Ilustração: Danna Ray
Teólogo da esperança e da cruz, Jürgen Moltmann solicita aos cristãos que se lancem “no mundo dos não crentes para anunciar aquele Deus “que está com os sem Deus”. O pensador protestante saúda como “urgente e necessária” a abertura de um confronto entre laicos e cristãos sobre Deus, como sugeriu Bento XVI.
A entrevista é de Lorenzo Fazzini e publicada pelo jornal Avvenire, 03-02-2011. A tradução é de Benno Dischinger. Reproduzimos o texto via IHU.
Eis a entrevista.
Sua reflexão centrou-se na esperança. Como pode ela interagir no intercâmbio entre crentes e não crentes?
Não existe uma clara linha de delimitação entre crentes e não crentes, como entre cristãos e muçulmanos. A fé é universal, como o é a incredulidade. Em cada crente se encontra a incredulidade e em cada ateu a fé. Em cada ser humano se desenvolve um diálogo entre fé e incredulidade: “Senhor, eu creio, mas ajuda-me na minha incredulidade”, grita o pai do jovem enfermo no Evangelho de Marcos. Ninguém está satisfeito com a própria incredulidade. A esperança é mais ampla porque ligada ao amor pela vida. Esperamos enquanto respiramos e, se duvidamos e ficamos tristes, a esperança perdida nos atormenta. Onde a esperança é destroçada na vida inicia a violência e a morte.
O que nos oferece a fé cristã?
O cristianismo constitui a “religião da esperança”: quem espera em Deus tem sempre abertos novos horizontes. A fé é esperança confiante: o futuro não é extrínseco ao cristianismo, e sim o elemento de sua fé, a nota sobre a qual se afinam suas canções, as cores com as quais são pintados os seus quadros. Uma esperança viva desperta todo o nosso sentido pelo novo dia e nos locupleta com um amor maravilhoso pela vida, já que sabemos que somos esperados e, quando morrermos, nos espera a festa da vida eterna. A esperança abraça crentes e ateus porque Deus espera em nós, nos acolhe e não abandona ninguém.
O senhor escreveu muito sobre a Cruz, que parece não mais interessar à Europa. O crucifixo pode voltar a ser eloquente?
A questão de Deus e da dor é o ponto de partida do moderno ateísmo europeu. Morre uma criança enquanto milhares de pessoas são mortas e inocentes caem pela mão terrorista. E onde está Deus? À antiga interrogação da teodicéia não há resposta: se Deus é bom e onipotente, por que o sofrimento? Se Deus quer o bem, mas não impede a dor, ele não é bom. A melhor justificação de Deus, diz quem o denigra, é de não existir. Mas, o ateísmo é uma resposta? Se Deus não existe, por que o sofrimento sobre a terra? Não nos serve um Deus a ser acusado? Esta discussão sempre me pareceu teórica.
Como enfrentar tal escândalo?
Para quem é atormentado pela dor, não se trata de obter uma resposta a um porquê: ele procura uma ajuda para sair da dor.
Quando eu estava em perigo de vida não me perguntei por que eu me encontrava naquela situação: solicitei ajuda chorando e clamando. Uma divindade boa e onipotente não pode ajudar-nos. No cerne do cristianismo encontra-se a paixão de Deus sobre a cruz de Cristo. Nisso se revela uma paixão pela vida plena de misericórdia pelas devastações da vida. ‘Somente o Deus sofredor pode ajudar’, escreveu Bonhoeffer na cela, olhando o Deus crucificado. No Cristo moribundo a dor de Deus encontrou sua expressão humana. Deus sofre as nossas penas. Cristo vem para procurar o que está perdido e ele mesmo se dá por perdido para encontrar os perdidos. Quem se avizinha de Cristo toma parte na dor de Deus e percebe sua desolação. Isso sucedeu a João Paulo II e à Madre Teresa.
Com avalia o convite de Bento XVI para um novo diálogo entre crentes e ateus?
A iniciativa do Papa é excelente, urgente e necessária. Se a teologia se retira num espaço fechado, o povo perde interesse por Deus. Isto não é somente um problema religioso, mas também uma questão pública. Após 1945 era muito viva a procura de Deus com respeito a Auschwitz. O ateísmo foi debatido tão asperamente a ponto de o escritor Heinrich Boll dizer: “Não me agradam estes ateus, pois falam sempre de Deus”. Após o refluxo para felicidade privada o interesse por Deus desapareceu. Desde então aumentou o número de quantos o perderam e não sentem a falta da fé. Para instaurar um diálogo com eles, os cristãos devem deixar os muros da Igreja e andar no mundo. Os padres operários franceses andaram pelas fábricas e os teólogos da libertação andaram no meio do povo oprimido, compartilhando seu destino. Agora os acadêmicos andam entre os cultos e compartilham suas dúvidas.
“Luzes, religiões e razão comum” é o título do Átrio dos gentios em Paris. Como enfrentar tais temáticas?
Quando Paulo, em Atenas, se conectou ao ‘Deus desconhecido’, não teve grande sucesso. Não se pode pregar um Deus desconhecido, pois não se sabe se será bom ou mau. Mas, pode-se chamar o ‘Deus escondido’ e clamar. Os judeus chamam Hester panim a face oculta de Deus. Quem o percebe, chama a si a face manifesta de Deus. Não sei se a expressão ‘diálogo’ seja adequada: um diálogo tem o objetivo de fazer conhecer melhor os dialogantes. Isso acaba quando um interlocutor é convencido. Isso não acontece, ao invés, em relação às experiências de Deus.
Por isso, o discurso com os não crentes é muito diverso do diálogo inter-religioso. O confronto entre fé e incredulidade exige que a Igreja dirija o seu coração ao exterior. Deve fazê-lo a todos os ateus sinceros: dize o que crês e crê no que dizes. Leva a sério as perguntas e as acusações de quem não pode crer, e procura junto com ele uma resposta de Deus. Já por demasiado tempo o povo relegou o cristianismo ao ângulo da fé e exaltou o diálogo ente as religiões para prosseguir imperturbada com a secularização. É hora de a fé cristã sair deste ângulo: Cristo não fundou uma nova religião, mas trouxe vida nova!.
O senhor descobriu Cristo durante a última guerra. Em geral se consideram as experiências do mal como causas de afastamento de Deus. De que modo tais realidades podem aproximar-nos dele?
Aos 16 anos eu queria estudar matemática e a religião era muito distante do ‘laicismo’ de minha casa. Em 1943 me alistei como soldado, e sobrevivi à tempestade que destruiu Hamburgo com 40.000 mortos. Quando o amigo junto a mim foi dilacerado por uma bomba, por primeira vez clamei a Deus. Experimentei como se ele ocultasse sua face.
Feito prisioneiro, recebi uma Bíblia: os Salmos das lamentações exprimiam o que eu experimentava. Entendi que Cristo é aquele que nos entende e que ele veio para procurar o que está perdido: é aquele que nos encontra. Por vontade de Cristo comecei a ter confiança em Deus. Não terei chegado à idéia que existe um Deus e que Deus é amor apaixonado e disposto a sofrer. Na guerra experimentei como é o abandono de Deus. Por isso, creio que Deus esteja com os sem Deus. E que ele possa ser encontrado entre eles. É neles que Deus aguarda aqueles que crêem. Tweet
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