quinta-feira, 28 de julho de 2011

Os cristãos do futuro: místicos e inter-religiosos

Foto: R. Sanque

Se "a fidelidade à Bíblia e ao magistério da Igreja não é principalmente uma questão de palavras" – isto é, se a ortopraxia é verdadeiramente mais importante do que a ortodoxia –, então é altamente provável que uma nova definição de uma verdade de fé tradicional, capaz de permitir uma adesão mais profunda ao Evangelho, possa ser considerada como uma "reinterpretação" fiel, ortodoxa, daquela verdade da fé, "independentemente da diferença no plano terminológico". E também independentemente do fato de que essa nova definição possa nascer do diálogo com uma outra tradição religiosa.

A reportagem é de Claudia Fanti, publicada na revista Adista Documenti, nº 52, 27-06-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.


Está aqui, na "tentativa de distinguir entre uma nova concepção da fé, entendida como reinterpretação, ou, ao contrário, como rejeição da própria fé", que se desenvolve a aventura espiritual do teólogo norte-americano Paul Knitter, um dos maiores representantes da Teologia do Pluralismo Religioso, assim como ele mesmo a relata no livro "Senza Buddha non potrei essere cristiano" [Sem Buda não poderia ser cristão], recém-publicado pela editora Fazi (Roma, 2011, 320 páginas), a segunda publicação da coleção de livre pesquisa espiritual "Campo dei Fiori", dirigida por Elido Fazi, junto com Vito Mancuso (e inaugurada pela obra-prima do ex-frei dominicano Matthew Fox "In principio era la gioia").

Trata-se do testemunho pessoal e convincente de quem atravessou a fronteira do budismo para abraçá-lo e depois a atravessou novamente para voltar à própria religião: "O meu diálogo com o budismo – pergunta-se o autor – tornou-se um cristão budista? Ou um budista cristão? Sou um cristão que compreendeu mais profundamente sua própria identidade com a ajuda do budismo? Ou me tornei um budista que ainda conserva vestígios cristãos?".

Na realidade, como o Pe. Luciano Mazzocchi, missionário xaveriano e animador do movimento Vangelo e Zen, enfatiza na “Introdução", "quando duas tradições religiosas se fundem ao ponto de se tornarem a única energia que faz viver, então não há mais filiação alguma. Há apenas o homem que caminha".

E, no caso de Knitter, um homem que, ressalta Mazzocchi, "deu um passo até agora tentado só por poucos: vestido pela sua fé católica, emitiu o voto budista do Bodhisattva, ou seja, prometeu não querer entrar na paz do nirvana até que todos os seres não tenham lá entrado".

O caminho que leva a enriquecer a própria espiritualidade mediante o diálogo com as outras fés é, em sentido, inevitável: "O homem de hoje – continua Mazzocchi – é maior, mais vasto, mais profundo, mais complexo, mais maduro do que as tradicionais respostas religiosas e os sistemas teológicos em que estas foram encaixotadas", chegando a "experimentar a verdade como o seu modo de se relacionar com a alma que tudo pervade", consciente de que nenhuma religião é um ponto de chegada, mas só uma sinalização preciosa "ao longo do caminho da história humana".

É nesse quadro que se coloca a luta interior conduzida por Knitter com relação às "interrogações desconcertantes e desestabilizantes" sobre a natureza de Deus, o papel de Jesus, o significado da salvação: "Acredito realmente naquilo que eu digo acreditar, ou naquilo que eu deveria acreditar como membro da comunidade cristã?".

E é justamente olhando "para além das fronteiras tradicionais do cristianismo" que o teólogo é capaz de encontrar respostas mais satisfatórias e frutíferas às suas perguntas: só depois de ter "começado a levar a sério e a explorar as Escrituras de outras religiões" é que ele foi capaz de compreender mais adequadamente "o que significa a mensagem de Jesus no mundo contemporâneo".

E, entre as religiões, foi o budismo que constituiu um dos dois recursos mais úteis (o outro é a teologia da libertação), que lhe permitiram continuar desenvolvendo a sua tarefa pessoal de cristão e de teólogo, permitindo-lhe rever, reinterpretar e reafirmar as doutrinas cristãs sobre Deus (capítulos 1-3), sobre a vida após a morte (capítulo 4), sobre Cristo como Filho único de Deus e Salvador (capítulo 5), sobre a oração e o culto (capítulo 6) e sobre o compromisso para conduzir o mundo rumo à paz e à justiça do Reino de Deus (capítulo 7), na consciência de que, como admite o teólogo na Conclusão, "no final da jornada, a casa para onde eu volto é Jesus".

E se, olhando para trás, para toda a sua vida, Knitter não consegue se imaginar "como cristão sem esse envolvimento com o budismo", é claro, porém, que a sua "preocupação principal" é que "os genes teológicos que eu transmito sejam ainda cristãos, que a minha reinterpretação do credo cristão, embora verdadeiramente diferente, não seja totalmente diferente daquilo que era antes dela". Que, portanto, "este livro contribua para uma boa teologia cristã".

E, junto com essa preocupação, uma convicção e uma esperança: "Acredito e espero justamente que, se Karl Rahner tem razão ao dizer que os cristãos do futuro deverão ser místicos, eles também deverão ser místicos inter-religiosos".

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Tuitadas de hoje


Autor de massacre tentou destruir o coração do modelo norueguês http://bit.ly/qG159S

"O terror dos ressentidos": sobre o massacre na Noruega e as táticas do terror neo-nazista http://bit.ly/oS3ltS

Raimon e Eckhart, mestres do espírito http://bit.ly/plWOxP

Diretor de beijo gay eleitoral recebeu críticas até do responsável pelo primeiro beijo entre homens da TV brasileira http://bit.ly/rbmUPx

RT @Conteudo_Livre: "São 8 horas... você sabe o que seu filho está pensando?" (charge de Angeli) http://twitpic.com/5wmlg9

RT @jimmy72: Homofobia se aprende. Sexualidade não. :-) http://j.mp/oLiX5d

“O campo não foi inventado pelos nazistas. Eles só levaram a suas últimas consequências a figura política da exceção" http://bit.ly/rmiRNh

Skinhead gay luta contra a homofobia pelas ruas de São Paulo http://bit.ly/obtnVu

Das eventualidades http://bit.ly/ovhMVA

God only gives three answers to prayer: 1. 'Yes!' 2. 'Not yet.' 3. 'I have something better in mind. RT@Inspire_Us

RT @depChicoAlencar: "É terrível falar de Deus e não corresponder ao seu principal atributo: a Justiça" (Carlo Martini)

Noruega ensina que racismo não pode ser visto como folclore http://bit.ly/mRLBaT

No banheiro delas... http://bit.ly/qPTc6x

Família de Alexandre Ivo quer que lei com nome do adolescente seja incisiva contra a homofobia http://bit.ly/oHFjJP

RT @LeonardoBoff: Ainda o fundamentalismo http://wp.me/p1kGid-4D

"A turma de Bolsonaro contra o quiosque de Sueli"


Acabou a festa e a alegria no quiosque de praia de Sueli, em Insensato Coração. Lá, todos os gays do Rio de Janeiro são lindos, jovens, malhados, bem sucedidos, felizes e tanto moram quanto trabalham a poucos metros da praia, com expedientes de trabalho que parecem começar só após as 10 e terminar antes das 16, pois só assim para todos eles encontrarem-se todas as manhãs e fins de tarde para tomar sol, bater uma bolinha e paquerar no quiosque, todo decorado com bandeirinhas do arco-íris gay. Tudo ia muito bem, tanto com a clientela segmentada de Sueli quanto com o merchandising social da causa anti-homofóbica adotada pelos autores da novela, capitaneados por Gilberto Braga, ele mesmo homossexual do tipo que nunca viveu em armários e que mantém há décadas um casamento sólido com o fotógrafo Edgar Moura Brasil.

Há muito tempo que todo novelão das oito que se preza tem que ter um merchandising social, uma bandeira ativista em favor de algum tipo de vítima, pois a indústria do bem está cada vez mais na moda, apesar de as criacinhas pobres da África continuarem com fome mesmo com tanta gente boníssima querendo ser igual ou santificar Angelina Jolie e Bono Vox. No campo das causas sociais adotadas pelas novelas, a própria Globo já passeou por dependência de drogas, alcoolismo, racismo, violência contra a mulher, imigração clandestina, pedofilia, violência contra idosos e inúmeros outros temas. Em Insensato Coração, era a vez da bandeira anti-homofóbica, o que vinha mais do que em boa hora, pois o povo parece se informar mais com telenovela do que com livros e revistas, já que não os lê, e o Brasil continua com índices alarmantes de assassinatos e agressões físicas e morais contra homossexuais. E bastou a um pai do interior de São Paulo abraçar um filho de 18 anos para ter a orelha decepada por talibãs locais que viram na cena um diagnóstico de homossexualidade.


DENTADURA - Quem, afinal, poderia ser contra o levantamento de bandeiras a favor de causas e grupos sociais que são vítimas de preconceito, violência, sofrimento ou tudo isso junto? Quando se trata de abordar a questão homossexual, parece que muita gente é contra, sim. Quisera o otimismo dos defensores da diversidade que Jair Bolsonoro fosse uma exceção. Ele é tão somente o mais barulhento e falastrão. Talvez mais danosos que o deputado caricato sejam aqueles que escondem sua intolerância com o silencio, pois sequer têm coragem de dar a cara a tapa para serem confrontados.

Pois bem. Parece que a entidade que atende genericamente pelo termo família brasileira, representada majoritariamente tanto pela nova quanto pela velha classe média, ainda não está disposta a trazer para a sala de casa, nem sob a forma superficial de narrativa ficcional teledramatúrgica, a questão homossexual. Como a Rede Globo precisa manter a liderança de audiência para continuar vendendo para essa familia anúncios publicitários de selante de dentadura, leite em pó, geladeira, carro e absorventes, uma luz vermelha foi acesa para os autores de Insensato Coração. E por falar em anúncio, a mocinha dessa novela, a pretexto de divulgar um absorvente que causaria menos reação à vagina, o anuncia como um produto que faz "bem à pele" e o exibe com uma fluidíssima lavanda verde metaforizando o fluxo sanguíneo menstrual. Sim, é verdade também que, antes deste que optou pelo verde, todos os outros absorventes mostram na TV que o fluxo menstrual é azul. E sim, a família brasileira há anos acha natural ver na TV que a mulher publicitária menstrue azul. Mas duas pessoas do mesmo sexo namorando?! Ora, isso não é nem um pouco natural. E quem há de lhe contrariar?

BEIJO GAY- Daqui para a frente, não se verá mais viv'alma gay no quiosque de Sueli ou gays sendo gays em qualquer outro lugar de Insensato Coraçao, muito menos qualquer personagem criticando violência contra homossexuais. De gayzice, só sobrarão as gagues de Ronie, o fiel escudeiro, confidente e personal tudo da doidinha Natalie Lamour. Mas gay caricato na TV é redundância, chuva no molhado, todo mundo sabe.

A ordem para fazer desaparecer de uma vez tanto a bandeira colorida quanto a discursiva da causa gay da novela das nove foi dada diretamente pelo alto comando da Globo aos autores e diretores há uma semana, conforme noticiou em primeira mão a Folha de S. Paulo. Aos autores, diretores e elenco foi pedido ainda silêncio absoluto sobre as novas diretrizes em entrevistas à imprensa. Como parte dos telespectadores brasileiros desenvolveu uma fixação em torno da perspectiva de ver em uma telenovela o primeiro beijo gay masculino, a frustração foi antecipada. Nesse aspecto, merece destaque uma aparente contradição, carregada de significados culturais, ocorrida recentemente na cena jurídica brasileira. Coube ao Poder Judiciário, especificamente ao Supremo Tribunal Federal, comumente considerada como uma esfera atrasadíssima em relação aos comportamentos sociais do seu tempo, permitir que fosse ao ar, no programa mais canônico e um dos mais engessados da TV brasileira, o primeiro beijo gay masculino da televisão brasileira.

O fenômeno, para quem não se deu conta, foi veiculado em um telejornal, e não em uma telenovela, considerada como um produto de maior flexibilidade para a abordagem de temas delicados ou cercados de tabus. Desta vez, quem diria, a novela ganhou bolor e o Supremo agiu com arejamento e adequação à vida como ela é do lado de fora dos cenários do Projac. Goste-se ou não, o fato é que a turma de Bolsonaro parece mil vezes menos hipócrita que o pedido feito pelo comando da Globo aos autores de Insensato Coração. Essa rodada, os bolsonarianos venceram. E a Rede Globo, com seu Big Brother onde se pode tudo e mais um pouco, mostra, assim, que continua a mesma senhora hipocritamente austera dos tempos em que mandou explodir um shopping center na novela Torre Babel só para matar e excluir da trama um casal de lésbicas. Como agora, a emissora o fez também a pedido da família brasileira e para preservar a audiência conservadora pela qual seus anunciantes lhe pagam volumes astronômicos de dinheiro. Gilberto Braga deve estar em cólicas.

- Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA.
Texto publicado originalmente em 24 de julho de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA;
maluzes@gmail.com
Reproduzido via Conteúdo Livre

A César o que é de César


Reproduzimos abaixo artigo de Flavio Alves, publicado em seu ótimo blog Ideias Canhotas:

Apesar do título desta postagem, eu não gosto e nunca gostei de citações bíblicas para embasar qualquer tipo de opinião. O alcance de uma simples citação bíblica fora de contexto é gigantesco, e traz conseqüências inimagináveis.

Já perdi amigos queridos por conta de discussões sobre valores religiosos, já me distanciei de familiares por causa de diferenças doutrinárias. Enfim, já perdi demais por causa de fundamentalismo e isso faz com que eu evite ao máximo fazer qualquer tipo de discussão que descambe para um embate religioso.

Penso que a partir do momento que a argumentação de uma pessoa se sustenta na bíblia, ou em qualquer outro livro dito sagrado e inquestionável, o debate já está prejudicado, perdido para sempre.

Eu particularmente acredito que enveredar por este caminho é perda de tempo, é se nivelar por baixo, como se eu dissesse: “Eu tenho esse pecado, mas você tem aquele”, fica numa discussão de quem peca mais que não contribui para que o debate consiga avançar, é discutir com base em uma moral que não é a minha.

Assim, acompanho vários militantes e entidades nas redes sociais e confesso que me causa certo desconforto em ver alguns militantes e defensores dos direitos das LGBT entrando em alguns debates com segmentos ditos cristãos, buscando contradições na Bíblia, ou nas religiões que estes professam. É muita pregação e pouca política!

Sinceramente, o que eu acabo por ver é uma tremenda demonstração de força e organização destes setores obscurantistas, e ações isoladas e pontuais do movimento LGBT.

Vejamos: A tramitação do PLC122/06 gerou uma intensa movimentação dos segmentos religiosos, como a Marcha da "Família" liderada pelo obtuso Silas Malafaia, a distribuição de panfletos "anti-gay", pregações e atos públicos, correntes pela internet, numa campanha suja e mentirosa contra as LGBTs.

Tal nível de organização já deu resultados, há hoje no Senado um movimento para sepultar o PLC122/06 e colocar um substitutivo mais brando em seu lugar, a suspensão da produção dos materiais do Programa Escola sem Homofobia, e as ações de juízes evangélicos afrontando a decisão do STF que reconheceu as uniões estáveis de casais homoafetivos são bons exemplos.

Além disso, este segmento conta com o apoio e a simpatia de grandes meios de comunicação, empresas poderosas que alcançam imensos contingentes de pessoas diariamente, que se mostram capazes de cristalizar preconceitos e estereótipos, disseminar o ódio, além de convocar tais setores a marcharem publicamente contra o avanço dos direitos humanos.

E nós nessa história toda?

Às vezes perdemos nosso tempo batendo boca com religiosos, trocando ofensas pelas redes sociais com fundamentalistas, utilizando a Bíblia como base das nossas argumentações, versículos e mais versículos. Em minha opinião é malhar em ferro frio, o debate nesse caso é inócuo. Um dogma, seja ele de qualquer religião, não pode e não deve servir para a sustentação de qualquer argumentação racional.

Enquanto não compreendermos que nenhum direito é dado, que o pouco de democracia que existe em nosso país foi conquistado com luta, que muita gente tombou para que pudéssemos votar pra presidente, governador, deputado, prefeito, síndico e até na chapa do grêmio da escola não vamos avançar.

Enquanto não compreendermos que estes setores que hoje nos atacam estão organizados politicamente, que seu discurso medieval encontra ressonância na direita conservadora, e continuarmos tendo pouca ação e participação política vamos continuar patinando.

Enquanto não percebermos que nossa luta é a luta pela democracia, por mais direito, é a luta por um país mais justo, e enquanto não percebermos que é necessário que nos organizemos para pressionar o Estado por mais mudanças, que temos condições de interferir nos rumos do país e que é necessário que tenhamos uma ação política e politizada vamos continuar “xingando muito no twitter”!

O que deve orientar e fundamentar nossas discussões é a consolidação e o aperfeiçoamento de nossa democracia. Essa é a nossa causa, a construção de um país livre e plural.

Não vou passar minha vida tentando convencer as igrejas a me aceitarem, aliás, não faço a menor questão disso, minha causa é outra, mas vou me organizar e lutar para que elas sejam obrigadas a me respeitar. Não tenho a menor intenção de mudar religião nenhuma, mas posso e devo lutar mudar o meu país para melhor, esse direito eu já tenho e ninguém vai me tirar!

Eucaristia, serviço aos irmãos


No lava-pés, naquele curvar-se de Jesus, naquele gesto do escravo perante os irmãos, Jesus disse palavras que ressoam até hoje para nós: "Entenderam o que eu fiz?", entenderam que o partir o pão e o beber do cálice é serviço aos irmãos, serviço cotidiano assumido como estilo, o estilo do Senhor e do Mestre?

A opinião é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, em artigo publicado na revista italiana Jesus, de julho de 2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzido via IHU com grifos nossos.

Eis o artigo.


Já expressamos nestas colunas o nosso sofrimento pela liturgia que deveria ser um lugar de comunhão e se tornou um lugar de conflito na Igreja, mas justamente porque acreditamos que a eucaristia é o maior dom que o Senhor Jesus nos deixou, ainda queremos ouvi-la e deixarmo-nos instruir pelo seu magistério silencioso mas eloquente.

Em quase todas as comunidades católicas, a eucaristia é celebrada diariamente. Nos dias de semana, poucas pessoas participam dela: normalmente, são mulheres e idosas – elas também cada vez menos –, poucos homens, praticamente ausentes os jovens. Alguém poderá lamentar que elas são celebradas de um modo muito cotidiano, que não têm a riqueza do canto ou da festa, sem uma beleza capaz de maravilhar, que não se impõem e não atraem espectadores...

Porém, se celebradas seriamente e com consciência, serão "humildes" eucaristias, mas sempre com a verdade de "ceias do Senhor". Sim, pobres e humildes celebrações, mas o critério para julgá-las não é a sua capacidade de "fascínio", mas sim se elas fazem ressoar naqueles que delas participam o "evangelho", a boa notícia da morte e da ressurreição de Jesus Cristo, se são fonte de confiança para a vida, fonte de esperança para o futuro, fonte de amor fraterno na vida familiar e nos encontros, no tecido social onde os cristãos estão colocados, vivendo e trabalhando com os outros homens.

Sim, essa é a verdadeira questão que devemos fazer diante da eucaristia: a sua celebração determina algo na nossa vida, muda os nossos pensamentos e as nossas atitudes sempre tentados pela mundanidade, converte as nossas vidas?

Certamente, é muito importante, ou melhor, decisivo interessarmo-nos pelo "como" a eucaristia é celebrada, mas jamais devemos esquecer que tudo o que predispomos ou operamos para a celebração pode ter apenas um único fim: imergir-nos na dinâmica do mistério pascal, aquele evento que Jesus narrou com palavras e gestos sobre o pão e o vinho.

Recordemo-nos então que participar da eucaristia é, sobretudo, acolher o convite para a "mesa do Senhor" (1 Coríntios 10, 21): é o Senhor vivo que convida a nós, pobres e pecadores necessitados da sua misericórdia, enfermos sedentos de cura, fatigados e cansado em busca de repouso, humilhados e últimos que anseiam por ser reconhecidos e aceitos sem merecê-lo...

Todos dizemos: "Senhor, eu não sou digno...". Assim, o pão é dado a todos, ícone da partilha, inspiração e mandamento de partilha de todos os frutos da terra e do trabalho humano, para que não haja necessitados na comunidade em que vivemos (cf. Atos 4, 32).

Mas participar da Eucaristia significa também estar envolvido no sacrifício de um homem, o servo do Senhor, que consumiu e deu a sua vida pelos outros até acolher a morte violenta, a morte do justo em um mundo injusto, a morte de escravo em um mundo de senhores e poderosos, a morte de um homem de paz em um mundo violento...

Não por acaso, segundo o Evangelho de Lucas, justamente no contexto da última ceia, depois da instituição da eucaristia, Jesus disse: "Mas entre vós não deve ser assim!" (Lucas 22, 26), não comportem-se como ocorre todos os dias no mundo, não como todos fazem, não como é espontâneo fazer com base no instinto da preservação e da defesa de nós mesmos, até fazer com que prevaleça o amor por nós mesmos sem os outros e também contra os outros!

A eucaristia é o magistério do "mas entre vós não deve ser assim!", da diferença cristã, porque ela quer nos moldar em homens e mulheres eucarísticos, isto é, capazes de viver e de consumir a vida ao serviço dos outros, amando os outros até o extremo, até o próprio inimigo: corpo despedaçado, sangue derramado, sacrifício de uma vida oferecida e consumida no amor autêntico dos irmãos.

E para que compreendêssemos que a eucaristia é isso – senão não é, mas se reduz a cena religiosa, suntuosidade e falsidade –, Jesus também confiou aos discípulos um gesto que a explica e a interpreta: o lava-pés. Naquele curvar-se de Jesus, naquele gesto do escravo perante os irmãos, Jesus disse palavras que ressoam até hoje para nós: "Entenderam o que eu fiz?", entenderam que o partir o pão e o beber do cálice é “serviço” aos irmãos, serviço cotidiano assumido como estilo, o estilo do Senhor e do Mestre?

A eucaristia é isso! E se o é autenticamente, então só pode ser fonte de reconciliação, de comunhão, de amor fraterno. Se, ao contrário, ela é entendida e vivida apenas como celebração, rito, como uma ocasião de identidade e de filiação cultural e religiosa, se nela se busca a solenidade como espetáculo que seduz e deslumbra, então, infelizmente, é verdade que nós nos dividimos e, diante da eucaristia, entramos em conflito uns com os outros...

Mas o que celebramos não é mais a eucaristia de Jesus, a ceia do Senhor (cf. 1 Coríntios 11, 21)! Não se pode respeitar o corpo de Cristo, fixando-o no pão e no vinho, e depois não reconhecer o corpo de Cristo que é a comunidade, a igreja, conjunto de enfermos, pobres e pecadores que buscam encontrar sentido nas suas vidas para poder pregustar a salvação que vem do Senhor!

terça-feira, 26 de julho de 2011

Tuitadas de hoje


O atentado de Oslo, maçonaria e cristianismo: uma mistura (às vezes) explosiva http://bit.ly/qFkfj0

Oslo e a infinita idiotice do mal http://bit.ly/p0XoRZ

Cristãos e muçulmanos juntos para evitar o choque de civilizações http://bit.ly/pOrJKc

O atentado de Oslo e o mistério da fé http://bit.ly/oBJIjU

O domínio dos afetos patológicos cada vez mais naturalizados como discurso no jogo político http://bit.ly/pBZ7mQ

A fúria que mata em massa ouve a voz que prega a intolerância contra o islã; o pior é que essa voz só cresce na Europa http://bit.ly/pZlG0b

Amy Winehouse, a última romântica http://bit.ly/odCYcJ

Atentado Terrorista em Oslo e a quebra do clichê “terrorista” http://bit.ly/qtXXXK

Site dá orientação sobre terapia de emergência após contato com HIV http://j.mp/p1GSae

RT @_ihu: A delicada ligação entre opção religiosa e ascensão socioeconômica http://bit.ly/lSzYrC

"Eternamente Amy Winehouse", por Fernanda Young http://bit.ly/n4jeSc

Abaixo-assinado online: CARTA ABERTA À FRENTE PARLAMENTAR MISTA PELA CIDADANIA LGBT SOBRE A CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA http://j.mp/nrH5PD

Heteroinquisidores


Se pai e filho agredidos por homófobos tivessem se 'confessado' gays, em vez de uma orelha decepada poderia haver dois cadáveres

Minhas visitas à Índia são recheadas de descobertas culturais. Uma das que mais me fascina é a cena de homens de mãos dadas nas ruas. Ao contrário de nós, a expressão pública de afeto entre amigos é socialmente autorizada. Assim como meninas escolares no Brasil, os indianos de qualquer idade andam abraçados com seus colegas. A mesma intimidade entre homens, vi em vários países de tradição árabe. Aos homens, é permitido o toque como sinal de amizade. O curioso é que esse traço cultural não elimina a homofobia. Ao contrário, a homofobia é uma prática de ódio que convive com essas redescrições culturais sobre o corpo e o encontro entre os sexos. Entre nós, a novidade parece ser a de que nem mesmo o afeto entre pais e filhos será permitido pela patrulha homofóbica.

Um pai de 42 anos e um filho de 18 se abraçaram. De madrugada, cantavam juntos em uma festa ao ar livre no interior de São Paulo. Consigo imaginá-los felizes, razão para demonstrarem afeto mútuo. Foi o sinal para que dois homens desconhecidos perguntassem se eram gays. Insatisfeitos com a resposta negativa, saíram em busca de outros homens para iniciar a agressão. O pai teve parte da orelha decepada e o filho teve ferimentos leves. Pai e filho têm medo de represálias, pois os agressores estão pelo mundo, talvez orgulhosos da façanha ou, quem sabe, ainda sem entender por que não se pode agredir gays. Se tiverem algum senso de vergonha pelo ato, talvez seja o de ter confundido homens heterossexuais com gays.

A violência foi praticada com um ritual de confissão em dois atos: no primeiro, pai e filho deveriam declarar suas práticas sexuais para homens desconhecidos. Os homens homofóbicos são os inquisidores da heteronormatividade. Pai e filho negaram ser gays. Por alguma razão, a performance de gênero do pai e do filho não convenceu o grupo de homófobos. Eles buscaram reforço e retornaram com mais homens para silenciar aqueles que imaginavam ser representantes dos fora da lei heterossexual. No segundo ato, foram exigidas demonstrações de práticas homossexuais: pai e filho deveriam se beijar na boca para que os agressores vivenciassem a fantasia gay.

O primeiro ato do ritual homofóbico me leva a imaginar quais teriam sido as consequências de um "sim, somos gays" - uma autoafirmação entranhada em dois homens que não suportassem mais o tribunal homofóbico. Com essa resposta, talvez não estivéssemos diante de uma imagem de uma orelha parcialmente decepada, mas de dois cadáveres. Pai e filho foram vítimas da violência homofóbica. O curioso é que os dois não se apresentam como gays, mas como representantes da ordem heterossexual. Para os vigias homofóbicos, não importavam as práticas sexuais dos dois homens, mas a manutenção da ordem pública em que homens não devem se tocar. O interdito homossexual é tão poderoso que deveria impedir, inclusive, o contato físico entre pais e filhos.

Há outro ponto intrigante nessa história que é sobre como os homófobos se formam. Essa é uma inquietação a que qualquer aspirante a sociólogo responderia com uma tautologia: os fenômenos sociais não têm causa única. Mas aqui quero arriscar um caminho de compreensão. Os homófobos deste caso foram incapazes de diferenciar uma expressão de carinho paterno de uma prática erótica entre dois homens. Como hipótese, especularia que os agressores pouco receberam afeto de homens, seja de seus pais ou de outros homens de suas redes afetivas. Uma hipótese alternativa é a de que, se houve afeto paterno, esse foi mediado pelo temor homofóbico. Essa ausência levou os agressores a desconfiar do corpo de outros homens. Ao primeiro sinal de aproximação física, a defesa é a repulsa homofóbica.
Sei que essa explicação pode parecer reducionista para um fenômeno tão complexo e dependente da cultura patriarcal como é a homofobia. Mas é intrigante o erro do radar homofóbico dos agressores, o que sugere haver um equívoco de ponto de partida: eles parecem não ter sido capazes de identificar sinais corporais de algo tão fundamental quanto o amor paterno. Mesmo que não sejam ainda pais, não conseguiram se deslocar para o lugar de filhos que já foram ou ainda são. Aos guardiões da moral heterossexual, esse é um erro de diagnóstico que denuncia uma perturbação simbólica ainda mais fundamental.

Se minha hipótese for razoável, a mediação homofóbica na relação entre pais e filhos ou entre homens que se relacionam por vínculos de amizade ou convivência perpassa a socialização de gênero dos meninos. Os homens seriam treinados para evitar expressões de afeto e carinho por outros homens. Aqui volto à imagem da Índia para lembrar que o desejo de aproximação física entre homens não está inscrito nos corpos sexuados, mas é compartilhado pela cultura em que os homens vivem. Os homófobos se formam em casa, na rua, na escola. Em todos os espaços em que a fantasia homofóbica mediar a relação entre os corpos e afetos dos homens, a violência e a injúria contra os fora da lei heterossexual irão crescer.

- Debora Diniz
Antropóloga, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da ANIS - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero
Reproduzido via Conteúdo Livre

O que aconteceu com o sexo?

Foto: Sarah

Diante do debate sobre a visibilidade gay na televisão brasileira hoje, achamos pertinente reproduzir aqui este texto do teólogo gay/queer André Musskopf, escrito em 2007 e publicado na G-Magazine e na revista alemã Werkstatt-Schwule Theologie (via blog do autor).

Já faz algum tempo que tenho refletido sobre a importância do sexo na construção da identidade gay. Tive uma fase em afirmar que minha identidade não era construída exclusivamente a partir do meu desejo ou das minhas práticas sexuais, para contrabalançar aqueles e aquelas que me viam apenas como um "ser sexual", ignorando todas as outras variantes que fazem parte da construção (e reconstrução) da minha identidade.

Como gosto de cinema e televisão (também das novelas!), fui levado mais uma vez a esta reflexão, e à minha já quase solidificada constatação, após ler uma entrevista de Gilberto Braga à G-Magazine (Março/2007). Nesta entrevista a respeito da novela Paraíso Tropical o autor afirma que "os meus gays não ocupam um espaço importante na novela ... porque uma história de amor gay pode não interessar à maior parte do público" e "os gays não têm história [em Paraíso Tropical] exatamente porque se eu der uma para eles, vou tirar o espaço de personagens para os quais está prevista uma história. Os gays devem ser bons coadjuvantes". Não tenho por objetivo fazer uma crítica à obra de Gilberto Braga ou ao seu caráter militante. Mas pensar no que tanto incomoda nas relações homossexuais, na dramaturgia bem como no cotidiano.

A reflexão: já fui levado muitas vezes ao cinema ou a locadoras pelos comentários sobre o "aspecto gay" de determinados filmes que chocaram audiências - seguramente com o objetivo de ver os tais "avanços" e, mais subjetivamente, a mim mesmo. Um deles que me recordo foi Alexandre, o Grande. Frustração! Talvez tenha lido os comentários errados, mas os supostos "componentes gays" não passaram de uma cena breve em que se insinua algum contato com um de seus súditos, que ninguém sabe se foram concretizados ao término do filme. O que ninguém deve esquecer é a cena tórrida de sexo de Colin Farrel (Alexandre) com Angelina Jolie (Olímpia). O exemplo mais recente é Brokeback Mountain. Este, que já foi lançado como um "filme gay", não poderia ser mais frustrante para alguém interessado em "sexo gay". Tirando a cena na cabana - e talvez a cena do beijo no reencontro - só consigo lembrar de outras cenas de sexo entre os cowboys e suas esposas. Não é à toa que no Brasil o filme foi lançado como o "segredo" de Brokeback Mountain. Poderia muito bem ser uma estória sobre dois amigos muito íntimos e muito companheiros, como as relações de amor fraternal descritas por inúmeros religiosos celibatários ao longo da história da Igreja Cristã. Como um "bom gay" eu posso imaginar o sexo e ir para casa com a sensação de que os homossexuais agora serão mais bem aceitos pela singeleza e pelo sofrimento expressos no telão. Coitados! Mas como um "bom gay" também quero saber o que aconteceu com o sexo?

Voltando às novelas, o próprio Gilberto Braga menciona as mudanças na abordagem do tema em A próxima vítima e América. Eu mesmo acompanhei e fiquei emocionado - eu confesso - com as histórias dos casais gays nestas novelas. Mas nem um beijinho? Que dirá sexo! Já sexo entre casais heterossexuais... Mesmo em Paraíso Tropical, personagens que eu colocaria no rol de "coadjuvantes", andam fazendo sexo com vontade. Outro dia vi uma cena de Bruno Gagliasso (o mesmo de América) com sua namorada em que ambos estava seminus, ela entrelaçando ele com as pernas, ele chupando os seios dela... ui! Já o casal formado por Sérgio Abreu e Carlos Casagrande... lindos, mas sem beijo e sem sexo, coadjuvantes sexless numa trama cheia de sexo. Defensores da moral e dos bons costumes?

Claro, não é preciso ir ao mundo do cinema ou da televisão para buscar exemplos similares. A própria comunidade gay tem construído suas fobias e mecanismos de ocultamento do sexo. Basta pensar nas reações causadas pelos "exageros" nas Paradas Gays na comunidade e a busca por parceiros/namorados cada vez mais discretos, mais masculinos, mais alinhados... aquele tipo que não causaria suspeita em lugar algum de ser, de fato, gay, e seria um sério candidato ao "genro que toda sogra sonhou". Nenhum vestígio de homossexualidade. O sexo fica no quarto, e os direitos também, é claro. Mas esta discussão já é bem conhecida e não vou me alongar nela, só dizer que suspeito que os motivos destas posições venham do mesmo lugar.

Mais um exemplo, este do mundo das igrejas. Talvez não seja muito conhecida a política de ordenação de homossexuais ao ministério, mas em algumas igrejas protestantes criou-se a "possibilidade" de homossexuais serem ordenados pastores, desde que sejam "não-praticantes". Ora, pressupõe-se que todo mundo saiba o que não se pode "praticar" a fim de que seja aceito como obreiro da igreja. Mas é bom dizê-lo: significa eliminar o sexo. O mesmo princípio regula a Igreja Católica Romana na sua relação com seminaristas e padres homossexuais, mas, neste caso, com o "atenuante" de que isto é exigido de todos, uma vez que o celibato é condição para o sacerdócio, sem exceções. Não vou aqui discutir o que de fato acontece na vida daqueles que se professam celibatários ou não-praticantes - poderíamos encontrar muito sexo aí. A questão é que no nível do discurso e da política eclesiástica parece atuar a mesma idéia que vinha identificando acima: acaba-se com o sexo (pelo menos pública e oficialmente) e as portas se abrem para "homo(já nem tão)sexuais". E também aí sabemos que não é bem assim que funciona.

A constatação: a questão da marginalização, exclusão e discriminação de homossexuais está proporcionalmente relacionada ao sexo. Esconde-se o sexo, a aceitação de homossexuais aumenta. Será? Bonitos, saudáveis, gentis, trabalhadores, sensíveis - tudo bem. Beijos e sexo - nem pensar. Como teólogo penso na histórica "negação ou domesticação" do corpo e da sexualidade, nos discursos sobre eles bem como em qualquer discurso teológico. Elogia-se a ideologia do amor romântico e a caridade fraterna, demoniza-se a materialidade do sexo e do desejo. Como pesquisador na área da sexualidade penso na higienização do sexo e na construção ideológica da família burguesa. Sendo assim, também tenho consciência dos limites e das possibilidades do sexo, em sua forma discursiva, na sua representação e nas práticas. Mas prefiro as possibilidades e o sexo.

Por mais que se questione a banalização do sexo heterossexual patriarcalmente definido (promovido pelas novelas ou qualquer outro meio de comunicação), também banaliza-se o sexo homossexual pela via do silêncio e do ocultamento. Ele já não nos pertence mais! Enquanto se deixa de veicular a mensagem de que o sexo gay é bom e saudável, transmite-se a mensagem de que é tão monstruoso que até mesmo um beijo precisa ser evitado para que, assim, os gays pareçam "normais" - comparados a quem? Tudo para que tenhamos últimos capítulos com muitos casamentos e crianças recém-nascidas ("Quanto maior a família melhor, diria o milionário Aristides de Páginas da Vida). E pobres das criancinhas que são influenciadas por estes meios diabólicos de comunicação: ou crescem e se tornam adultos homofóbicos, ou passam a adolescência tentando lidar com seus desejos, quando não se suicidam antes.

Ergamos nossa voz - pelo direito ao sexo! Nos quartos, nas telas de cinema e na televisão! Seguro, sem culpa e com tesão! Senão continuaremos sendo meros coadjuvantes sem uma história que seja nossa pra contar, e não cidadãos de verdade.

- André S. Musskopf

Por que participo da Igreja?


Quanto tu és contestável, Igreja, porém, quanto te amo! Quanto me fizeste sofrer, porém, quanto devo a ti! Gostaria de te ver destruída, porém, tenho necessidade da tua presença. Deste-me tantos escândalos, porém, me fizeste entender a santidade! Nada vi no mundo de mais obscurantista, mais comprometido, mais falso, e nada toquei de mais duro, de mais generoso, de mais belo.

Quantas vezes tive vontade de bater na tua face a porta da minha alma e quantas vezes rezei para poder morrer entre os teus braços seguros.

Não, não posso me livrar de ti, porque eu sou tu, mesmo não sendo completamente tu.

E depois aonde iria? Construir uma outra Igreja?

Mas não poderei construí-la senão com os mesmos defeitos, porque são os meus que trago dentro. E se a construir, será a Minha Igreja, não mais aquela de Cristo.

Anteontem, um amigo escreveu uma carta a um jornal: "Deixo a Igreja porque, com o seu comprometimento com os ricos, ela não é mais confiável". Me dá pena!

Ou é um sentimental que não tem experiência, e o desculpo; ou é um orgulhoso que acredita ser melhor do que os outros.

Nenhum de nós é confiável enquanto estiver sobre esta terra. São Francisco gritava: "Tu acreditas que sou santo e não sabes que ainda posso ter filhos com uma prostituta, se Cristo não me sustentar".

A credibilidade não é dos homens, é só de Deus e do Cristo. Dos homens é a fraqueza e talvez a boa vontade de fazer alguma coisa de bom com a ajuda da graça que brota das veias invisíveis da Igreja visível.

Talvez a Igreja de ontem era melhor do que a de hoje? Talvez a Igreja de Jerusalém era mais confiável do que a de Roma?

(…)

Quando eu era jovem, não entendia por que Jesus, apesar da negação de Pedro, quis que ele fosse chefe, seu sucessor, primeiro Papa. Agora, não me admiro mais e compreendo sempre melhor que ter fundado a Igreja sobre o túmulo de um traidor, de um homem que se assusta por causa da conversa fiada de uma serva, era uma advertência contínua para manter cada um de nós na humildade e na consciência de sua própria fragilidade.

Não, não vou sair desta Igreja fundada sobre uma pedra tão frágil, porque fundaria uma outra sobre uma outra pedra ainda mais frágil, que sou eu.

(…)

Mas depois há ainda uma outra coisa que é talvez mais bela. O Espírito Santo, que é o Amor, é capaz de nos ver santos, imaculados, belos, mesmo se vestidos como canalhas e adúlteros.

O perdão de Deus, quando nos toca, faz com que Zaqueu, o publicano, se torne transparente, e a pecadora Madalena, imaculada.

É como se o mal não pudesse tocar a profundidade metafísica do homem. É como se o Amor impedisse que a alma distante do Amor apodrecesse. "Eu coloquei os teus pecados atrás das minhas costas", diz Deus a qualquer um de nós, e continua: "Amei-te com amor eterno, por isso te reservei a minha bondade. Edificar-te-ei de novo, e tu serás reedificada, virgem Israel" (Ger 31,3-4).

Eis, ele nos chama "virgens" mesmo quando estamos retornando da enésima prostituição no corpo e no espírito e no coração.

Nisso, Deus é verdadeiramente Deus, isto é, o único capaz de fazer as "coisas novas".

Porque não me importa que Ele faça os céus e a terra novos, é mais necessário que ele faça "novos" os nossos corações.

E esse é o trabalho de Cristo.

E esse é o trabalho divino da Igreja.

Vocês gostariam de impedir esse "fazer novos os corações", expulsando alguém da assembleia do povo de Deus?

Ou vocês gostariam, procurando outro lugar mais seguro, de se colocar em perigo de perder o seu Espírito?

- Frei Carlo Carretto
Reproduzido via IHU, com grifos nossos.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Tuitadas de hoje


EUA: 150 sacerdotes pedem abertura do sacerdócio a mulheres http://bit.ly/p9nDb8

Noruega, Islã e a ameaça que nasce no Ocidente http://bit.ly/pBNVVD

SP já tem mais agressões a gays do que em 2010 http://bit.ly/qpxCBM

Luis Fernando Verissimo: "Textos sagrados" - por que nem sempre confiar na palavra escrita http://bit.ly/ogLyH4

Estatuto da Diversidade Sexual garantirá direitos para população LGBT http://bit.ly/oHWL4U

Woodstock cristão http://bit.ly/oo5Fpj

Nova York diz "sim" para o casamento gay

484 casais do mesmo sexo casaram ontem em Nova York - como, por exemplo, Phyllis Siegel, 76, e Connie Kopelov, 84, juntas há 23 anos. Não é uma bela imagem para começar a semana?


Outras fotos aqui.

Uma semana abençoada a todos! :-)

Ler a Palavra pode ser perigoso


Nunca se sabe com antecedência onde a aventura da leitura nos levará, pelo menos se aceitamos nos abrir à viagem, ao desconhecido, à descoberta, em vez de ler agarrando-nos covardemente a um monte de certezas adquiridas sempre. Ler não é dispor de um livro. O leitor se expõe ao texto e, de certo modo, é ele que está à disposição do texto e da sua palavra.

A análise é do teólogo e biblista suíço Daniel Marguerat. Foi pastor da Igreja Evangélica Reformada de 1984 a 2008 e lecionou Novo Testamento na Faculdade Teológica da Universidade de Lausanne, na Suíça.

O artigo que segue é um trecho do seu livro "Le Dieu des premiers chrétiens" (Ed. Labor et Fides, 2011, p. 249-252), publicado no sítio Garrigues et Sentiers, 14-07-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU com grifos nossos.

Eis o texto.


Martinho Lutero, convocado pelo imperador Carlos V para se explicar, compareceu diante da Dieta de Worms no dia 14 de abril de 1521. Tendo-lhe sido exigido que se retratasse de seus escritos que haviam sido depostos diante dele, ele respondeu com um discurso em latim, que lhe foi pedido para repetir em alemão. Ele o fez dele, em pé, no meio da assembleia, perante o imperador:

"Estou dominado pelas Sagradas Escrituras que eu citei, e a minha consciência está prisioneira da Palavra de Deus. Não posso nem quero me retratar de nada, porque não é nem sábio nem prudente agir contra a própria consciência". E ao oficial que lhe respondeu: "Abandona a tua consciência, frei Martinho. A única atitude sem perigo consiste em te submeteres à autoridade", Lutero rebateu e persistiu: "Aqui estou, não posso fazer outra coisa. Que Deus me ajude".

Curiosamente, Martinho Lutero reivindica a sua liberdade usando uma linguagem de cativeiro: estou dominado, a minha consciência está prisioneira, não posso fazer outra coisa. Não vejo nisso uma astúcia para se inocentar, porque o monge de Wittenberg não recorre a tais estratégias lamentáveis de defesa. Vejo a confissão de que ele havia embarcado em uma aventura que o arrastou inteiramente: a leitura da Palavra. E, nessa aventura, o leitor não é o mestre, mas sim a Escritura que dele se apossa. Depois de Worms, Lutero se encerrará em Wartburg: cativeiro desejado, deliberado, sinal do cativeiro da leitura.

Ler, portanto, não é sem perigo. Nunca se sabe com antecedência onde a aventura da leitura nos levará, pelo menos se aceitamos nos abrir à viagem, ao desconhecido, à descoberta, em vez de ler agarrando-nos covardemente a um monte de certezas adquiridas desde sempre. Ler não é dispor de um livro. O leitor se expõe ao texto e, de certo modo, é ele que está à disposição do texto e da sua palavra. Ler pode ser perigoso.

Parece que dos relatos de milagre à linguagem do julgamento, de Lucas a Paulo, dos Atos dos Apóstolos ao Apocalipse, as imagens de Deus são infinitamente mais diferentes do que se pensava. O Novo Testamento não abriga uma doutrina, mas expõe diversas abordagens de Deus, ou mais exatamente reúne diversas tentativas de dizer o mistério de Deus. Ler é arriscado. O risco aqui é de volatizar a unidade do Novo Testamento. Ainda é possível falar de “um” Deus dos primitivos cristãos?

Avaliemos a extensão dessa constatação. Essas diversas imagens de Deus, exumadas pela leitura, não são simplesmente adicionáveis umas às outras, como se, acumulando os autores do Novo Testamento, sobrepondo suas percepções de Deus, se obtivesse assim um retrato completo do Deus dos primeiros cristãos.

Constatou-se que os seus discursos não podem ser colocados simplesmente um depois do outro de ponta a ponta. O apóstolo Paulo tem um modo de significar a graça, com a sua convicção poderosa de que a barreira da Lei caiu, que não concorda imediatamente com a teologia de Mateus, para a qual o Reino é uma fenda, uma porta estreita através da qual devemos passar. Lucas se obstina em perceber Deus na espessura da história social e política do seu tempo, enquanto que o Apocalipse vive da convicção de que Deus se ausentou do mundo.

Gálatas 3, 28, perpetuando o gesto libertador de Jesus, abole toda prerrogativa do homem sobre a mulher, mas, na outra ponta do Novo Testamento, as epístolas pastorais delineiam o retrato de uma mulher destinada ao silêncio, convocada a se submeter ao homem e responsabilizada pela queda (1 Timóteo 2, 9-15; 5, 3-16). A unidade do Novo Testamento não se fará por adição.

É preciso, então, se resignar à constatação de uma Escritura dividida em posições teológicas irreconciliáveis? O Deus dos primeiros cristãos seria o emblema de teologias disparatadas? Eu diria que devemos admitir a irredutível diversidade das imagens de Deus no Novo Testamento, e que esse consentimento passa por um luto: o luto da uniformidade. Só a renúncia à utopia da identidade nos faz acolher a pluralidade como um fato positivo, e não como uma ameaça. A unidade do Novo Testamento não é suspensa pelas semelhanças que se encontrariam nos seus autores inspirados. Ela está na “sua comum vontade de dar conta do evento do Cristo”. Jesus de Nazaré, pelo fato de todos os relatos e os discursos tenderem a ele, cimenta a unidade do Novo Testamento.

Mas atenção. Essa unidade está em tensão. Os primeiros cristãos, cada um à sua maneira, acolheram e atualizaram na sua situação a memória de Jesus. A sua diversidade indicaria que alguns preservaram fielmente a mensagem do Nazareno, enquanto outros a teriam distorcido?

Desconfiemos desses termos, porque a "fidelidade à tradição de Jesus" que consiste em fixá-la para transmiti-la palavra por palavra é, na realidade, uma infidelidade fundamental. Ela faz da palavra de Jesus um objeto de museu, uma palavra a ser incensada assim como incensamos os mortos. Os primeiros cristãos não tinham essa visão fixa da tradição. A palavra de Jesus, por ser a palavra do Senhor presente na Igreja, devia ser atualizada. Para eles, “ser fiel a uma tradição impõe que ela evolua e se desenvolva”. Prova disso é que a escritura dos Evangelhos não esgotou o fluxo das tradições orais, sinal de que até essa imponente cristalização literária não havia esgotado a memória de Jesus. A Igreja antiga, além disso, manteve só uma parte dos escritos cristãos para fazer a sua seleção normativa da sua fé. Muitos outros, que nós conhecemos em parte, foram descartados e ainda amplificam consideravelmente a diversidade da qual falamos. Mas essa é uma outra história.

Os primeiros cristãos engajaram a sua fidelidade a Cristo por vias teológicas diferentes, e o Novo Testamento vive da reunião dessas fidelidades. Paulo é fiel à memória de Jesus quando afirma que a dignidade do homem lhe vem apenas de Deus e que a salvação não é uma performance religiosa. Mateus é fiel à memória de Jesus quando repete obstinadamente que a fé se concretiza por meio do gesto e da palavra, senão não existe. Lucas é fiel à memória de Jesus quando vê o Espírito de Deus em ação nas peripécias da missão. O autor do Apocalipse também é fiel quando defende que os poderes opressivos já foram vencidos na cruz, e que o seu julgamento é apenas uma questão de tempo.

O Novo Testamento vive da acolhida dessas fidelidades, cuja diversidade chega até o desacordo, e as mantém unidas. Ele pode fazer isso, porque os testemunhos e os sistemas teológicos que ele reúne não convidam a adotar um princípio, uma norma, uma doutrina, mas sim a seguir alguém, Jesus de Nazaré, o Cristo, Parábola de Deus. A fidelidade a uma pessoa não se satisfaz com uma uniformidade, e o Espírito se encarregou de fazer com que os primeiros cristãos compreendessem isso.

Gerir a sua herança hoje é resistir ao fantasma totalitário do discurso único e arriscar, ao mesmo tempo, uma palavra. Uma palavra que deverá se submeter humildemente ao testemunho das Escrituras, para saber se elas têm lugar, e como, no espaço das fidelidades a Cristo. Mas uma palavra que – e justamente se se afastar do discurso majoritário – talvez poderá não ser totalmente a nossa, porque nela fala uma Outra Palavra, que faz dizer: não posso fazer outra coisa...

domingo, 24 de julho de 2011

Emissoras no armário

Escultura: Vhils

Globo e SBT afirmam ter cortado cenas de beijo e de afeto entre homossexuais a pedido do público e para evitar 'exaltação'

Depois de ter tramas elogiadas por criticar a homofobia e tratar os relacionamentos homossexuais com naturalidade, as novelas da TV aberta recuaram na abordagem de personagens gays.

"Amor e Revolução" (SBT) mostrou um beijo lésbico entre Marcela (Luciana Vendramini) e Marina (Giselle Tigre). Mas a mesma cena entre Jeová (Lui Mendes) e Chico (Carlos Artur Thiré) foi vetada.

Em nota, a emissora explica ter tomado a decisão após uma pesquisa mostrar insatisfação "em relação às cenas de violência demasiada e beijo gay explícito, que incomodaram a maioria das famílias brasileiras".

A Globo não citou pesquisas para esfriar a história de "Insensato Coração", cortando cenas gravadas (veja quadro), como noticiado pela coluna "Outro Canal" nesta semana. "Nossa tramas registram a afetividade e o preconceito, mas não cabe exaltação", informou em nota.

As decisões das emissoras causaram surpresa e decepção entre defensores dos direitos dos homossexuais, especialmente no caso de "Insensato Coração", que foi considerada um marco pela denúncia da homofobia.

O próprio Ministério da Justiça, órgão responsável pela classificação indicativa, decidiu mantê-la como "não recomendada para menores de 12 anos" (ao invés de 14 anos).

A decisão, publicada no "Diário Oficial" nesta semana, cita que a novela tem "conteúdos de natureza educativa e relevância social, com reflexos positivos e respeito à diversidade".

Beijo proibido
A cautela na exibição de afeto entre homossexuais é antiga na Globo. Em 20 de dezembro de 1998, o cinegrafista Hugo Sá Peixoto e seu chefe, Amaury Trolize, foram demitidos após a exibição de um beijo entre homens em imagens que entraram ao vivo no "Fantástico".

A emissora explicou, em nota, que as demissões ocorreram na época porque eles desrespeitaram "uma recomendação". Ambos, porém, dizem que "foi um acidente".

"O proibido de ontem não é mais o de hoje", ressente-se Peixoto, que trabalhou por 26 anos na Globo. Quase 13 anos após sua saída, a mesma emissora exibiu, no "Jornal Nacional", em horário nobre, um selinho entre dois homens em reportagem sobre a última Parada Gay de São Paulo.

Especialistas ouvidos pela Folha destacaram a importância de dar visibilidade a cenas de afeto entre gays.

Deixando o politicamente correto de lado, no entanto, o que parece consensual adquire contornos controversos quando o assunto é a veiculação de imagens de beijos e carinhos entre dois homens ou duas mulheres.

Para o ator Daniel Barcelos, que beijou Raí Alves na minissérie "Mãe de Santo" (1990) da extinta TV Manchete, a polêmica é um retrocesso. "Não entendo por que dar esse passo atrás."

Questão gay evoluiu na TV, dizem estudiosos
"Será que eles vão explodir os dois, como já aconteceu com outros casais?"

A questão do antropólogo Sérgio Carrara, coordenador do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos, da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), é retórica.

Ele mesmo diz que dificilmente a Globo usará em "Insensato Coração" uma solução extravagante para eliminar o par Eduardo e Hugo, como aconteceu com o casal lésbico de "Torre de Babel", de 1998.

"Acho que é impossível, não é mais o momento. É quase inacreditável."

A Folha ouviu estudiosos -da sexualidade, da televisão, das telenovelas- sobre a representação dos homossexuais nos folhetins da TV.

Eles foram unânimes em apontar uma evolução, que acompanha e estimula mudanças na própria audiência.

"A telenovela é um espaço de debate. De um modo geral, ela puxa a sociedade", diz a professora Maria Immacolata, coordenadora do Centro de Estudos de Telenovela da Universidade de São Paulo.

Para o psiquiatra e coordenador do Ambulatório de Transtorno de Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas de São Paulo, Alexandre Saadeh, a censura às cenas de afeto gay nas novelas é um desserviço.

"Mostrar um beijo não é valorizar simplesmente os homossexuais mas promover a aceitação de uma diferença que é normal", diz.
"Ver um casal de homens ou mulheres vivendo juntos e expressando afeto não transforma ninguém em homossexual", explica Saadeh.

Por outro lado, ainda há claros sinais de conservadorismo do grande público, sinais a que as emissoras aludem -indiretamente e de forma velada- na hora de justificar as mudanças recentes nas tramas gays.

"Ao mesmo tempo em que há o reconhecimento de direitos, é uma sociedade ainda muito conservadora e que tem forças que usam a questão da homossexualidade como marco de diferença no campo político", diz Carrara.

Gays afetados e lésbicas
Dois tipos de personagem passam imunes aos vetos das TVs: gays afetados, do humor, e lésbicas.

"A relação sexual entre mulheres faz parte do repertório erótico heterossexual", diz Carrara; isso explicaria o fato de o SBT ter mostrado um beijo lésbico em "Amor e Revolução", mas censurado cena idêntica com homens.

Quanto aos gays afetados, típicos do núcleo humorístico, os especialistas afirmam que fazem parte da diversidade homossexual, mas que frequentemente são apenas veículos para a expressão de preconceitos.

"É mais fácil debochar desse tipo de personagem porque ele tem a marca da diferença", explica Saadeh.

"Incomoda mais um homossexual que não é afetado, ou tem trejeitos, porque fica mais difícil excluí-lo."

Doutor em comunicação pela Universidade do Texas e autor de livros como "A Televisão no Brasil - 50 Anos de História", Sergio Mattos diz que a sociedade está "deixando a hipocrisia de lado" e que a aceitação "é questão de tempo".

- Elisangela Roxo e Marco Aurélio Canônico
Matéria publicada na Folha de S. Paulo de hoje, reproduzida via Conteúdo Livre


Opinião 1
Novelistas exageram na temática e perdem a mão
Ricardo Feltrin, editor de entretenimento da Folha de S. Paulo

Até o final da década de 90, os gays quase sempre eram retratados de forma jocosa em novelas, seriados e minisséries. São lendários personagens em tramas de todos os horários na Globo. No SBT, a descoberta é mais recente.

Parece que foi só neste novo século que as TVs descobriram o politicamente correto e passaram a retratar minorias com mais fidelidade.

A despeito dos vários beijos gays prometidos por autores da Globo e do SBT, e que não foram exibidos por ingerência das direções das TVs, não há dúvida de que os novelistas escrevem hoje um texto mais honesto, sério e justo para personagens gays, negros e também deficientes físicos, doentes terminais etc.

O problema é que, assim como todo ano as organizações LGBT "inflam" e chutam para cima o número de pessoas presentes à passeata na Paulista, talvez os autores agora estejam "inflando" o espaço à temática e a seus personagens. O mundo real parece bem menos gay do que o que os novelistas querem.

Opinião 2
Os gays não conquistaram sua cidadania nas telenovelas
Vitor Angelo, colaboração para a Folha de S. Paulo

Falar num crescimento exagerado de personagens gays nas novelas merece cautela. Na recente reprise de "Vale Tudo", dos anos 80, havia o mordomo culto e afetado, o filho que o pai desconfiava ser homossexual e o michê que virou amante de um príncipe. Tudo muito enrustido, mas já presente.

Nos humorísticos, a chamada "bicha caricata" existe há décadas -um elemento importante para a chamada visibilidade gay.

Está desfocada a ideia de que os vetos das emissoras para baixar a bola da bandeira colorida foram provocados por uma overdose gay na TV. Eles não são nem maioria nem protagonistas das novelas. O que está em "close" não é supremacia, mas igualdade.

Diminuir a presença gay na TV torna o debate da homofobia desigual se comparado ao de questões como o racismo ou a opressão à mulher, amplamente discutidas nas tramas de novelas. A conclusão é uma só: os gays ainda não conquistaram sua cidadania plena nas telenovelas.

Sexo: obediência e revelação


"A sexualidade humana é o núcleo de toda a agitação católica que o Papa e o Vaticano ainda se recusam a enfrentar e a discutir de forma realista." A análise é de Richard Sipe, conselheiro em saúde mental clínica, que viveu por 18 anos como monge beneditino e sacerdote. Fez sua formação específica para tratar de padres católicos com problemas de saúde mental. O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 01-06-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, reproduzido via IHU com grifos nossos.


O teólogo Yves Congar disse uma vez: "Na Igreja Católica, muitas vezes pareceu que o pecado da carne era o único pecado, e a obediência, a única virtude". Essa dicotomia dinâmica forma a chave para a estrutura de toda a crise dos abusos sexuais do clero que atualmente envolve a Igreja Católica.

Mas o abuso sexual de menores por clérigos que fizeram o voto do celibato é apenas o sintoma de um sistema desesperadamente necessitado de uma reconsideração fundamental.

A sexualidade humana é o núcleo de toda a agitação católica que o Papa e o Vaticano ainda se recusam a enfrentar e a discutir de forma realista.

Em 1990, um bispo que voltava de Roma me disse que o Papa João Paulo II instruiu pessoalmente cada novo bispo para que "não discutisse em público" o controle de natalidade, o sacerdócio casado, a ordenação de mulheres, o aborto e o conjunto de questões celibato/sexuais que constituem um agenda que os teólogos têm apontado há décadas como sendo precisamente o "emaranhado de questões que entopem" a agenda católica.

As lideranças católicas romanas não conseguiram lidar de forma confiável e transparente com toda a sexualidade humana. William Shea apresentou o desafio de forma mais elegante ainda em 1986, quando listou as questões que precisam ser discutidas: "o divórcio e o recasamento, o sexo pré-marital e extraconjugal, controle de natalidade, aborto, homossexualidade, masturbação, [ordenação de mulheres, celibato mandatório] e o monopólio masculino do liderança". Ele opinou que o medo e talvez o ódio às mulheres podem estar no fundo dos problemas eclesiais.

Seria hipócrita protestar que a Igreja tem discutido essas questões ou convida para o diálogo sobre a sexualidade humana. É verdade, o Vaticano tem feito pronunciamentos e declarações sobre cada um dos itens da lista, mas nenhum deles convida ao diálogo. A observação de Congar se confirma. Sexo é tudo pecado. Virtude é submissão e obediência à autoridade e seus ditames.

Apesar do esforço de quatro anos do Papa João Paulo II para definir uma Teologia do Corpo, ele nunca transcendeu algumas das restrições básicas da doutrina da Igreja de que o sexo é pecado. O sexo continua sendo admissível e sagrado apenas dentro de um casamento válido.

Um problema crônico com os pronunciamentos da Igreja sobre o sexo é o uso da ideia de lei natural, assim como eles o definem e aplicam. O Vaticano apresenta a sua interpretação da natureza sexual humana como uma determinação absoluta. Eles isolam a ideia e impõem-na como um instrumento de controle. A abordagem não reconhece que o direito natural também é o guia prático e razoável inerente à consciência independente da revelação. Muitos católicos usam a lei natural como o mapa para orientar seu comportamento sexual. Por exemplo, a lei natural muitas vezes ultrapassa os ditames da "Humanae Vitae" em matéria de planeamento familiar. Alguns comportamentos tachados pela Igreja como "contrários ao direito natural" (masturbação como um exemplo dentre muitos) devem ser abertos ao exame e ao diálogo nas mentes e nos corações de muitos católicos sérios.

"Intrínseca" é uma palavra da Igreja que impede qualquer possibilidade de conversa. O controle da natalidade é apresentado como intrinsecamente mau; assim como o aborto; e a masturbação. Sexo com uma garota menor de idade, porém, não é considerado intrinsecamente mau, só pecado grave.

Os atos homossexuais são "intrinsecamente desordenados". Um documento de 1986, de autoria do cardeal Joseph Ratzinger, declarou que a orientação homossexual, embora não pecaminosa em si mesma, "é uma tendência mais ou menos forte e ordenada a um mal moral intrínseco; e, portanto, a própria inclinação deve ser vista como uma desordem objetiva". Como se o conceito de Pecado Original não fosse suficiente para abranger todos os seres humanos de qualquer orientação ou inclinação.

A definição de sexo como pecado estabelece e mantém um controle autoritário, porque bispos e padres (apenas) têm o poder de perdoar o pecado mortal. Eles são senhores sobre o território interior da alma onde as violações secretas são armazenadas. Exige-se que os católicos apresentem seus graves pecados na confissão sacramental para a absolvição de um sacerdote pelo menos uma vez por ano. Todos os pecados sexuais, claro, são graves, de acordo com a doutrina católica.

A operação de bispos em toda a crise dos abusos sexuais do clero demonstra sua crença de que o sexo com menores de idade com um clérigo é essencialmente pecaminoso e só secundariamente criminoso. Essa postura clerical levou às revelações do dano monumental além da exposição da arrogância clerical impenitente.

Dentro do sistema clerical, o padre abusador arrependido é facilmente perdoado – repetidamente – pelo poder da absolvição. A criança-vítima inocente é abandonada ao fardo psíquico imerecido de culpa e vergonha. Desde 1946, a Igreja estabeleceu uma série de centros de tratamento para o conforto e para ajudar a controlar o clero abusador. A atitude de desprezo para com as vítimas de abuso como adversários incômodos está em claro contraste com a preocupação protetiva e tolerante para com os clérigos.

Sob uma forte pressão pública desde 2002, a Conferência dos Bispos dos EUA (USCCB) instituiu medidas para educar os funcionários e seus filhos sobre os abusos – toques bons e ruins. Auditorias diocesanas para avaliar a conformidade com a Carta de Dallas, coleta de impressões digitais e protocolos para a contratação de pessoal na Igreja e mais coisas estão agora em vigor. Mas a Igreja realmente alterou qualquer um dos seus entendimentos da dinâmica sexual humana em resposta às evidências de atividade sexual do clero e de pervertidos celibatários? A autoridade da Igreja é transparente e responsável com relação a isso?

Apesar das concessões atuais sobre a denúncia de crimes do clero às autoridades civis, o poder clerical sobre o pecado sexual continua sendo construído e executado com a convicção de que a determinação da Igreja resume o conhecimento do próprio Deus e a lei imutável sobre o sexo humano. Na sua avaliação, os bispos ainda prevalecem como os juízes finais dos comportamentos sexuais, apesar das reverências ao direito e aos tribunais civis que funcionam apenas de acordo com as leis inferiores do homem. Relatórios do Grande Júri e depoimentos de padres e bispos em processos civis de abuso do clero fornecem exemplos berrantes dessa atitude improvisada.

Os representantes da Igreja que já declararam que a crise dos abusos sexuais é "história" e seus representantes de investigação que estimam que o fenômeno foi de tempo limitado e "acabou" não entendem nem a história do celibato religioso, nem as reais dimensões da crise atual. Sua imaturidade faz um grande desserviço à Igreja, aos padres e ao povo.

Entrelaçados dentro das fibras do magistério sexual católico e da operação do celibato estão fatores irresolvidos que tornam o comportamento imoral, as vidas secretas e os padrões sociopatas de ajustamento de personalidade não só comuns, especialmente nos altos escalões do poder, mas também totalmente inevitáveis em inúmeras vidas clericais. As questões irresolvidas formam um sistema doente.

A insistência do Vaticano de que todas as perguntas sobre a sexualidade humana estão resolvidas e fora de discussão – resta à pessoa apenas obedecer e se conformar – leva importantes decisões da vida para fora do domínio da inquisição, da responsabilidade e da decisão moral. A recusa do Papa e do Vaticano de entrar em um diálogo sério sobre a agenda celibato/sexual retirou da Igreja a sua liderança e sua credibilidade moral e tem sido um componente essencial da crise dos abusos sexuais do clero católico em todo o mundo.

É impossível que a autoridade da Igreja restabeleça até mesmo um pouco de respeito e de credibilidade enquanto não puder discutir aberta e honestamente toda a gama de questões sexuais que afetam tão vitalmente o bem-estar humano.

Tesouro no campo, pérola preciosa

Foto: Sarah

Jesus compara o Reino de Deus com um campo que contém um tesouro e com uma pérola preciosa. Elementos humanos que simbolizam coisas de grande valor e que nos movem a fazer grandes esforços para obtê-los e guardá-los. Encontrar um tesouro ou uma pérola preciosa nos remete àquelas coisas especiais que acontecem em nossas vidas e que guardamos como verdadeiras jóias.

E é desta forma que a experiência do encontro com Deus deve ser guardada em nosso coração. Nada pode ser mais valoroso que aquele momento íntimo em que sabemos que o Senhor está presente ou no qual sentimos a Sua mão a nos guiar ou, ainda, naqueles em que a certeza de Deus é tão forte que sua presença é quase que concreta. São momentos de graça e revelação, no qual a comunicação entre o Criador e sua criatura flui sem atropelos ou sem ruídos. Momentos em que se revela o imenso amor de Deus pela humanidade e que nos certificam disso de tal forma marcará nosso coração de forma indelével e eterna.

Momentos assim, de total consolação e certeza de fé, são semelhantes ao momento do encontro da jóia preciosa: momento eterno e que qualquer esforço será pouco para voltar a sentir o que se sentiu. Momento que deve ser guardado em nosso coração para que seja transmitido ao outro na medida exata de sua especialidade, com a convicção profunda de que é um tesouro que não é meu, mas está disponível para todos, pois a todos o Pai se quer dar. Momento que se pode guardar como conquista e por isso merece ser celebrado constantemente.

E é este convite à celebração que Jesus nos faz. A pérola e o tesouro devem ser repartidos com todos. O efeito transformador da experiência de encontro com Deus não pode ficar guardado como uma experiência íntima, mas deve estar refletida em nossos atos, em uma transformação de vida própria daqueles que se deixam tocar pela mão do oleiro que faz novos todos os vasos.

Celebremos, pois, nossos encontros com Deus: pequenos e grandes, mais ou menos intensos, mas que marcam nossa vida definitiva e eternamente. São momentos de pura graça dos quais devemos nos orgulhar e, agradecidos, levar adiante a experiência para que dela também possam usufruir outros companheiros.

Texto para reflexão:
Mt 13, 44-52

- Gilda Carvalho
Reproduzido via Amai-vos

“A fé é a entrega radical a Deus”

Foto: Jeff Clow

Em dezembro de 2006, a Revista IHU On-line teve como tema a pergunta "Por que ainda ser cristão?", respondida em forma de depoimentos e testemunhos, que reproduziremos aqui espaçadamente. Esperamos com isso convidar também você, leitor, a refletir sobre a importância da fé e do cristianismo, qualquer que seja o lugar por eles ocupado em sua vida. Um forte abraço! :-)

Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, em Letras Neolatinas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), em Teologia pela Hochschule Sankt Georgen, em Frankfurt, Alemanha, o João Batista Libânio, SJ, é também mestre e doutor em Teologia, tendo cursado o seu Doutorado na Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG) de Roma. Libânio leciona Teologia no Instituto Santo Inácio de Belo Horizonte, e é autor de diversos livros publicados.

A relevância de Jesus e sua mensagem
A epístola aos hebreus manifestou certeza impressionante ao afirmar que “Jesus Cristo ontem e hoje é o mesmo também pelos séculos” (Hb 13, 8). O autor ousou dizer logo no início do cristianismo que Jesus tinha valor e significado permanentes. E vinte séculos depois fazemo-nos a mesma pergunta e damo-nos a mesma resposta. Se Cristo permanece até hoje com extrema significação, ser seu seguidor participa da mesma relevância. E por quê? Distingo três níveis de relevância de Jesus e, por conseguinte, de adesão à sua mensagem.

Em nível puramente sociocultural. A proposta de sociedade feita por Jesus conserva enorme atualidade e permanece ainda no nível da utopia, tão grandiosa fora. Depois de dois milênios os humanos não conseguiram, embora tivessem tentado de várias formas, realizar o projeto humano de convivência imaginado por Jesus. Os princípios básicos são extremamente simples na formulação. Indicarei alguns deles. A lei fundamental da relação humana define-se pelo mandamento novo de que nos amemos uns aos outros, assim como o Senhor nos amou (Jo 13, 34). E como ele nos amou? Até o perdão dos inimigos: “Pois eu vos digo: Amai vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem, para serdes filhos de vosso Pai que está nos céus” (Mt 5, 44s). E no sermão escatológico teceu a página do amor anônimo: dar de comer a quem tem fome, de beber a quem tem sede, acolher os estrangeiros, vestir os nus, visitar os doentes e encarcerados (Mt 25, 35). Imaginemos uma sociedade construída sobre esse alicerce do amor radical e preferencialmente pelos segregados sociais. Se muitos consideraram o saldo positivo maior do primeiro mandato do Governo Lula a bolsa família, que pensar de toda a sociedade estruturar-se em torno da proposta de Jesus e não simplesmente um programa periférico? Vale a pena socioculturalmente empenhar-se em tal utopia. O sonho socialista hauriu muito da proposta de Jesus. Mas fracassou porque esqueceu um ingrediente necessário para Jesus: tal opção pelo amor não vem imposta, mas nasce da conversão do coração. S. Paulo usa a expressão de “homem novo” em contraste com o homem velho, feito de egoísmo, da autopromoção, altamente cultivado na sociedade capitalista.

Alcance universal
A sociedade moderna da técnica e da ciência permanece fundamentalmente no nível dos meios, dos instrumentos. Não atinge os valores. E a proposta de Jesus ultrapassa tal patamar. O alcance universal lhe vem precisamente por não se deter na imediateidade instrumental, que está sempre a variar, mas em falar à dimensão última do ser humano enquanto pessoa e sociedade. Por isso guarda valor definitivo e não presas a conjunturas geoistóricas.

A proposta de Jesus vai além do projeto histórico-social. Afeta a visão e a compreensão de Deus. É religioso. Aqui também mantém atualidade e relevância única. A imagem de Deus nas culturas oscila entre dois extremos. As tradicionais alimentam a onipotência e a arbitrariedade de um Ser Supremo que os ritos administrados pelos sacerdotes apaziguam. Daí vem o poder sacerdotal até às raias do despótico. Dele o povo simples, temeroso depende e a ele se submete. A cultura moderna lançou fora tal domínio de Deus. No primeiro momento, pensou-se que foi libertação. No entanto, ao defender o ateísmo, ela gestou vida sem sentido e sociedade sem fundamento ético. O preço não foi menor. Em vez do poder clerical, outros assumiram-lhe o bastão não menos severo e ameaçador. A relevância da proposta cristã manifesta-se precisamente em contraposição aos extremos. Liberta-nos das carrancas divinas, do poder totalitário da religião ao anunciar um Deus Pai. O amor é-lhe a natureza do próprio ser. Logo tudo o que se opuser ao amor contradiz a figura do Deus cristão. Em resposta ao secularismo ocidental, oferece fundamento absoluto para a ética: Deus amor. Ela não se tece de mero consenso, laboriosamente construído entre nós, mas decorre da exigência do amor ao irmão, fundado no amor de e a Deus. O amor é a única realidade que consegue vincular internamente a liberdade sem ser opressão. Paulo formulou-o com clareza ao dizer que a única coisa que nos obriga é o dever da caridade. “A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, a não ser o amor com que deveis amar-vos uns aos outros. Porque quem ama o próximo, cumpriu a Lei” (Rm 13, 8). O anúncio de um Deus que é Pai e amor guarda enorme atualidade.

Mais profundamente, ser cristão permanece ainda mais claramente válido. Ser cristão significa seguir a Jesus Cristo, filho de Deus. Deus nunca é transitório. Não se pode crer em Deus por um tempo. Já não seria crer. Tudo que afeta a Deus é absoluto, definitivo. As mudanças culturais tocam unicamente maneiras concretas de expressar a condição cristã, mas não põem em questão o fato de ser cristão. Enquanto Deus for Deus, ser cristão, aderindo a ele na pessoa do Filho, manterá sentido. A realidade cristã se desfaria se o último sentido da realidade humana fosse o nada, o absurdo. Mas se for o Ser, o Sentido, vale a pena entregar-se àquele que é a palavra escatológica de Deus na história: Jesus Cristo.

“A fé não é racional, mas razoável”
Antes de tudo, a fé não se dependura no final de um raciocínio. Isso é filosofia. Nem se baseia na evidência de fatos constatáveis. Deixemo-lo para as ciências. A fé existe primeiro como dom de Deus. A iniciativa vem de cima. Aí está o conteúdo central da conversa de Jesus com Nicodemos. Faz-se mister nascer do alto, da água e do Espírito, para ver o Reino de Deus, isto é, para seguir a Jesus, ser cristão (Jo 3, 3). Tudo começa com o primeiro toque de Deus. J. Alfaro, nas pegadas de Santo Tomás, usa a bela expressão que a fé se inicia no coração humano por meio da “atração da Verdade primeira”. De dentro da fé, buscamos razões de credibilidade que nos permitem justificar a nós mesmos e a outros que o peçam a “razoabilidade” da fé em Cristo, do fato de ser cristão. Há duas palavras parecidas, mas de sentidos bem diferentes a respeito da reflexão em curso. A fé não é racional, mas razoável. Não é racional, como dissemos acima porque não se conclui com evidência de nenhum argumento racional. Crer ou não crer não resulta de ser inteligente ou rude, intelectual ou iletrado. A fé não se deixa reduzir totalmente às categorias da racionalidade humana de alguma filosofia. No entanto, é razoável. Significa que não renunciamos a racionalidade de ser humano para crer. Portanto, é dolorosamente falsa a afirmação repetida por alguns que se julgam heróis na fé: “creio porque é absurdo”. No absurdo, não se pode crer. A fé é entrega radical a Deus. E o cristão reconhece em Jesus o Filho, o enviado, o mensageiro escatológico de Deus. E por isso crê nele. Para tal encontra mil sinais de credibilidade, de razoabilidade por meio do testemunho dos discípulos e da longa Tradição de dois mil anos de fé cristã. As mudanças culturais pedem contínuas reinterpretações da maneira de ser cristão e do conteúdo fundamental dessa fé.

Trindade, ressurreição e parusia
Agora falarei sobre esses três pontos importantes: Trindade, ressurreição e parusia ou vinda gloriosa final de Jesus. De cada uma indicarei um elemento de razoabilidade para a cultura moderna. Para a Trindade, basta citar a bela frase de L. Boff: “No princípio está a comunhão dos Três e não a solidão do Um”. Confessar a Trindade significa, entre outras coisas, dizer que o último fundamento do ser humano é a comunhão com os outros e com o Outro, e não a solidão egoísta. Imaginem as conseqüências de asserção tão densa e profunda para uma economia, política e cultura da comunhão. A ressurreição afirma que nada do ser humano de bondade e de justiça se perde e que ele, na totalidade – isso significa corpo e alma –, viverá da e para a eternidade de Deus. Somos cidadãos eternos.

A parusia afirma a glorificação geral da história e do cosmos, passando pelo ato purificador e recriador de Deus. Tais verdades da fé cristã apontam valores que ajudam a conviver melhor com os outros seres humanos, com os animais e com a natureza. Na base da convivência, está a comunhão. Se o cristão se convence de que se origina da comunhão trinitária e anuncia-a aos outros, resulta-lhe a necessidade de antecipar nas sociedades terrestres a comunidade que será o convívio eterno. A ressurreição e a parusia mostram a raiz última e profunda do respeito na relação com as coisas. Não se trata unicamente do argumento centrado no ser humano de que o ecocídio nos destrói a nós também, mas avança-se a uma sacralidade transcendente. Base para a mística ecológica.

Fé e razão – incompatíveis ou complementares?

Tal foi o tema central da luminosa encíclica de João Paulo II Fides et ratio. Funda-se na lídima tradição tomista. Deus é o principio de ambas. A revelação é autocomunicação de Deus ao ser humano em vista de sua salvação. O fiel, que crê, estriba-se nela. Acolhe-a como fundamento último de sua existência e salvação. A razão humana é criada por Deus como a faculdade feita para a verdade. Deus é a verdade no ser e os conhecimentos humanos participam de tal verdade. Qualquer choque vem de falsa intelecção de uma das duas realidades ou de ambas. Portanto, cabe dialogar para elucidá-lo. Na imagem de João Paulo II, fé e razão são as duas asas para voarmos até Deus. Seguindo ainda o itinerário do Papa, quando fé e razão se divorciam, ambas sofrem detrimento. A fé perde a necessidade de buscar razoabilidade e razões que a ajudem a perceber que ela é um ato do ser humano. Cai facilmente em emocionalismo, fanatismo, fundamentalismo, perigosos pela inerente irracionalidade. A razão, ao afastar-se da fé e ao arvorar-se em última instância de verdade e de bem, corre o risco do desvario orgulhoso, da autonomia absoluta, que, quando se percebe frágil e ameaçada pelo erro, arrisca viver no provisório sem horizontes de transcendência. E assim abdica da dignidade de chegar à Verdade para a qual foi criada, contentando-se com o regime de verdades fracamente relativas, sem garantia de universalidade e definitividade.
Se parece tão simples a relação entre fé e razão, por que tantos problemas, não só no passado, mas até hoje? A revelação de Deus, absoluta e fundamento da fé, é transmitida no interior da cultura humana passageira e limitada. Confundir tal condição do conhecimento humano com a incapacidade de atingir a Deus abre espaço para negar qualquer valor e verdade absolutos. Do lado da fé, importa ter lucidez para distinguir aspectos relativos próprios de toda linguagem humana e a realidade absoluta do Deus que se revela a si e o desígnio salvífico que são absolutos. E do lado da ciência, cabe também distinguir em que ela tem palavra a dizer sobre aspectos equivocados da linguagem da Revelação, e nisso purificar os conhecimentos religiosos, e em que ela pretende ultrapassar o próprio horizonte de saber, querendo negar o Absoluto da revelação. Portanto, resta um só caminho: lúcido, corajoso e livre diálogo com a consciência dos limites do próprio saber e da originalidade e peculiaridade do outro.

O cristianismo no século XXI
No livro Qual o futuro do Cristianismo. São Paulo: Paulus, 2006, apontei alguns deles. Os tempos pós-modernos em que vivemos caracteriza-se por doentio presentismo, corroendo a esperança e as utopias. E como o presente favorece os países, classes e indivíduos ricos, a cultura pós-moderna acaba por ser politicamente reacionária. Conseqüentemente acentuam-se os traços hedonistas e consumistas. O cristianismo, ao encarnar-se na história humana, em profunda comunhão com as classes desprezadas, foi embalado, desde o início, por perspectiva de esperança e por traços escatológicos. E nisso alimentou a história da utopia no Ocidente (J. Servier, Histoire de l’utopie. Paris: Gallimard, 1967). Com o triunfo da Cristandade, ele julgou ilusoriamente ter realizado o projeto do Reino de Deus e sedou a ânsia utópica. Hoje vivenciamos barbáries não menores que as piores vistas na história. Implantou-se terrível situação de injustiça social para os pobres. E, mais uma vez, o cristianismo é provocado a empunhar a bandeira utópica da libertação dos pobres, da civilização do amor, da sociedade das bem-aventuranças. Tarefa hercúlea.

A secularização vem amadurecendo a ponto de estar já produzindo o fruto sazonado do secularismo ateu. Em tal situação extrema, encontra-se o cristianismo diante do dilema do silêncio da teologia da morte de Deus ou do anúncio profético de Deus. Mas não de qualquer Deus. E sim do Deus do amor. E isso continua válido onde o secularismo se impõe. Nessa linha, tem escrito com enorme pertinência o teólogo espanhol Andrés Torres Queiruga.

Paradoxalmente assistimos ao reverso do fenômeno: a explosão religiosa. Então o desafio é outro. Com as grandes tradições religiosas não-cristãs impõe-se o lúcido diálogo inter-religioso em que a clareza das próprias identidades se confronta com a positividade das alteridades de modo que no final todos saiam enriquecidos. Entre as denominações cristãs, o diálogo ecumênico faz-se ainda mais imperioso. Nalguns casos já vai avançado e em outros esbarra com problemas no campo dos ministérios e dos sacramentos. E diante da atmosfera religiosa que se carrega de tanto magnetismo difuso de denominações pentecostais e neopentecostais, Nova Era e expressões religiosas altamente exóticas, cabe ao cristianismo a tarefa de verdadeira evangelização. Anunciar, como fez no Império Romano, para dentro do pânteon a originalidade de Jesus Cristo que converte e assume de modo que surja um cristianismo com novos rostos.

Crise ética
O mundo moderno vive gigantesca crise ética que afeta grandemente a convivência humana, a política e a relação com a natureza. A proposta cristã orienta-se na linha de uma ética do cuidado (L. Boff, Saber cuidar: ética do humano - compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999) que atinge o conjunto das relações, da ética na política que se contrapõe a tsulama atual e uma ética ecológica que cria nova concepção de ser humano em face da natureza.

Na limitação do espaço, indico mais um desafio para finalizar. O cristianismo iniciou a carreira histórica sob o impacto da ordem de Jesus: “Ide, pois, fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a observar tudo quanto vos mandei. Eis que eu estou convosco, todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 19-20). E tentou fazê-lo geograficamente, ao levar a todas as regiões do mundo a mensagem já pronta. Hoje é impensável impor uma cultura às outras. Desafia-nos, portanto, a inculturação em profundidade, sobretudo nas culturas do Oriente, da África e em regiões da Ameríndia. Mas o mais grave é que se constrói no próprio Ocidente de alta tecnologia nova subjetividade devedora a nenhuma cultura exótica, mas fabricada pela tecnociência. A pretensão é plasmar artificialmente o sujeito humano por meio da biotecnologia já acessível. E isso transforma a consciência ocidental, não só daquele que será fabricado de outra maneira diferente da do amor conjugal humano, mas, sobretudo, daquele que se julga doravante ser criador e senhor também da vida humana de modo que nunca tinha sido. Próximo para não dizer igual ao do Criador. Como anunciar o evangelho à cultura da biotecnologia? Tornando mais complexa a situação de tal novo sujeito, à biotecnologia avançada soma-se a tecnologia da comunicação transformada em nova cultura. Nesse universo novo, altamente artificial e produzido pela fábrica humana, cabe ser cristão e testemunhar aquele que se fez pobre entre os pobres, pequeno entre os pequenos. Contraste fabuloso. Na sociedade por excelência do conhecimento, desafia-nos testemunhar o Logos divino, que, ao fazer-se carne e história, não optou por escrever nem por deixar obras folhudas, nem por trilhar o caminho dos poderosos e intelectuais, mas pregou na linguagem simples e pobre do povo. É o paradoxo de um Paulo anunciando no areópago o Cristo morto e ressuscitado alheio à cultura grega. No imenso palco da sociedade dos avanços tecnológicos e científicos, anunciamos o camponês e artesão da Galiléia de parábolas rurais e ribeirinhas. Eis o desafio!

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