é pecado é a própria participação no mecanismo de exclusão, e não o defeito que provoca essa exclusão”. Nessa dinâmica se situa o livro.
O subtítulo fala de fragmentos católicos. Sinaliza a natureza das considerações expostas. Alison considera que corresponde à teologia do atual milênio um caráter fragmentário. Os sistemas poderosos, bem construídos e fechados, cederão espaço a estudos a partir de óticas muito diferenciadas. Nenhuma delas conseguirá impor-se na sua exclusividade e totalidade, mas contribuirá com parcela de uma contínua busca do projeto salvador de Deus.
O adjetivo “católico” não pareceu a Alison algo evidente. Duvida se lhe cabe a categoria de “católico romano” ou simplesmente de cristão. Teologicamente falando, parece correto afirmar que todo elemento cristão tem cidadania no mundo católico, se não por convicção da instituição eclesiástica, ao menos por força da vontade de Jesus. Quem está com Jesus não deveria sentir-se fora da casa católica. No entanto, sabemos que o termo “católico” se restringe, não raramente, ao universo institucional, que não consegue fidelidade absoluta ao evangélico e por isso pode pecar pelos dois lados. Ora afirmar como evangélico o que não é, ora rejeitar como não evangélico o que é. Por isso, reflexão como esta de Alison ajuda a purificar o termo “católico” do peso institucional para lhe dar a leveza evangélica.
No discurso, essa afirmação goza de unanimidade. Quando o Concílio Vaticano II afirma a realidade da Igreja como santa e pecadora, no fundo, está dizendo o mesmo. Como santa, cabe-lhe perceber a realidade evangélica. Como pecadora, falha na dupla percepção aludida. Com a pluralidade de discursos teológicos, supera-se o quadro rígido que impõe única regra e medida da verdade e busca-se a fraternidade dos irmãos. A verdadeira natureza de Deus se descobre não por meio da verticalidade de uma paternidade que se impõe, mas pela horizontalidade de uma fraternidade que se vive. Essa ideia volta sob muitos aspectos como fundamental da leitura cristã de Deus.
“Em voz gay” oferece a maior originalidade e coragem da obra. Quando a teologia da libertação levantou a pretensão de produzir uma teologia diferente da teologia europeia, até então considerada “a teologia”, houve mal-estar, que perdura até hoje, em círculos acadêmicos e eclesiásticos. Alison ousa mais. Escolhe a voz gay para ler textos e passagens bíblicas, para analisar situações concretas. Enfrenta a posição moral tradicional da ordem da criação, que exclui todo comportamento que a contrarie como heterodoxo, em nome de outra compreensão de Deus e da criação em Cristo.
Ele o faz sem ressentimento, sem radicalismo. Impressiona a lucidez das reflexões. Questionam a todos, inclusive os próprios defensores ardorosos e reivindicadores da causa gay contra certa moral e práxis eclesiástica tradicional. O livro não entra por esse caminho. Ele trabalha a dinâmica eucarística da fé católica que evolui de uma concepção corporativa excludente dos estranhos, passando por um momento de ressentimento antifarisaico em relação aos sujeitos da exclusão, até sua superação, e a da distinção entre nós e os outros numa igualdade de coração em força do amor recriador de Deus manifestado em Jesus.
Em relação às pessoas gays, oferece-lhes o reencontro com uma dignidade que, em última análise, lhes vem de Deus e que ninguém tem o direito de negar. Teme que a vida da maioria das pessoas gays esteja inundada de vergonha e orgulho. A vergonha leva-as a fugir de si mesmas antes do tempo, e o orgulho obriga-as a exibir-se antes do tempo. Quando se está em luta consigo mesmo e com os demais, projeta-se essa violência sobre os outros. Aos opositores, Alison mostra-lhes a pouca percepção de exigências profundas da Escritura. Não os combate. Analisa os pressupostos, os mundos subterrâneos, inconfessados e não falados, para lançar luzes oriundas da própria Palavra de Deus.
No decorrer do livro, o leitor detecta como muitas atitudes e escritos eclesiásticos não respondem a gestos, palavras e atitudes de Jesus. Alison o mostra por fidelidade à mensagem evangélica e não em nome de algum confronto. Um dos pontos fundamentais dessa obra consistiu em pensar teologicamente em voz gay, sem ressentimento nem proselitismo, mas de maneira serena, fina e profunda. Se há algo duro, não vem do discurso, mas da própria objetividade da realidade.
É um livro inaugural. Leva-nos todos a pensar. Tira-nos do clima ainda reinante em muitos lugares de polêmica e de combate quando se trata dessa questão de homossexualidade. Não o faz por nenhum laxismo moral, mas com a fineza de quem mostra traços evangélicos iluminadores. O leitor tem o direito de discordar, naturalmente, da posição pessoal do autor, mas dificilmente deixará de reconhecer a possibilidade hermenêutica da voz escolhida e sua capacidade de, a partir dela, trazer pontos importantes da compreensão da mensagem evangélica.
Na antítese de tal mensagem está a violência física e simbólica. Esta tem atravessado a polêmica sobre a sexualidade de ambas as partes. Os que acusam criam as vítimas, executam-nas física ou simbolicamente, e os que se associam a elas ou elas mesmas o fazem em linha oposta. Alison persegue precisamente uma reflexão que supere essa violência e possibilite um lugar de encontro em vez de rivalidade. Textos escriturísticos que, à primeira vista, pareceriam secundar tal violência, relê-os noutra perspectiva, mostrando inesperado sentido não explorado. Tece uma imagem de Deus fora do reino da violência, da reivindicação, da vingança, do “toma lá dá cá”, da rivalidade, do “olho por olho”. Um Deus situado nesse universo seria mesquinho. Muito próximo de nós, mas pouco Deus. Pelo contrário, Ele é aquele que preconiza a gratuidade e aspira à vida integrada dos seres humanos, e não excluída, vitimada, separada.
Nesta introdução expus algumas poucas ideias-chave de Alison, deixando ao leitor a oportunidade de avançar nelas e enriquecer-se com a leitura do livro. Não o compreenderá quem já se posicionou rígida e ortodoxamente num dos dois campos de batalha, tanto na vitimização das pessoas gays quanto na defesa ressentida de tanta discriminação. Não teria entendido o livro alguém que o interpretasse como uma defesa de qualquer prática sexual ou da relativização do crime de pedofilia que tem agitado tanto a imprensa mundial. Está em questão a dignidade das relações humanas de amor, possíveis no duplo mundo heterossexual e gay, como o contrário também. O livro faz jus ao título: “fé além do ressentimento”. O mínimo que se pode dizer desta obra é que foi escrita por alguém de trabalhada e profunda maturidade humana unida à experiência de fé livre e sempre aberta a caminhar. A todo o texto preside a convicção vivida de que o amor de Deus excede a todo desenho humano e não há diferença que esteja fora do longo e amoroso olhar de Deus. Tweet
5 comentários:
Caro comentarista anônimo,
Quando vc estabelece uma associação entre homossexualidade e pedofilia e ativismo LGBT e fanatismo, vc pisa um terreno extremamente delicado. Por isso, em respeito à equipe de colaboradores e aos demais leitores deste blog, optamos por apagar seus comentários. Solicitamos que você procure se expressar de maneira mais cuidadosa.
Certos da sua compreensão, agradecemos desde já.
Que triste ler um texto tão amplo e primordial e chagar aqui nos comentários e ler esses absurdos desse anônimo. Enfim, todo anonimato só favorece quem o pratica, nunca quem lê...
Vou atrás do livro do Pe. Jamaes Alison.
Beijo do
Ricardo Aguieiras
aguieiras2002@yahoo.com.br
Ricardo,
leitores como você e os outros que tem interesse no dialogo veem este anonimato esgotar-se em si...
É um discurso em circulos, não tem começo nem fim...nada entra, nada saí e ao mesmo tempo diz muito sobre quem escreve e sobre o anonimo que não consegue se ver que é anonimo pra si mesmo.
Uma pena.
Grande abraço;
Rodolfo Viana
Querida equipe do Diversidade,
Sou muito grato por todas as informações postadas por vocÊs e sou apoiador desse importante trabalho. Só uma questão: é necessário mesmo grifar os textos? Isso tem me incomodado e queria dividir esse sentimento. O grifo é algo muito pessoal e nesse caso parece restringir ou conduzir a leitura. E essa não é a intenção da equipe, pois conheço o trabalho de vocês! grande abraço! Tadeu
Oi, Tadeu,
Muito obrigado por esse seu comentário e seu feedback sobre essa questão. Botou a gente para pensar aqui... :-)
Olha, em princípio os grifos têm uma função específica: por uma série de motivos, a gente acaba falando muito por meio dos textos e dos autores que a gente escolhe reproduzir aqui. Fazemos das vozes deles a nossa voz. Por um lado, isso serve pra mostrar que há muita gente bacana por aí pensando de uma maneira que é consonante com o nosso jeito de ver as coisas. Por outro, compensa um pouco o fato de termos uma série de limitações na nossa disponibilidade de tempo devido ao fato de nosso trabalho no blog ser inteiramente voluntário. Nesse sentido, os grifos servem pra personalizar o texto, colocar a nossa voz nele de uma maneira mais concreta - dizendo: "olha, pra gente isso aqui é crucial". Não é, como vc percebeu, de modo algum na intenção de guiar a leitura do texto ou fazer um recorte pro leitor; por isso mesmo, aliás, a gente faz questão de postar os textos quase sempre na íntegra, sem tirar nada.
Por outro lado, acho que deu pra entender o que vc quis dizer. É claro que os grifos vão influenciar a leitura, né? Acabam recortando um bocadinho, pelo menos, mesmo não sendo essa a intenção.
Bom, em função desse teu comentário vamos rever nossa "política de grifos" e ver se reduzimos um pouco a coisa. :-)
De novo, obrigado pelo toque! :-)
Grande beijo!
:-)
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