quinta-feira, 17 de março de 2011

As perspectivas da união homoafetiva: entrevista com Maria Berenice Dias


Cada família tem o seu formato, sem copiar “aquele modelo idealizado, imposto pela religião, homem e mulher, casamento, filhos. Não é mais esse o modelo da família. Até acho que nunca foi, mas agora se tem mais liberdade para se assumir e aceitar essa realidade”. A afirmação é da advogada especializada em direito homoafetivo Maria Berenice Dias na entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line. Em sua opinião, a família homoafetiva é uma realidade que sempre existiu e acompanha a história da humanidade. “O que eventualmente muda é uma maior visibilidade, uma maior ou menor aceitação social”. Ela analisa também a influência das religiões na aceitação das uniões homoafetivas: “As religiões são muito contrárias às uniões de pessoas do mesmo sexo, que deixam de cumprir aquele desígnio, o ‘uni-vos e multiplicai-vos’. Há então uma ojeriza muito grande, e isto toma conta da sociedade. Trata-se de uma repulsa severa a quem simplesmente tem outra maneira de viver e outra maneira de amar”.

Maria Berenice Dias é desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, advogada especializada em Direito Homoafetivo e vice-presidente e fundadora do Instituto Brasileiro de Direito de Família.

Confira a entrevista, reproduzida via IHU. Os grifos são nossos.

Como você analisa a questão da união civil homoafetiva no Brasil?
Não existe nenhuma legislação no Brasil reconhecendo o direito a pares de pessoas do mesmo sexo. Nem de união civil se pode falar, porque essa figura não existe no nosso direito. Não há nenhuma regulamentação, nem com união civil, nem como sociedade de fato, absolutamente nada, portanto. São os tribunais que estão buscando avançar nesse debate. Os juízes vêm deferindo e reconhecendo uma série de direitos às uniões que chamo de afetivas, porque a marca mesmo é a afetividade das pessoas. É isso que vem avançando em termos de jurisprudência. E no dia em que se tiver consolidado, com orientações bem definidas, o legislador vai ter que romper essa barreira do medo e acabar legislando sobre esse tema.

A jurisprudência pode ser entendida como ferramenta e instrumento para assegurar a homossexuais e transexuais o exercício da cidadania?
Não só o legislador, também o judiciário é egresso de uma sociedade ainda conservadora e muito preconceituosa. Enquanto algumas decisões avançam nos Tribunais Superiores, o próprio Superior Tribunal de Justiça agora está em aberto para se julgar, no Supremo Tribunal Federal, uma decisão favorável. Nessas questões a justiça no Brasil é como Las Vegas: entra com a ação e aposta esperando que se ganha a demanda, mas o número de decisões vem crescendo significativamente. Acho que a justiça, de fato, tem atendido estas demandas.

A partir da sua experiência na área jurídica, o que dificulta a seguridade dos direitos homossexuais no Brasil?
Nada mais do que o preconceito. Há uma influência ainda muito severa da religião. As religiões são muito contrárias às uniões de pessoas do mesmo sexo, que deixam de cumprir aquele desígnio: “uni-vos e multiplicai-vos”. Há, então, uma ojeriza muito grande, e isto toma conta da sociedade. Trata-se de uma repulsa severa a quem simplesmente tem outra maneira de viver e outra maneira de amar.

Em janeiro deste ano, a Justiça de São Paulo reconheceu o direito à dupla maternidade. O que essa decisão representa e significa no âmbito das adoções?
Em termos de adoção, nós precisamos assumir uma postura de muita responsabilidade, porque a enorme resistência à concessão de adoções, não só para homossexuais, mas em geral, faz as pessoas ficarem anos na fila aguardando adoção. As crianças perdem a chance de serem adotadas dentro dos abrigos, em função de uma burocracia imensa, uma postura equivocada dos juízes, que ficam insistindo no reenquadramento dessa criança a sua família natural. Com isso, a adoção está se transformando em algo quase inacessível.

Como surgiram esses modernos métodos de reprodução assistida, que vêm sendo usado por homossexuais e heterossexuais, as pessoas estão desistindo de adotar. Isso só vai aumentar o nosso problema social, que são as crianças abandonadas, sem destino, sem futuro, sem um lar. Essa decisão de São Paulo, na qual inclusive fui advogada das partes, é a primeira no Brasil a reconhecer a dupla maternidade, porque os óvulos de uma das mulheres foram fecundados no laboratório e implantados na outra.

A Justiça não reconhecia que ambas eram mães dessas crianças que são gêmeas. Pensavam que ou a mãe é aquela que gestou, que carregou no ventre, ou a mãe é a que concedeu o material biológico. Penso que é um avanço importante e um alerta para que se agilize a temática da adoção no país.

Como você vê a posição do Conselho Federal de Medicina (CFM) que determinou que casais homossexuais tenham direito de acesso a técnicas de fertilização?
Antes se falava em um homem e uma mulher como um casal. Agora pode ser qualquer pessoa. Mesmo uma pessoa sozinha, independente da sua orientação sexual, pode fazer uso dessas técnicas, assim como casais do mesmo sexo. No momento em que isso se populariza e, inclusive, se tem acesso a esses meios através do Sistema Único de Saúde, a tendência é de crescimento. Além disso, o custo dessas técnicas está mais barato, com resultados mais positivos. Está crescendo no Brasil uma verdadeira indústria na qual as crianças estão sendo geradas em laboratórios para atender esse desejo que as pessoas possuem de ter filhos.

O direito de ter uma família é legítimo, mas acho que a primeira opção mesmo deveria ser a adoção. Há um contingente muito grande de crianças que são jogadas no lixo, que os pais não podem criar, ou não querem criar, ou não é o momento na sua vida para isso. Assim, essa facilitação dos meios procriativos gera uma irresponsabilidade maior. Espero que os juízes criem uma legislação mais célere para a adoção. Não que eu seja contra as formas procriativas. A minha grande preocupação é com as crianças abrigadas e sem chance de serem adotadas.

Existe alguma lei no Brasil que garanta ou permita a adoção por homossexuais?
Mais uma vez existe essa covarde omissão do legislador, que simplesmente fala na adoção, porém não diz apenas heterossexuais podem adotar. A lei da adoção mudou recentemente e foi para pior. Havia, ainda, uma tentativa de proibir a adoção por homossexuais, mas essa parte foi retirada. Existe preconceito contra os casais homossexuais adotarem uma criança; falam que para adotar é preciso ser casado ou viver em união estável, mas o fato é que os homossexuais vivem em união estável. Portanto, não vejo nenhum obstáculo legal para ser concedido, ainda que tenham juízes que, infelizmente, neguem. Mas está sendo feito um grande trabalho de amenizar e juntar essas decisões Brasil afora para servir de fonte de pesquisa, de estudo ou banco de dados com tudo que a Justiça vem decidindo e, de fato, os números vão crescendo.

Só em 1989 é que se autorizou a primeira união homoafetiva. É possível se ter ideia de quantas uniões homoafetivas já foram permitidas o Brasil, de lá para cá?
O sistema de informação no âmbito do poder judiciário é extremamente falho. Não se tem acesso ao que os tribunais julgam, muito menos ao que os juízes julgam. O que está no sítio dos tribunais é uma parcela muito pequena divulgada e as sentenças dos juízes não são disponibilizadas. Quando o juiz defere uma sentença e não há recurso no tribunal, não se sabe, não se tem ideia, ninguém levanta esses dados.

A constituição da família homoafetiva já é uma realidade na sociedade brasileira? Como o Direito tem atuado para garantir esse direito?
Que a família homoafetiva é uma realidade, é. Sempre foi, ela sempre existiu. Isso acompanha a história da humanidade. O que eventualmente muda é uma maior visibilidade, uma maior ou menor aceitação social. O movimento chamado “saindo do armário” que nós vivemos agora, de mais democracia, de mais liberdade, propondo um certo afastamento desses padrões muito convencionais, com influências grandes da religião, está se enxergando mais.

As pessoas estão assumindo mais a sua orientação sexual e, mesmo com falta de leis, vêm batendo às portas do Judiciário para o reconhecimento dos direitos. E a Justiça não pode ser cega, de fato essa é uma realidade. E a quantidade de direitos que vem sendo deferidos, como pensão por morte, a própria adoção, permitir a concessão de vistos de permanência, também ser colocado como dependente, ter direitos hereditários garantidos. Enfim, isso vem mostrando de que não tem como não reconhecer essas uniões.

Qual é a diferença, a partir da lei, da união civil homoafetiva e do casamento?
O casamento precisa da chancela do Estado, ou seja, as pessoas precisam comparecer a um oficial do registro civil e ele celebrar um casamento, com juiz de paz. Não enxergo nenhuma vedação legal, não acho que um casamento do mesmo sexo seja proibido, não está escrito na lei isso, mas há uma resistência nesse sentido. Duas vezes já se entrou com ações para buscar o reconhecimento desses direitos e não foi deferido. Mas assim mesmo, sem essa chancela do Estado, as pessoas vivem juntas e estão constituindo uma união estável. Não gosto da palavra união civil, porque tira a característica do conteúdo de família, forma uma entidade familiar, união estável. E a união estável, para se constituir, não precisa passar pela aprovação de ninguém, ela existe, seja heterossexual, seja homossexual. Não se pode dizer que as famílias formadas por pessoas do mesmo sexo não são uma entidade familiar que não mereça a proteção do Estado.

Como a questão da adoção homoafetiva é tratada com a criança, uma vez que para o imaginário coletivo há um pai e uma mãe?
O fato é que essas crianças, eventualmente, podem ser alvo de discriminação na escola, como historicamente foram as crianças filhas de pais separados e crianças criadas exclusivamente pela mãe. Elas sempre foram alvos da sociedade. Mas nós não podemos, em nome do preconceito, deixar de reconhecer o direito dessas crianças com relação aos dois pais ou com relação às duas mães. Essas crianças podem sofrer, mas elas não vão sofrer mais pelo fato de dizer que têm dois pais ou duas mães, do que dizer que moram num abrigo e não têm nem pai e nem mãe. Isso também as coloca numa situação de vulnerabilidade. É melhor ter um lar com pais do mesmo sexo do que morar em um abrigo, ainda que sejam bem cuidadas. Aquilo não é um lar.

Como a sociedade reage diante da adoção feita por pessoas do mesmo sexo?
O que se tem visto, estudado e acompanhado é que há uma tendência muito grande de nas escolas, e sempre a recomendação é nesse sentido, que quando forem matriculadas crianças, já avise na matrícula se elas têm dois pais ou duas mães. As próprias professoras começam a aceitar isso com mais naturalidade e passar para os colegas e alunos de que aquelas crianças têm dois pais ou duas mães. E o que está se mudando, e eu acho isso importante, é que aquela ideia de festejar o dia do pai, o dia da mãe. Penso que há de se festejar a família como tal, mesmo se for dia das mães e comparecerem dois pais, isso não pode mais causar estranheza, porque esta é uma realidade.

Porque foi o que sempre aconteceu. Quando era dia dos pais, eu, que sou separada, ia na festa de dia dos pais. No começo eu era a única mãe que estava no evento, mas depois com o tempo começaram a surgir outras, como no dia das mães começaram a surgir pais. Então este formato está ficando cada vez mais caleidoscópio da família. Cada uma tem o seu formato, não copia necessariamente aquele modelo idealizado, imposto pela religião, homem e mulher, casamento, filhos. Não é mais esse o modelo da família. Até acho que nunca foi, mas agora se tem mais liberdade para se assumir e aceitar essa realidade.

Em que princípios os juízes devem se basear para deferir sentença favorável a casais gays no que se refere à adoção?
O primeiro princípio é romper o próprio preconceito que as pessoas têm. Mas é um punhado de princípios constitucionais, todos eles se sustentam com o princípio da dignidade, da pessoa humana, ter o direito a um vínculo de natureza familiar, o princípio da liberdade, o princípio da igualdade, o princípio do respeito à diferença, acho que isso é algo importante. E agora se começa a falar no princípio da afetividade; tem-se mudado a forma de se reconhecer e conceber a família, de que isso precisa ser respeitado, ou seja, as pessoas têm o direito de manter vínculos afetivos. Isso precisa ser chancelado até pelo Estado. Tanto que estão tendo que mudar o conceito de família, ela não é mais constituída exclusivamente pelo casamento, ela não é mais exclusivamente união estável, um dos pais com filhos, isso está na própria Constituição Federal, isso é uma família.* Então não dá para dizer que outras formas de família também não o sejam, como são as famílias homoafetivas.

Que outras mudanças legais básicas precisariam ser feitas a partir da união civil homossexual e a conquista do direito à adoção de crianças por parte de casais homossexuais?
É preciso mudar a mentalidade das pessoas. Para isso, talvez, fosse necessário mudar a Constituição Federal. No entanto, é no preconceito do nosso legislador que mora o problema mais profundo. O poder Executivo tem feito um trabalho muito importante, vem avançando em termos de políticas públicas de reconhecimento de direitos. Por exemplo, a portaria determinando que nas escolas se use o nome social dos transexuais, e também isso poderia ser uma mudança legislativa singela, mas tem projetos de lei que tramitam há muitos anos e não têm a mínima chance de ser aprovados.

Quais os principais aspectos serão abordados no Congresso Nacional de Direito Homoafetivo?
Já que não conseguimos avançar em termos legislativos, vamos avançar em termos do judiciário. E a proposta é exatamente essa: qualificar os advogados, os operadores dos direitos para trabalhar com esse novo ramo do Direito que atende a população que não tem lei, mas que tem direitos. A ideia é essa.

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* A Dra. Maria Berenice Dias refere-se aqui ao reconhecimento, pela Constituição Federal, da família monoparental, ou seja, constituída por um dos pais e filhos. Esse reconhecimento assinala a possibilidade de redefinir a família em termos de vínculos afetivos, e não com base exclusivamente no casamento homem-mulher ou na vinculação de cunho sexual, o que abre caminho para o reconhecimento de uniões homoafetivas, com ou sem filhos, como entidades familiares.

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