domingo, 15 de maio de 2011

Como responder um anônimo: sobre a importância do diálogo com o diferente

Ilustração: Tang Yau Hoong

Recebemos muitos e-mails no nosso site. Temos uma equipe de voluntários para respondê-los e procuramos nos organizar da melhor maneira para isso, mas mesmo assim às vezes demoramos um pouco para responder. De todo modo, temos o compromisso de responder todos. Com frequência recebemos também mensagens, quase sempre anônimas, mais ou menos homofóbicas. Na semana passada uma mensagem em particular causou um grande debate entre nós, de um Anônimo que se dirigiu a nós muito educadamente, quase carinhosamente, instando-nos a adotarmos o celibato como nossa própria "Cruz":

"Concordo muito que existam homossexuais dentro da Igreja Católica, pois Deus não os condena, esse é apenas uma variação do ser humano perfeito. Ser homossexual na Igreja não tem problema algum, e ter um grupo que trate disso, algo como uma pastoral dentro da Igreja Católica, não vejo problemas. Mas me preocupa em ver que vocês dizerem por aqui que a relação entre homossexuais não é errada.(...) Cabe a cada homossexual aceitar a sua condição, e entender que como sua Cruz, foi designado a ele por Deus que ele não tivesse relações. (...) Homossexuais tem sim que continuar na Igreja e santificar a Deus com suas vidas. Sofrendo? Sim. Quem é que não sofre hoje em dia?"

Voltaremos à ideia de "Cruz" e do sacrifício num post próximo, mas o caso é que houve entre nós um amplo debate acerca da propriedade de respondermos ou não alguém com ideais diferentes das nossas e que não quis revelar seu nome. Das mensagens trocadas no grupo uma em particular me tocou profundamente, e gostaria de compartilhar aqui, com a devida permissão do autor, Arnaldo Adnet, um dos fundadores do Diversidade Católica:


"Diversas e diversos por mim amados,

Estamos vivendo um momento feliz. Creio que devemos nos dirigir amorosamente ao anônimo e remetê-lo às nossas idéias, como já expressas no site.

Devemos agradecer-lhe por ter nos dado saber suas ideias - que são as mesmas de muitos católicos com os quais convivemos.

De que adianta convivermos apenas com aqueles que pensam como nós? Todos precisamos da diversidade: a Igreja, as escolas, a sociedade, os caretas, os liberais, todos.

Ficamos muito impressionados com a discussão de que participamos quando da visita ao Dignity, em Boston, no ano passado. Tratavam da redação da nova missão do grupo, com a preocupação de que também os heteros não se sentissem excluídos.

Isto me faz pensar em como a diversidade faz falta. As turmas de MBA da Coppead, da UFRJ, são formadas a partir da análise dos currículos, dos resultados dos exames, mas também levam em conta a miríade de indivíduos e profissões de modo a que os trabalhos em grupo e que as discussões em sala sejam mais profícuas e reflitam melhor a realidade.

É muito bom (e é fundamental) encontrarmos nossos pares, especialmente onde não se esperava achá-los, como na Igreja. Creio porém que seria mais enriquecedor se não restringíssemos nossas vivências e inserções religiosas ao set do Diversidade.

A homofobia existe. Poucos são os que se levantam para defendê-la e expõem suas ideias. Soube que a filha do Tas chegou a agradecer ao deputado por levantar a questão e suscitar debates.

Eu quero conviver com cristãos homofóbicos, pelo menos enquanto eles ainda forem numerosos como de fato o são. É bom que alguns deles se levantem para declarar suas posições, pois a maior parte se cala na midia mas não hesita em discriminar ou oprimir até mesmo ou principalmente seus filhos.

Nós sabemos como é difícil conviver com diferença de opiniões, mesmo entre nós. Mas não podemos esquecer que crescemos com essas diferenças.

Gostaria de ter muitas oportunidades de falar a públicos conservadores e mesmo que fosse rechaçado pela maioria absoluta, seria confortante se soubesse que ao menos um tivesse acolhido uma semente.

Quanto à resposta, proponho o seguinte:

Caro Sr. Anônimo,

Obrigado por consultar nosso site e se dar ao trabalho de conhecer nossas ideias. Sabemos que não expressam a totalidade do pensamento da Igreja e que estão longe de serem as predominantes.

Nós certamente somos pecadores – talvez não exatamente pelas razões pelas quais o senhor assim nos julga. Porém, mesmo pecadores, somos filhos tão amados por Deus quanto o senhor certamente o é.

Acreditamos que viver o Evangelho é um privilégio, mais que um sacrifício. Cada vez que livremente escolhemos agir segundo o Amor de Cristo, começa nossa Vida Eterna: aqui e agora. Ainda que soframos dor, humilhação, perseguição, injustiça, se pudermos permanecer firmes no propósito de amar o próximo, já estaremos no Céu. As bases para nossa morada no Reino de Deus não são materiais. Não nos basta sacrificar nossos desejos materiais para ganharmos direito a uma recompensa maior, em outro mundo. Ainda que morrêssemos castos, poderíamos nos afogar em avareza, amargura, desamor, se não baseássemos nossas escolhas nos princípios verdadeiramente cristãos. Viver segundo esses princípios implica sim em sacrifícios. Mas cada vez que livremente escolhemos o sacrifício, é cumprida a promessa do jugo suave, do fardo leve de Jesus, pois quem carrega o peso não somos nós, mas Ele.

Agradecemos por dar-nos polidamente a conhecer suas ideias, que certamente correspondem a numerosos membros da nossa Igreja. Procuraremos aqui responder amorosamente com as nossas, a saber:

O católico gay que mantenha um relacionamento está em pecado?

Alguns documentos da Igreja classificam os atos homossexuais como “intrinsecamente desordenados”. Importante frisar que, de acordo com a doutrina, “desordem” é uma classificação insuficiente para determinar o pecado.

Pode parecer estranho à primeira vista, mas há nuances que distinguem os conceitos de “desordenado, errado, mau” e “pecado”.

A Teologia Moral católica chama de pecado a circunstância que reúna três elementos: matéria grave, liberdade na ação e consciência de que aquilo é pecado. Só a junção dos três elementos caracteriza pecado grave, segundo a Igreja.

O Concílio Vaticano II* ensina: “Pela fidelidade à voz da consciência, os cristãos estão unidos aos demais homens, no dever de buscar a verdade e de nela resolver tantos problemas morais que surgem na vida individual e social” (Constituição Pastoral Gaudium et Spes 16). Quem orienta sua conduta na direção da verdade sincera e tem uma consciência bem formada deve, então, seguir a voz de sua consciência. É o que a Igreja espera de todos os católicos.

Muitos católicos gays simplesmente não reconhecem suas vidas e seus relacionamentos na forma “desordenada” de que falam alguns documentos. Por isso, como diz o texto conciliar mencionado no parágrafo anterior, não podem ir contra a sua consciência se esta não os acusa de estar em pecado.

A situação pode gerar muita insegurança em algumas pessoas de fé. Mas é de se questionar se tal insegurança não seria fruto de certo infantilismo espiritual que tem o Magistério** como instância substituta da própria consciência, uma espécie de “superego”. O Magistério não pode, nem se pretende, substituto da consciência dos católicos.

Confrontar-se com uma consciência bem formada e agir em conformidade a ela. Estas são as características de um cristão “maior de idade” segundo Karl Rahner, um dos maiores teólogos católicos do século XX, perito do Concílio Vaticano II. Disse Rahner: “Mas, em última instância (o cristão) terá que perguntar-se perante Deus e sua consciência, sem que seu espírito lúcido se deixe subornar, a partir de uma consciência limpa e, naturalmente, através de todos os meios que dispõe nestes casos um homem e um cristão, qual é a sua convicção pessoal e sua decisão nesse caso concreto” (RAHNER, K. Artigo “El Cristiano Mayor de Edad” ).

Com relação específica às uniões gays, padre Jan Visser, um dos grandes moralistas católicos da atualidade, afirmou: “Quando alguém está lidando com pessoas que são profundamente homossexuais que estarão em sérios problemas pessoais e talvez sociais, a não ser que eles se mantenham em uma parceria ao longo da sua vida homossexual, essa pessoa que as assiste pode recomendar-lhes que procurem tal parceria, e aceitar este relacionamento como o melhor que pode ser realizado na situação atual.”

Importante mencionar que Visser trabalhou na equipe que compôs o documento Declaração sobre algumas questões de Ética Sexual, de 1975, que faz uma avaliação negativa da homossexualidade. Posteriormente, como vimos na citação acima, ele admitiu poder haver uma diferente avaliação de acordo com casos concretos.

Obrigado por partilhar educadamente conosco suas ideias, ainda que diferentes das nossas em alguns pontos. Se pudermos ambos respeitarmo-nos e tolerarmo-nos, estaremos praticando o verdadeiro amor cristão.

Fraternalmente,

Diversidade Católica
"

Em tempo: Tentamos enviar a resposta para o Sr. Anônimo, mas o e-mail - adivinhem só! - voltou, por endereço inexistente. Enfim... :-(
_______________
*Concílio Vaticano II - Reunião de bispos católicos de todo o mundo ocorrida nos anos 1962 a 1965. Este Concílio foi um grande marco na renovação da Igreja no sentido de atualização e de diálogo com o mundo contemporâneo.

**Magistério - Ofício de interpretar a Palavra de Deus exercido pelos bispos, que são os sucessores dos apóstolos, em comunhão com o papa, bispo de Roma e sucessor de Pedro. O Magistério não está acima Palavra divina, mas a serviço dela.

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