Imagem daqui
Uma gravura que reproduz um ser humano, na IDADE MÉDIA, com o rosto marcado por feridas, que representariam seu contágio pelo Bacilo de Hansen, e que as tornava portadores de um estigma: eram os "leprosos". Esta vestido com uma túnica vermelha que cobre todo o seu corpo, assim com um chapéu que o caracteriza como portador de um mal. Nessa gravura reproduzida em uma parede está um sino que era obrigatório portarem os ditos leprosos para que todos fossem avisados, nas cidades, de sua chegada. Em seguida, geralmente eram expulsos e segregados para além dos limites da cidade. Na foto aparece um desses sinos que esperamos nunca mais tenhamos de ouvir em nossas mentes, ou seja que possamos vencer e inverter o temor de sermos tocados por outros seres humanos, principalmente os que denominarmos de "malditos".
LEPRA, a palavra foi banida. O preconceito ainda nos habita e se reorganiza. O contágio torna o Brasil o segundo do Mundo globalizado e hipercapitalista, em suas múltiplas convulsões sócio-econômicas. Somos quem sabe também os campeões nos neo-preconceitos?
Houve um tempo em que estar "leproso" nos levava para fora dos muros das cidades. Estivemos recentemente relembrando estas formas instituídas de segregação sanitária e biopolítica.
No dia 29 de janeiro foi comemorado o Dia internacional de Combate à Hanseníase. Nome em homenagem ao descobridor do bacilo: Hansen. Eis o novo termo que devemos utilizar. Embora ao pesquisar em língua espanhola o termo Lepra e Leprosos ainda persista. Minimamente nas notícias e na mídia. Bem como ainda habita e prolifera no âmago de muitos inconscientes.
Ao ser afetado pelas inúmeras matérias que difundi pelo Twitter e pelo Facebook, principalmente por uma, me lembrei de como eram tratados estes sujeitos hansenianos lá em MG. Na cidade próxima a minha, Três Corações, fora de sua periferia, existiu um "leprosário". Um asilo. Era de lá que chegavam as minhas primeiras memórias sobre a hanseníase.
De lá vinham as cartas, de lá vinham essas missivas que deveriam ser queimadas após sua leitura. Eram contagiosas. Elas traziam os relatos breves de pessoas lá internadas, com letra de forma batida a máquina, e que pediam (ou melhor, suplicavam) a ajuda financeira e outras caridades para os que lá "apodreciam". Esta é a imagem que nos ensinavam à época, quiçá uns 40, 50 ou mais anos atrás.
Estes velhos, amedrontadores, contagiantes e, segregadamente, miseráveis retornam hoje à minha mente. O que me trouxe essa memória? Trouxe-me o quanto, apesar dos muitos anos, ainda temos um modelo de medo e repulsa associado às doenças consideradas "malditas". O temor que se projete em um corpo anômalo, anormal, marginalizado e doentio. Uma vida nua.
Uma vida nua que foi aplicada, por exemplo, à existência de um homem no Mato Grosso. O idoso José Garcia da Cruz, de 106 anos, viveu essa realidade. “Temos registros da chegada dele no São Julião em 1941, poucos dias depois da inauguração do local. Ele foi o 6º paciente a ser internado e vive aqui há pouco mais de 70 anos”, confirma o diretor do Hospital São Julião. Setenta anos de reclusão e isolamento para o “bem” da sociedade. Seria ele um Lázaro que resiste à Vida?
Ele me lembrou, também, das cartas contagiantes de MG: “Quando eu ia ao mercado era um problema, principalmente na hora de pagar, porque as pessoas não queriam pegar o dinheiro porque tinham medo de encostar em mim. Elas tinham medo de pegar a doença”, contou ele. A reportagem finaliza com um alívio para as boas consciências: “Em 2007, Cruz passou a receber uma pensão especial vitalícia do governo federal. Ele foi o primeiro brasileiro a receber o benefício”.
Por isso temos de nos indagar com mais seriedade ética e responsabilidade bioética das novas práticas de internamento e reclusão. Voltamos aos séculos anteriores, ou pior regredimos à época da Nau dos Insesatos? Que tempo e era é essa que estamos imersos até o pescoço?
Estamos no tempo dos que biopoliticamente se tornaram motivo de "internações compulsórias e involuntárias". O leprosários estão sendo protagonizados hoje, institucionalmente, pelos asilos, pelas comunidades de tratamento ou pelos hospitais que deverão internar e re-internar a nova epidemia: o Crack.
Tomando como plataforma política o Estado e a cidade de São Paulo resolveram tratar uma de suas muitas ‘’chagas’’ sociais: a Cracolândia. Esqueceram, porém, que, como no Pinheirinho, apesar da miséria ou da pobreza, estavam lá e ali aglutinados muitos corpos humanos contagiantes. Para além de suas desfiliações sociais eram e são apenas seres humanos...
Estes corpos e vidas nuas não transmitem hoje apenas doenças infectocontagiosas. Eles transmitem ao nosso povo, dito maioria, e seus governantes um sentimento profundo de repulsa misturado com medo. E nessa hora o melhor é expulsá-los do coração da cidade...
São os excluídos a serem incluídos pelo seu abrigamento, isolamento e ‘’tratamento humanizado’’. Mesmo que precisemos usar nossas forças policiais e a velha repressão dos tempos da Ditadura...
Quantas vezes pensamos que estas ações repressivas são a melhor forma de lidar e resolver estas chagas que nós próprios alimentamos? A aprovação de uma internação compulsória tornou-se estatisticamente um desejo, com toda certeza, de uma maioria, diz o DataFolha de mais de 54%. Mas anunciaram como uma maioria que: “No Brasil, 90% aprovam internação involuntária de viciados...”.
Isso mesmo: viciados. Era assim também que lá nos anos 60 estereotipavam quem usasse cabelos compridos, falasse em paz, rock ou fumasse maconha, caminhando e cantando dentro de alguma calça jeans. Devem ser agora estes o motivo de algum saudosismo ou desejo de torná-los os ‘’bichos de sete cabeças’’, como o foi o jovem Carrano. E a Rita Lee tem de se despedir deles rumo a uma nova ‘’acareação’’ com as novas formas de reprimir.
Nem mesmo atualizam o termo para dependências químicas ou a drogadição. São os perniciosos fumantes de crack ou de outras rocks (sem roll) que classificamos higienisticamente, são os neo-portadores de um velho estigma: são os novos malditos, os novos leprosos...
Vamos então aplaudir as iniciativas governamentais de erradicação das drogas. Mas, por favor, não tomemos a máxima popular de "cortar o mal pela raiz". Assim pensavam os velhos fascistas e alguns nacional socialistas. A erradicação dessa nova "epidemia" não é a eliminação dos corpos contagiados por ela. Muito menos a criação de novos mini-cômios.
Levamos alguns séculos para compreender o quanto estigmatizamos os que foram chamados de leprosos. Quantos séculos serão necessários para entender que os "viciados" são uma questão da saúde, das políticas públicas, dos direitos humanos e, principalmente, hoje, das indústrias farmacêuticas e das biotecnologias. Podemos dizer que a verdadeira maioria dos dependentes é sim uma questão da Bioética.
Ao buscarmos “curas" radicais, negando a autonomia e os direitos fundamentais do sujeito, nos mostra a História que criamos quase sempre os Estados de Exceção, os Campos de concentração ou extermínio, os Manicômios, os Leprosários, os Asilos e todas as outras formas institucionalizadas de disciplina ou controle dos corpos humanos.
Os discursos competentes que elaboramos datam de muito tempo atrás. Algumas pessoas colocam ainda estes "viciados" como perturbação da tranquilidade comercial e econômica das cidades. Estes ‘’desocupados’’ devem desocupar os territórios produtivos hipercapitalizados. E, se possível devem ir para campo dos refugiados, afinal eles são uma "mancha" improdutiva para a Sociedade do consumo na Idade Mídia.
Vamos, então, como na época dos tratamentos "morais" e "asilares", tão bem dissecados e estudados em sua genealogia por Foucault, providenciar novos ‘’panópticos’’ que possam abrigar essa gente, ou essa ralé (segundo a visão do programa Mulheres Ricas). E, talvez, isolando-os também nos livramos de suas incomodas presenças em nossas cidades, ou será que apenas em nossos “ castelos”?
EM TEMPO, lhes anuncio que o meu corpo, aparentemente não contagiante, foi submetido recentemente a uma biópsia, em meu braço esquerdo, no trajeto do nervo cubital, para um possível diagnóstico diferencial com a hanseníase (uma lembrança/estigma da Saúde Mental).
Se me for dado o positivo serei eu também mais um proscrito? Em qual asilo encontrarei, longe de todos vocês, a proteção para o meu maior risco: ser tão mortal, tão carnal, tão vivo, tão frágil, tão desassossegado e tão humanamente contagiante como todos nós?
E nossos prédios ou nossos Titanics modernos também caem ou afundam... Os muros invisíveis é que se reconstroem e reinstitucionalizam, incessantemente.
- Jorge Márcio Pereira de Andrade
Médico Psiquiatra; formado em Medicina, com especialização em Psiquiatria, exercendo atividades no campo da Saúde Mental, em Psicanálise e Psicoterapia, tendo como parte de sua formação a Análise Institucional. Site, blog, contato
Publicado originalmente aqui (aproveite para ver referências bibliográficas e indicações de leitura) Tweet
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