domingo, 24 de julho de 2011

Emissoras no armário

Escultura: Vhils

Globo e SBT afirmam ter cortado cenas de beijo e de afeto entre homossexuais a pedido do público e para evitar 'exaltação'

Depois de ter tramas elogiadas por criticar a homofobia e tratar os relacionamentos homossexuais com naturalidade, as novelas da TV aberta recuaram na abordagem de personagens gays.

"Amor e Revolução" (SBT) mostrou um beijo lésbico entre Marcela (Luciana Vendramini) e Marina (Giselle Tigre). Mas a mesma cena entre Jeová (Lui Mendes) e Chico (Carlos Artur Thiré) foi vetada.

Em nota, a emissora explica ter tomado a decisão após uma pesquisa mostrar insatisfação "em relação às cenas de violência demasiada e beijo gay explícito, que incomodaram a maioria das famílias brasileiras".

A Globo não citou pesquisas para esfriar a história de "Insensato Coração", cortando cenas gravadas (veja quadro), como noticiado pela coluna "Outro Canal" nesta semana. "Nossa tramas registram a afetividade e o preconceito, mas não cabe exaltação", informou em nota.

As decisões das emissoras causaram surpresa e decepção entre defensores dos direitos dos homossexuais, especialmente no caso de "Insensato Coração", que foi considerada um marco pela denúncia da homofobia.

O próprio Ministério da Justiça, órgão responsável pela classificação indicativa, decidiu mantê-la como "não recomendada para menores de 12 anos" (ao invés de 14 anos).

A decisão, publicada no "Diário Oficial" nesta semana, cita que a novela tem "conteúdos de natureza educativa e relevância social, com reflexos positivos e respeito à diversidade".

Beijo proibido
A cautela na exibição de afeto entre homossexuais é antiga na Globo. Em 20 de dezembro de 1998, o cinegrafista Hugo Sá Peixoto e seu chefe, Amaury Trolize, foram demitidos após a exibição de um beijo entre homens em imagens que entraram ao vivo no "Fantástico".

A emissora explicou, em nota, que as demissões ocorreram na época porque eles desrespeitaram "uma recomendação". Ambos, porém, dizem que "foi um acidente".

"O proibido de ontem não é mais o de hoje", ressente-se Peixoto, que trabalhou por 26 anos na Globo. Quase 13 anos após sua saída, a mesma emissora exibiu, no "Jornal Nacional", em horário nobre, um selinho entre dois homens em reportagem sobre a última Parada Gay de São Paulo.

Especialistas ouvidos pela Folha destacaram a importância de dar visibilidade a cenas de afeto entre gays.

Deixando o politicamente correto de lado, no entanto, o que parece consensual adquire contornos controversos quando o assunto é a veiculação de imagens de beijos e carinhos entre dois homens ou duas mulheres.

Para o ator Daniel Barcelos, que beijou Raí Alves na minissérie "Mãe de Santo" (1990) da extinta TV Manchete, a polêmica é um retrocesso. "Não entendo por que dar esse passo atrás."

Questão gay evoluiu na TV, dizem estudiosos
"Será que eles vão explodir os dois, como já aconteceu com outros casais?"

A questão do antropólogo Sérgio Carrara, coordenador do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos, da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), é retórica.

Ele mesmo diz que dificilmente a Globo usará em "Insensato Coração" uma solução extravagante para eliminar o par Eduardo e Hugo, como aconteceu com o casal lésbico de "Torre de Babel", de 1998.

"Acho que é impossível, não é mais o momento. É quase inacreditável."

A Folha ouviu estudiosos -da sexualidade, da televisão, das telenovelas- sobre a representação dos homossexuais nos folhetins da TV.

Eles foram unânimes em apontar uma evolução, que acompanha e estimula mudanças na própria audiência.

"A telenovela é um espaço de debate. De um modo geral, ela puxa a sociedade", diz a professora Maria Immacolata, coordenadora do Centro de Estudos de Telenovela da Universidade de São Paulo.

Para o psiquiatra e coordenador do Ambulatório de Transtorno de Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas de São Paulo, Alexandre Saadeh, a censura às cenas de afeto gay nas novelas é um desserviço.

"Mostrar um beijo não é valorizar simplesmente os homossexuais mas promover a aceitação de uma diferença que é normal", diz.
"Ver um casal de homens ou mulheres vivendo juntos e expressando afeto não transforma ninguém em homossexual", explica Saadeh.

Por outro lado, ainda há claros sinais de conservadorismo do grande público, sinais a que as emissoras aludem -indiretamente e de forma velada- na hora de justificar as mudanças recentes nas tramas gays.

"Ao mesmo tempo em que há o reconhecimento de direitos, é uma sociedade ainda muito conservadora e que tem forças que usam a questão da homossexualidade como marco de diferença no campo político", diz Carrara.

Gays afetados e lésbicas
Dois tipos de personagem passam imunes aos vetos das TVs: gays afetados, do humor, e lésbicas.

"A relação sexual entre mulheres faz parte do repertório erótico heterossexual", diz Carrara; isso explicaria o fato de o SBT ter mostrado um beijo lésbico em "Amor e Revolução", mas censurado cena idêntica com homens.

Quanto aos gays afetados, típicos do núcleo humorístico, os especialistas afirmam que fazem parte da diversidade homossexual, mas que frequentemente são apenas veículos para a expressão de preconceitos.

"É mais fácil debochar desse tipo de personagem porque ele tem a marca da diferença", explica Saadeh.

"Incomoda mais um homossexual que não é afetado, ou tem trejeitos, porque fica mais difícil excluí-lo."

Doutor em comunicação pela Universidade do Texas e autor de livros como "A Televisão no Brasil - 50 Anos de História", Sergio Mattos diz que a sociedade está "deixando a hipocrisia de lado" e que a aceitação "é questão de tempo".

- Elisangela Roxo e Marco Aurélio Canônico
Matéria publicada na Folha de S. Paulo de hoje, reproduzida via Conteúdo Livre


Opinião 1
Novelistas exageram na temática e perdem a mão
Ricardo Feltrin, editor de entretenimento da Folha de S. Paulo

Até o final da década de 90, os gays quase sempre eram retratados de forma jocosa em novelas, seriados e minisséries. São lendários personagens em tramas de todos os horários na Globo. No SBT, a descoberta é mais recente.

Parece que foi só neste novo século que as TVs descobriram o politicamente correto e passaram a retratar minorias com mais fidelidade.

A despeito dos vários beijos gays prometidos por autores da Globo e do SBT, e que não foram exibidos por ingerência das direções das TVs, não há dúvida de que os novelistas escrevem hoje um texto mais honesto, sério e justo para personagens gays, negros e também deficientes físicos, doentes terminais etc.

O problema é que, assim como todo ano as organizações LGBT "inflam" e chutam para cima o número de pessoas presentes à passeata na Paulista, talvez os autores agora estejam "inflando" o espaço à temática e a seus personagens. O mundo real parece bem menos gay do que o que os novelistas querem.

Opinião 2
Os gays não conquistaram sua cidadania nas telenovelas
Vitor Angelo, colaboração para a Folha de S. Paulo

Falar num crescimento exagerado de personagens gays nas novelas merece cautela. Na recente reprise de "Vale Tudo", dos anos 80, havia o mordomo culto e afetado, o filho que o pai desconfiava ser homossexual e o michê que virou amante de um príncipe. Tudo muito enrustido, mas já presente.

Nos humorísticos, a chamada "bicha caricata" existe há décadas -um elemento importante para a chamada visibilidade gay.

Está desfocada a ideia de que os vetos das emissoras para baixar a bola da bandeira colorida foram provocados por uma overdose gay na TV. Eles não são nem maioria nem protagonistas das novelas. O que está em "close" não é supremacia, mas igualdade.

Diminuir a presença gay na TV torna o debate da homofobia desigual se comparado ao de questões como o racismo ou a opressão à mulher, amplamente discutidas nas tramas de novelas. A conclusão é uma só: os gays ainda não conquistaram sua cidadania plena nas telenovelas.

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