Arte: Curtis Killorn
“No contexto da luta em favor da cidadania, religiosa e civil, é importante que se mantenha a discussão em torno da qualidade das relações (homo ou heteroafetivas) e da igualdade de direitos que mecanismos de legitimação religiosa ou política garantem às pessoas, que, assim, estruturam suas relações.” É essa a posição do teólogo luterano André Musskopf sobre a união entre pessoas do mesmo sexo, em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line. Para ele, o reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo “não busca apenas afirmar publicamente estas relações, mas garantir direitos muito concretos, aos quais todas as pessoas que vivem dentro do instrumento jurídico do casamento heterossexual têm acesso sem, muitas vezes, se darem conta”. Musskopf é pesquisador na área de Teologias GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros), Teoria Queer e Estudos de Gênero e Masculinidade. Graduado em Teologia, pela Escola Superior de Teologia (EST), é mestre em Teologia, também pela EST, com dissertação intitulada "Ministérios Ordenados e Teologia Gay - Retrospectiva e Prospectiva", sobre a ordenação de pessoas homossexuais, e concluiu seu doutorado em Teologia no Instituto Ecumênico de Pós-Graduação das Faculdades EST, com a tese "Via(da)gens teológicas, itinerários para uma teologia queer no Brasil" . É autor de "Uma brecha no armário - propostas para uma teologia gay" (São Leopoldo: Sinodal, 2002) e organizador, juntamente com Marga J. Ströher e Wanda Deifelt, do livro "À flor da pele - Ensaios sobre gênero e corporeidade"(São Leopoldo: Sinodal, EST, CEBI, 2004).
O senhor defende uma teologia gay/queer. Como essa reflexão pode ajudar na mudança de paradigma sobre o casamento homossexual como tabu para as igrejas cristãs?
Quando falo sobre teologia gay/queer, em primeiro lugar, me refiro ao resgate da cidadania religiosa de pessoas que não se enquadram, por suas práticas sexuais e identidades de gênero, no padrão heterocêntrico. Como “cidadania religiosa” entendo, na área da teologia, o direito e a necessidade de incorporar a experiência destas pessoas na reflexão teológica que foi sempre feita, tanto em sua epistemologia quando na formulação de dogmas e doutrinas, desde a perspectiva de um determinado tipo de experiência heterossexual que se supõe superior e que divide as pessoas dualística e hierarquicamente. Já no âmbito da prática religiosa, esta “cidadania” inclui também o direito à vivência da espiritualidade numa comunidade de fé que respeite, valorize e integre a experiência particular destas pessoas. Dentro desta perspectiva, uma teologia gay/queer também pressupõe, com relação às relações afetivas entre as pessoas, que os mesmos direitos e as mesmas formas com que são publicamente reconhecidas as relações de pessoas heterossexuais sejam usadas para pessoas homossexuais, como no caso das “uniões homoafetivas”. Assim, na medida em que a teologia gay/queer provoca mudanças com relação ao papel das pessoas homossexuais no contexto das igrejas, ela, concomitantemente, provocará mudanças com relação à forma como são compreendidas e reconhecidas as suas relações. Mas, tanto no nível da reflexão teológica quanto no nível das práticas religiosas, há um longo caminho a ser percorrido.
Ainda assim, defender o “casamento homossexual” enquanto intelectual militante, mesmo no campo da Teologia e das igrejas, significa lidar com paradoxos e contradições. Em primeiro lugar, com relação à própria idéia de “casamento”. As teologias gay/queer, assim como as teologias feministas, têm defendido, no contexto do questionamento do heteropatriarcado, a mudança dos princípios éticos que norteiam as relações humanas. Têm afirmado a amizade e a afetividade, por exemplo, em contraposição à propriedade e privatização dos corpos, regulamentadas pela noção tradicional de “casamento”. Neste sentido, ao defender o reconhecimento das relações homoafetivas através dos ritos das igrejas, tendo em vista a igualdade de direitos, pressupõe-se que esta discussão não apenas mude os paradigmas com relação a estas relações em particular, mas de todas as relações humanas. Assim, em segundo lugar, também se torna necessário discutir o papel social que esta instituição religiosa representa. Mesmo em termos teológicos, existem diferentes concepções sobre “casamento”. Enquanto na Igreja Católica Apostólica Romana o casamento constitui um sacramento, nas igrejas descendentes da Reforma, o ritual religioso representa uma “benção matrimonial”, embora nem sempre seja compreendida desta forma. O “casamento” acontece no âmbito civil e é “abençoado” no contexto da comunidade religiosa. Esta diferença parece ter sido responsável, em alguns países, pela maior aceitação de “cerimônias de união entre pessoas do mesmo sexo”, até mesmo por parte de algumas igrejas. Desta forma, no entanto, corre-se o risco de criar um “casamento de segunda linha”, o qual seria destinado às uniões não-heterossexuais, por não preencherem os requisitos de uma “verdadeira” união. A mesma discussão acontece no âmbito civil, no qual há grande resistência de equiparar as uniões homoafetivas, e mesmo de usar o mesmo termo, ao casamento heterossexual. Por isso, no contexto da luta em favor da cidadania, religiosa e civil, é importante que se mantenha a discussão em torno da qualidade das relações (homo ou heteroafetivas) e da igualdade de direitos que mecanismos de legitimação religiosa ou política garantem às pessoas, que, assim, estruturam suas relações.
Em que sentido os homossexuais cristãos podem ser citados como exemplo de fé, já que, conforme suas palavras, “não desistem da sua religiosidade nem de expressar e vivenciar suas crenças”, mesmo com “as discriminações e perseguições que sofrem em virtude da sua orientação sexual”? O homossexual cristão também quer se sentir amado pelo seu Deus, não?
Afirmar-se publicamente como cristão e homossexual ainda causa grande surpresa para muitas pessoas. Não é de se espantar que, diante dos posicionamentos homofóbicos e discriminatórios da maioria das igrejas cristãs, elas mesmas considerem uma contradição que alguém possa afirmar a sua sexualidade fora dos padrões por ela defendidos como verdadeiros e únicos (leia-se heterossexualismo) e, ao mesmo tempo, como crente em Jesus Cristo e fiel à tradição cristã. Também não é de espantar que pessoas homossexuais considerem esta afirmação simultânea contraditória, uma vez que o discurso das igrejas cristãs tem sido um dos maiores combustíveis da homofobia e do heterossexismo do qual são vítimas. Mas um número crescente de pessoas tem optado por não abandonar a sua fé e a tradição religiosa na qual cresceram ou se vincularam por expressarem a sua experiência de fé, mas questionar aqueles aspectos desta tradição que têm sido usados para alijá-lo de sua comunidade de fé e impedir o seu crescimento e amadurecimento enquanto pessoa de fé. Neste sentido, o “homossexual cristão” se sente amado por Deus – sempre que a pregação preconceituosa das igrejas não abala esta relação – e por se sentir amado é que pode afirmar-se assim, muitas vezes a despeito dos discursos e das práticas das instituições religiosas. Embora muitos/as assumam uma postura apologética com relação a estas instituições e, conseqüentemente na sua relação com a divindade, acredito que a articulação de teologias gay/queer e a luta pela cidadania religiosa de pessoas GLBT sejam expressões desta relação e desta certeza que antecede e que motiva o engajamento nestes movimentos.
O senhor percebe que as igrejas cristãs já estão caminhando em direção a um avanço no sentido de ver a união civil entre pessoas do mesmo sexo com outros olhos?
No Brasil, não conheço nenhuma discussão, a não ser nas igrejas e grupos cristãos GLBT, sobre a união entre pessoas do mesmo sexo no âmbito eclesiástico. Na verdade, a partir de minha pesquisa e experiência, percebo que este é o ponto nevrálgico das discussões em torno da homossexualidade, o que prova que o “casamento” é, de fato, o pilar da sociedade heterocêntrica. Na minha pesquisa sobre a ordenação de pessoas homossexuais ao ministério eclesiástico nas igrejas luteranas dos Estados Unidos (ELCA) e no Brasil (IECLB) (veja Talar Rosa – Homossexuais e o Ministério na Igreja. São Leopoldo: Oikos, 2005), o reconhecimento das relações entre pessoas do mesmo sexo é o que tem impedido o avanço no âmbito da ordenação ministerial. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, há uma crescente aceitação de pastores/pastoras homossexuais, não apenas com índices cada vez maiores de aprovação nas votações das assembléias, mas com comunidades chamando pastores/as assumidamente homossexuais para exercerem as funções ministeriais. Até o momento, no entanto, tanto na ELCA quanto na IECLB, as diretrizes das igrejas afirmam não ordenar “homossexuais praticantes” (leia-se não-celibatários). O motivo, ainda que revele uma profunda contradição para a teologia luterana, tendo em vista a imposição do celibato, é que para ordenar “homossexuais praticantes” será necessário reconhecer as suas relações. Assim, enquanto há uma compreensão mais aberta com relação às pessoas homossexuais e sua participação na vida da Igreja, isto não se espelha no reconhecimento das suas relações afetivas no interior das igrejas. Por isso, diante da contradição interna que gera a defesa da união civil entre pessoas do mesmo sexo, as igrejas têm mantido silêncio, quando não alardeando sua oposição a este instrumento, na defesa de direitos humanos e civis das pessoas homossexuais.
Em relação à união civil homossexual, quais são as principais dificuldades de quem assume a não-heterossexualidade, principalmente no âmbito social?
Uma das questões que procuro sempre enfatizar nas minhas intervenções públicas sobre os direitos de pessoas não-heterossexuais é o fato de que, embora exista um senso comum de que a luta por tais direitos (que algumas pessoas chegam a definir como “especiais”) reflete apenas um modismo ou uma extravagância por parte das pessoas e grupos GLBT, trata-se, na verdade, de questões centrais para a dignidade e a cidadania dessas pessoas. O reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, não busca apenas afirmar publicamente estas relações, mas garantir direitos muito concretos aos quais todas as pessoas que vivem dentro do instrumento jurídico do casamento (neste caso heterossexual) têm acesso, sem, muitas vezes, se darem conta. Em uma fala na Câmara de Vereadores/as de São Leopoldo, no contexto da discussão dos Projetos de Lei propostos pela Vereadora Ana Affonso, que criminalizam a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, procurei enumerar alguns destes direitos:
No Brasil, em virtude da nossa constituição e do código civil, casais e arranjos familiares de pessoas do mesmo sexo:
- não podem casar e não adotam o sobrenome do/a parceiro/a;
- não podem somar renda para aprovar financiamento ou alugar imóveis;
- não inscrevem o/a parceiro/a como dependente no serviço público, da Previdência Social ou no plano de saúde;
- não fazem declaração conjunta de IR e não podem abater gastos médicos e educacionais ou deduzir rendimentos em comum;
- não são reconhecidos como entidade familiar, mas como sócios/as e não têm suas ações legais julgadas pelas Varas de Família;
- não participam de programas do Estado vinculados à família e não recebem abono-família;
- não têm pensão alimentícia, nem direito à metade dos bens em caso de separação;
- não adotam filho/a em conjunto, não podem adotar filho/a do/a parceiro/a e não têm direito a licença maternidade/paternidade em caso de adoção;
- não têm licença-luto na morte do/a parceiro/a, não recebem auxílio-funeral e não têm direito à herança;
- não têm direito à visita íntima na prisão, não podem autorizar cirurgia de risco e não podem ser curadores/as do/a parceiro/a incapaz.
E a lista poderia continuar. O mesmo pode ser dito com relação aos artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. São direitos que, em virtude da orientação sexual e da identidade de gênero, são negados e violados diariamente, enquanto são automaticamente resguardados ou pelo menos defendidos no caso de pessoas heterossexuais. Isto, sem dúvida, compromete a dignidade e o exercício pleno da cidadania das pessoas GLBT.
Na sua opinião, as uniões homoafetivas representam uma ameaça à família, da forma como ela é tradicionalmente concebida?
Graças a Deus! Acredito que o grande mérito e a grande promessa dos movimentos sociais ligados a questões de gênero e sexualidade (como os Movimentos Feminista e GLBT) seja justamente questionar padrões de relacionamento socialmente sancionados e estabelecidos que oprimem as pessoas e impedem-nas de realizar-se e crescer enquanto seres humanos. Isso não significa dizer que o “casamento” ou a “família” tradicionalmente concebidos sejam, em si, opressores, mas que eles assim se tornam quando são espaços que protegem e até promovem relações injustas, como é o caso com relação aos altos índices de violência doméstica e da estigmatização de mulheres “mães solteiras” ou divorciadas. Por isso, a grande oportunidade que a discussão em torno do casamento ou da união entre pessoas do mesmo sexo oferece é discutir de que forma os modelos de relacionamento e arranjos familiares oprimem ou libertam as pessoas e quais os instrumentos jurídicos necessários e capazes de proteger e promover estes modelos e arranjos. O risco tem sido muito mais o contrário: o de trasladar padrões heterocêntricos para relacionamentos homoafetivos, mantendo justamente os seus elementos opressores. É o que se tem em mente, em geral, quando se afirma que os relacionamentos homoafetivos são “iguais” aos relacionamentos heteroafetivos, apontando não para a igualdade de direitos, mas para os padrões de relacionamento que repetem padrões de gênero e sexualidade heterossexistas.
O que deve fazer parte de uma reflexão moral sobre o amor homossexual?
Em meu primeiro livro, "Uma brecha no armário", abordei a questão ética na experiência homossexual e afirmei, a partir de Mary Hunt , a amizade como critério para as relações. Esse me parece ainda válido sempre que se compreenda a amizade como expressão de mutualidade, formação de comunidade, não-exclusivismo, flexibilidade e direcionada para a outra pessoa. Também penso ser importante considerar as especificidades da experiência homossexual, as quais não estão ligadas a questões “essenciais”, mas, em geral, advém de uma conjuntura social que oprime e discrimina as pessoas homossexuais e precisam ser analisadas e avaliadas dentro dela. Este é o caso, por exemplo, da experiência de múltiplos parceiros sexuais que faz parte da vida de muitos homens gays e que tem sido rotulada como forma de “promiscuidade” pelos moralistas de plantão, tão prontos a emitir julgamentos sobre o que, em geral, não conhecem. Não quero afirmar nem que todas as pessoas homossexuais vivem sua sexualidade desta forma, nem que esta é a maneira ideal de se conceber tais relacionamentos, mas apontar para o fato de que, em qualquer discussão ética ou moral, é preciso considerar as especificidades das experiências das pessoas sobre as quais se quer emitir um juízo. Estas especificidades, no entanto, não devem reforçar a existência de padrões duplos no campo da ética sexual. Pelo contrário, elas levantam questionamentos para as concepções normativas da sexualidade e apontam para a necessidade de eliminar qualquer padrão duplo e repensar a ética sexual como um todo desde outra perspectiva, por exemplo desde a amizade.
Como a homossexualidade aparece na Bíblia? Esses textos ajudam a subsidiar uma reflexão sobre o casamento gay?
Em primeiro lugar, a homossexualidade não aparece na Bíblia, pois este é um conceito criado nos séculos XIX e XX para falar de relações entre pessoas do mesmo sexo. Isto não significa que as narrativas bíblicas não apresentem ou não falem de relacionamentos homoafetivos ou homoeróticos. Estes, no entanto, precisam ser analisados dentro do contexto em que estas narrativas surgiram, no processo de transmissão até sua fixação por escrito. Em segundo lugar, tendo em vista o que afirmei acima sobre o fato de que o “casamento gay”, ou “casamento homossexual”, ou “união entre pessoas do mesmo sexo”, não pode ser visto isoladamente, mas dentro do questionamento e da busca por relações mais justas e libertadoras, a Bíblia é uma fonte importante e teologicamente imprescindível para esta discussão e construção dentro das igrejas cristãs. Assim, é preciso considerar a Bíblia como um todo, e que tipo de relações as suas narrativas subsidiam. Os mesmos critérios e as mesmas diretrizes devem ser aplicadas a todas as pessoas e a todas as relações. Então, por exemplo, a narrativa sobre a rainha Vasti (livro de Ester, capítulo 1) pode subsidiar a reflexão sobre as uniões homoafetivas, embora não necessariamente contenha personagens homossexuais, por apresentar um questionamento e resistência ao heteropatriarcado. Além disso, a exegese bíblica gay e a teologia gay têm resgatado e reinterpretado outros textos bíblicos que, através da identificação dos/as leitores/as e intérpretes com a narrativa bíblica tornam possível fazer uma discussão fecunda sobre as relações homoafetivas. Este é o caso com relação aos textos que falam de Jônatas e Davi (livro de Samuel), Rute e Noemi (livro de Rute), o centurião e seu “servo” (livro de Mateus capítulo 8.5-13), por exemplo. Mas, embora estas análises e interpretações sejam importantes e até fundamentais para recuperar a auto-estima e ajudar no desenvolvimento da espiritualidade de pessoas homossexuais, não acredito que elas garantam a aceitação e o respeito da homossexualidade e das relações homoafetivas por aqueles e aquelas que se posicionam contra estas experiências – vide a grande e interminável discussão exegética e hermenêutica em torno destes textos. Isto se deve principalmente ao fato de que princípios hermenêuticos distintos são empregados no processo de interpretação. Enquanto aqueles e aquelas que afirmam a negação da experiência homoafetiva a partir da Bíblia julgam oferecer uma interpretação literal, que de fato não é, aqueles e aquelas que percebem nestes textos a possibilidade de afirmação desta experiência interpretam os textos justamente a partir dela, encontrando, então, narrativas que falam dos dilemas e dos desafios que enfrentam na sua vida cotidiana. A Bíblia sempre é lida e interpretada dentro de um contexto e, por isso, interpretações que consideram e valorizam a experiência homossexual tanto são instrumentos importantes na luta pela garantia de direitos e reconhecimento das relações homoafetivas quanto são fruto de novas concepções e idéias acerca destas experiências.
Publicado originalmente na Revista IHU Online em 7 de abril de 2008 ("Uniões homoafetivas. A luta pela cidadania civil e religiosa")
Texto: Graziela Wolfart Tweet
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