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"Com o tema da identidade, dois destaques do pensamento moderno, a saber, a subjetividade e a historicidade ingressaram na questão antropológica. As homossexualidades, no modo como são experimentadas e pensadas hoje, se colocam no coração desta virada, enquanto percursos existenciais pessoais de descoberta da própria identidade, da qual constituem parte integrante e imprescindível", escreve Christian Albini, é graduado em Ciências Políticas pela Università degli studi di Milano. Participa ativamente da paróquia de San Giacomo em Crema e faz parte do Conselho Pastoral da Diocese de Crema. É casado, pai de dois filhos. È professor de Ciências Religiosas na escola superior. Fez parte da redação da revista jesuíta Aggiornamenti Sociali de Milão. Entre outros livros de Christian Albini, citamos, Quale cristianesimo in una società globalizzata? Milão: Edizione Paoline.
O artigo foi publicado na revista Mosaico di Pace, de maio de 2009. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo.
A posição do magistério católico sobre a homossexualidade deriva de uma antropologia teológica apresentada pela Carta Homossexualitatis problema da Congregação para a Doutrina da Fé (1º de outubro de 1986). Já que Deus cria o homem à sua imagem e semelhança, como homem e mulher, as criaturas são chamadas a respeitar, na complementaridade dos sexos, a unidade interior do Criador. Marido e mulher cooperam com ele na transmissão da vida mediante a doação conjugal recíproca (n. 6).
Com base na Palavra de Deus, a teologia cristã atribui ao matrimônio entre homem e mulher e à geração dos filhos um significado altíssimo: mediante o dom do Espírito, o ágape divino penetra na história do Eros humano suscitando o mesmo dinamismo amoroso pelo qual vive a Trindade. O Espírito plasma a relação conjugal tornando possível o dom do eu, o acolhimento do tu e a comunhão do nós. A aproximação magisterial à teologia bíblica ressente-se, todavia, de uma corrente do pensamento grego baseada na finalidade das funções biológicas que as “fixa” num sistema sociocultural, deduzindo uma norma comum e perene. É uma espécie de “bioteologia” que investe, direta e pesadamente, de significado religioso a realidade biológica do sexo aberto à procriação. Nesta perspectiva, existe uma ordem universal e imutável da criação racionalmente reconhecível, inscrita por Deus na natureza, a qual determina a concepção da pessoa humana. Trata-se de uma concepção estática por natureza.
Que acolhimento?
O horizonte interpretativo bioteológico produz uma antropologia exclusiva ante a homossexualidade. O valor do matrimônio é afirmado criando uma espécie de dicotomia heterossexual/homossexual que pode ser reconduzida aos pares positivo/negativo, bem/mal. Não há uma boa relação afetivo-sexual abençoada por Deus fora do casal heterossexual desposado. As homossexualidades são, por isso, patológicas, são desvios com pesadas conseqüências em termos de desvalorização da pessoa e de violência psicológica. A pessoa homossexual deveria aceitar-se a si mesma como carente de algo.
Pode-se pensar numa antropologia cristã inclusiva que, sem tirar nada ao bem do matrimônio, também reconheça um bem nas relações homossexuais?
A resposta depende do confronto com a antropologia moderna, baseada na busca e definição da própria identidade, ou seja, no processo subjetivo de reconhecimento e realização de si. Com o tema da identidade, dois destaques do pensamento moderno, a saber, a subjetividade e a historicidade ingressaram na questão antropológica.
As homossexualidades, no modo como são experimentadas e pensadas hoje, se colocam no coração desta virada, enquanto percursos existenciais pessoais de descoberta da própria identidade, da qual constituem parte integrante e imprescindível.
Pode-se chegar a uma antropologia inclusiva através de um conceito de natureza humana menos estático, não redutível a uma essência bioteológica, mas da qual também faça parte a descoberta da própria identidade. Uma reflexão do gênero pode permitir, com as palavras de Bonhoeffer na "Ética", “recuperar o conceito de natural à luz do Evangelho”.
No debate teológico, uma revisão do conceito de natureza é requerida por mais vozes nos termos de uma mediação cultural: o modelo “naturalista”, que deduz a ética de uma ordem intrínseca ao organismo humano, é reconhecido como insuficiente ante a hodierna condição humana. É necessário superar o esquema ingênuo que opõe natureza e cultura. A cultura é a via obrigatória de acesso à natureza. A pura razão não basta para se chegar a um sistema de todo objetivo, absoluto, universal e imutável.
É necessária uma reflexão antropológica que integre a dimensão subjetiva como constitutiva e não como acessória e, de outro lado, tome em justa consideração o papel da experiência e do tecido relacional no qual a mesma se realiza. A subjetividade é um horizonte do saber além do qual não se pode ir. Não se pode dizer “o que são” o homem e a realidade, a não ser passando através da mediação originária da prática. Somente partindo de uma exploração fenomenológica, isto é, de uma acurada descrição dos múltiplos modos pelos quais se apresentam a vida, as inclinações sensíveis e sua relação com a vontade, se pode colocar a questão fundamental de “o que é”, aquela que os filósofos chamam de ontologia.
Nesta ótica, Jesus não é aquele que prescreveu um uso do corpo segundo critérios de funcionalismo biológico, mas aquele que no dom do Espírito vivifica as nossas relações inserindo-as na comunhão trinitária: o homem e a mulher conformados a Cristo (nexo entre antropologia e cristologia). “O homem “à imagem” de Deus – escreve Franco Giulio Brambilla – não indica tanto uma “natureza” criada (alma, espiritualidade), ou alguma “característica” presente no homem (as faculdades da alma), como o disse com frequência a tradição, mas, acima de tudo, a identidade sintética do homem enquanto ela se recebe dentro das relações que a constituem e se autodetermina através de seu livre agir. O homem como liberdade criada é relação, no duplo sentido que ele é constituído na relação ao outro e se autodetermina querendo aquele sentido que lhe vem ao encontro como digno de ser escolhido e pelo qual esforçar-se” O Espírito habita no coração da liberdade como relação, para que se torne história da comunhão.
Para Brambilla, a reflexão teológica sobre a identidade é parte de uma antropologia fundamental referida a uma fenomenologia da experiência humana, entendida como um saber da consciência através das formas práticas do agir (em sua validade ética e religiosa). A liberdade se dá num drama, ou seja, numa ação na qual também vai sempre algo da própria identidade. Esta distensão “dramática” da liberdade pertence à sua constituição originária, porque ela só pode chegar à própria realização na distensão do tempo. Brambilla se fundamenta na pesquisa de Paul Ricoeur, para quem a identidade do eu é instituída na circularidade entre a ação e a consciência (volitiva e cognoscitiva) do sujeito. O nexo entre estes dois pólos reside na noção de identidade narrativa: a narração constitui o momento de síntese das experiências vividas e das atribuições de sentido com as quais as interpretamos. Descubro minha identidade na narração de mim mesmo e de minha história.
O ponto emergente é mostrar que as homossexualidades entram nesta história da liberdade habitada pelo Espírito como possíveis variantes e não como desvios, porém como modos de exprimir a comunhão trinitária. Trata-se de narrar o vivido homossexual não enquanto uso “de-gênere” do corpo, como um ato separável da pessoa, como elemento estranho e acidental, mas enquanto entrelaçamento de corporeidade, de significados simbólicos, de dinamismos afetivos e espirituais. “Em toda reflexão teológica sobre a identidade humana é necessário manter conectados o biológico, o simbólico e o social como interpretativos do historicamente colocado. Mas, esta primeira tese não pode ser desligada da segunda tese, inevitável para uma reflexão que queira ser teológica: a relação com Deus confirma nossa identidade e vice-versa” (Stella Morra). As homossexualidades podem ser vistas, assim, como manifestações da interioridade autêntica que, numa experiência cristã, se dispõe a ser habitada pelo Espírito.
Fonte: IHU - 29/5/2009; via site do Diversidade Católica, aqui Tweet
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