segunda-feira, 4 de junho de 2012

Fé cristã e diversidade sexual: algumas reflexões

Foto: Hugo Nogueira


Transcrevemos abaixo a fala de uma integrante do Diversidade Católica e uma das moderadoras do blog, Cristiana Serra, no nosso evento de ontem. A quem esteve com a gente, nossa mais profunda gratidão pela presença e pelo tempo que partilhamos juntos. A quem não pôde estar, vamos postar, ao longo dos próximos dias, alguns conteúdos relacionados ao evento, para poder dividir com todo mundo um pouco do que aconteceu.

Ao contrário dos meus colegas de mesa, não sou teóloga nem religiosa. Sou uma católica leiga, e é desse ponto de vista que gostaria de compartilhar algumas reflexões com vocês aqui, hoje.

Hoje é dia da Santíssima Trindade. A crença cristã na Trindade fala muito sobre a forma como nós, na longa tradição judaico-cristã, chegamos a expressar nossa intuição mais profunda a respeito de Deus. Nós acreditamos em um Deus que é Pai, que ama o Filho, que é amado pelo Pai, e o Espírito Santo é o veículo desse amor. Por isso a gente fala que Deus é Amor; mas, quando dizemos que Deus é amor, que Ele não poderia fazer outra coisas senão amar, isso quer dizer que o mais importante na nossa relação com Ele não é o que a gente pensa sobre Ele.

Jesus não veio fazer tratados ou teorias sobre Deus. Ele encarnou esse amor. Ele se aproximava das pessoas com espírito de total entrega, total abertura, a serviço das pessoas. E isso é um pouco chocante pra gente, pensar num Deus que se ajoelha na nossa frente e nos lava os pés.

Porque a gente tem uma tentação constante que é o desejo de poder Para Mim. Eu ganho, eu fico com isso pra mim, e você fica sem, azar o seu. Tem que ter sempre um que ganha e outro que perde. O efeito disso pras sociedades é que a gente cria, coletivamente, estruturas de poder baseadas na exclusão: cria normas e, se não se enquadrar, fora. É um mecanismo de controle muito eficiente, baseado sempre na ameaça de exclusão.

A mensagem revolucionária de Cristo foi derrubar esses muros de dentro e fora. Quando ele fala que nós somos irmãos que têm de ser amar e servir uns aos outros, ele nos torna todos iguais, sem ninguém em cima e outro embaixo, sem gente dentro e gente fora. As estruturas humanas são verticais. A proposta de Jesus é horizontal: todo mundo junto. Quando derruba muros, isso se torna muito perigoso, porque poe abaixo as estruturas de poder humanas. Isso é insuportável, e a gente escolhe: isso a gente não quer. E manda Cristo pra cruz. Porque ele ousou nos colocar todos como iguais, como irmãos. E a palavra-chave aqui é fraternidade. Guardem essa palavra, que é importante, e vamos voltar a ela já, já.

Daí a gente passa 2 mil anos divididos entre o quase entendimento que a gente tem dessa lógica nova do serviço, de lavar os pés do outro, de um Deus que diz SIM pra gente a ponto de respeitar a nossa escolha quando a gente diz pra ele Não, e coloca ele pra fora; ou tentar enquadrar essa história na lógica do nosso poder humano: então, Deus mandou seu Filho inocente pra morrer por nós. Então, temos uma dívida impagável com ele. E, se ele se sacrificou a esse ponto por nós, a gente tem um Deus que tem o direito de cobrar também da gente um sacrifício. E aí a gente deixa de ter um Deus que se entrega inteiro para nós tal como somos, de graça, sem a gente ter feito nada para merecer isso, e que quer acima de tudo ver a gente feliz AGORA, pra ter um Deus que nos fiscaliza e promete a nossa felicidade pra depois, SE a gente se comportar direitinho.

Então a gente tem, de um lado, a vivência de um Deus que ama a gente de graça, inteiro - e isso é inebriante, é arrebatador, é uma alegria imensa se saber amado assim, do jeito que a gente é. E do outro a gente tem um Deus que impõe uma lista de condições, e uma receita: se você fizer isso você está no bom caminho, tá salvo, tá dentro. Se não fizer, está fora.

A história da Igreja – e quando falo Igreja falo todo o povo de Deus, todos os batizados, todo o corpo de Cristo, do qual todos nós somos membros – é a história dessa divisão. Você vê nomes como Francisco de Assis, como Inácio de Loyola, como Hélder Camara, como Zilda Arns, como Dorothy Stang, como James Alison, como Marcio Retamero, que estão na rua, que estão diante dos seus irmãos e olham para eles não com um monte de afirmações e preconcepções de certo e errado, tentando enquadrar as pessoas nos seus próprios conceitos de bom e mau, mas sim como pessoas que antes de mais nada olham para o outro e perguntam: em que eu posso te ajudar? Como eu posso te servir? E você tem o contrário, o olhar de quem julga e condena de acordo com padrões preconcebidos e quando olha o outro, em vez de ver um irmão amado, mede a pessoa com os seus preconceitos de bom e mau, de certo e errado.

Agora vejam só: quando eu falo isso, parece que eu estou fazendo o que? Dividindo as pessoas em dois grupos: a galera que entendeu, e os que não entenderam. Os que estão no caminho certo, e os que estão no caminho errado. Naturalmente, eu estou do lado que entendeu, o lado certo, claro. Eu, que estou pensando nisso tudo, também faço isso, também caio na mesma esparrela. Por quê? Porque a lógica do nosso pensamento é a comparação, é a criação de dicotomias bom x mau, a divisão em dois lados. Dentro e fora. Incluídos e excluídos. É um aprendizado individual superar essa lógica e simplesmente se abrir para o encontro com o outro. Eu sou eu, você é você e vamos nos conhecer, sem julgamentos, sem categorizações, como pessoas diferentes uma da outra e únicas que somos.

E essas duas lógicas vão sempre conviver dentro da gente, o que cria uma tensão. E a gente vive nessa tensão, entre a abertura para o encontro e para o novo e o fechamento nas preconcepções que a gente usa para organizar o nosso mundo.

Coletivamente também é assim: nas sociedades e nas instituições. Na Igreja é assim. E é preciso entender isso porque hoje em dia existe uma tendência a dizer que gays e religiosos são incompatíveis. Assim como muitos fundamentalistas julgam e condenam os gays, muitos gays julgam e condenam os religiosos.

Ou não, a gente pode dizer simplesmente que a Igreja condena os gays e ponto, mas isso cria alguns problemas. Primeiro: a Igreja não é só a hierarquia. Somos todos nós. Então, qual Igreja condena os gays? O padre que destitui um rapaz das suas atribuições pastorais na paróquia porque ele contou que é gay? Ou o padre que sabe que um cara é gay e mesmo assim o indica para ser Ministro da Eucaristia e lidera da Pastoral da Liturgia da paróquia? Que Igreja condena os gays? O catecismo? Qual parte? A parte que diz que os gays devem ser respeitados como pessoas que são e acolhidos sem discriminação? A parte que diz que a gente tem que ser casto? Mas tem uma parte que diz que "ser casto" é viver a sua vida sexual e afetiva de maneira ordenada, de abertura e encontro com o outro. Ou a parte que, dentro daquela lógica do sacrifício, fala para a gente pegar a nossa cruz, e isso quer dizer entender AQUI, especificamente no caso dos gays, "castidade" como "celibato"? A parte que diz “ame o pecador, mas odeie o pecado” (que é uma coisa meio difícil de entender, porque como é que você separa a pessoa daquilo que ela faz? Cristo é amor. Cristo é ato, é aquilo que ele faz. Deus é Verbo, é ação. Como é que a gente separa quem a gente é, abstratamente, daquilo que a gente faz? Mas isso é outra história)? Qual Igreja condena os gays? O fundamentalista que berra "eu te amo, mas, demônio, sai desse corpo que não te pertence"? Ou a comunidade da minha paróquia, que me recebe junto com a minha mulher de braços abertos, e não dá a mínima se a gente é um casal?

Que Igreja condena os gays? O gay que sabe quem é e se aceita como é, porque se sabe amado e aceito por Deus, ou o que vive um sofrimento dilacerante, porque se sente julgado e excluído pelo próprio Pai?

O que eu quero dizer é que existe um jogo muito complexo de forças em ação nesse corpo coletivo que é a Igreja. Existem pessoas, grupos, religiosos, comunidades, iniciativas, de inclusão de gays. E existem pessoas, grupos, religiosos, leigos, que excluem os gays. E isso está muito além do que a gente escolhe ouvir dos pronunciamentos e dos documentos oficiais. Porque a gente escolhe o que vai escutar dos pronunciamentos e documentos oficiais, também, viu, gente? Tem um enorme recorte aí, a serviço das nossas próprias preconcepções do que é a Igreja e de como ela funciona. Mas a verdade é que, mesmo no que é oficial, com chancela do Vaticano e tal, existem as falas de exclusão e as de inclusão.

Este ano está fazendo 50 anos da convocação do Concílio Vaticano II, que aconteceu entre 1962 e 1965. Esse Concílio representou uma tentativa de transformação da Igreja. Você tinha uma Igreja cheia de vícios de 1950 anos de história, ao longo da qual ela se misturou muito com os poderes mundanos. Houve um longo momento da história em que o Estado, no Ocidente, desapareceu, ficou todo fragmentado, e a Igreja virou a fonte de organização da sociedade. Ela passou a ser o Estado. Mas aí, o tempo passou, as mudanças vieram, o Estado surgiu de novo, quer dizer, voltou a haver uma estrutura pública e, curiosamente, passou a se entender que essa estrutura pública tinha que cuidar e zelar pelo bem-estar dos cidadãos, prestar serviços. Onde antes você tinha os poderosos explorando o povo, e se você era poderoso, muito bem; se você era povo, dane-se – você passou a ter aos poucos, cada vez mais, a noção de cidadania, de direitos para todos. Antes quem tinha direitos era um grupinho, uma elite; aos poucos cada vez mais gente passou a ter direitos: primeiro, os de determinadas linhagens (os nobres); depois, os que tinham dinheiro; depois, os direitos foram estendidos a todos os homens brancos acima de determinada idade; depois, às mulheres, aos negros, e também as crianças e jovens e velhos começaram também a ter seus direitos assegurados e protegidos. Mas isso é uma novidade muito recente na história, coisa de 2-3 séculos para cá. A gente hoje vive num país que diz que todo mundo é igual perante a lei, todo mundo é cidadão, e esquece que nem sempre foi assim.

Então, o Concílio Vaticano II foi uma tentativa da Igreja de entender e se adaptar a esse mundo. De se perguntar: tá, então neste novo mundo, a gente entra onde? Pra que a gente serve? E daí saíram duas conclusões muito importantes: primeiro, a noção de que, para além da imposição de uma lista de certos e errados, o que cada pessoa tem de mais importante, o que torna todo mundo igual, igualmente digno, o que cria uma dignidade humana que é inerente a todas as pessoas e faz com que todas as pessoas sejam portadoras dos mesmos direitos, é a liberdade de consciência.

“A consciência é o núcleo mais secreto e o sacrário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser”, diz o parágrafo 16 da Constituição Dogmática Gaudium et Spes. Isso significa que qualquer norma deve ser colocada diante da consciência de cada um. E cada um de nós é responsável por estar atento à própria consciência, e não ir contra ela.

Os documentos do Concílio dizem que a liberdade de consciência, a liberdade de crença, é a mais importante de todas porque é a base de todas as outras e de todos os direitos. E daí veio a segunda conclusão muito importante do Concílio: se existe liberdade de consciência, a gente não tem uma única maneira de perceber a verdade, então não existe só um certo ou só um errado. Porque a verdade, ou o sagrado, não tem como ser inteiramente apreendida por um ser humano ou um grupo. Não existe mais o dono da verdade, e ou você está com ele, ou está contra ele. Ou está do lado certo ou do lado errado, ou dentro, ou fora. Existe um monte de gente e grupos, cada um dentro da sua percepção inevitavelmente limitada da realidade contando pros outros o que está podendo ver dali de onde está.

Como os cegos apalpando o elefante, vocês conhecem essa história? Um pegava no rabo e dizia “ah, o elefante é um animal curto e roliço como um graveto fino”. O outro pegava na tromba e dizia: “Você está louco, o elefante é um animal cilíndrico e flexível, e grosso como um grande galho de árvore”. E um terceiro, apalpando o pé do elefante, exclamava “Vocês estão errados, o elefante é rígido e ereto como um tronco de árvore”.

Então, o Concílio vem falar no pluralismo da sociedade em que a gente vive, e em como é imprescindível a Igreja respeitar as diferenças e se colocar aberta para o diálogo com a diversidade. Vale a pena ler documentos como a Gaudium et Spes ou a Dignitatis Humanae. São lindas.

Aliás, está justamente aí a fundamentação do necessário laicismo do Estado, pois só um Estado Laico pode assegurar essas liberdades individuais mais fundamentais e o direito à diferença. E a própria Igreja, em documentos como esses dois que acabo de citar, reconhece a necessidade imperiosa do Estado Laico.

E aí a gente lê esses documentos de 50 anos atrás e pergunta: onde está essa Igreja? Por que salta muito aos olhos a dificuldade da instituição em colocar essa postura de diálogo aberto em prática, essa maneira de perceber o mundo e as pessoas de uma maneira verdadeiramente fraterna. E olha aí a palavra fraternidade de novo: porque, se você tem um mundo de pessoas igualmente livres nas suas consciências, você tem um mundo de irmãos, que vivem as suas histórias e procuram se ajudar na busca honesta da verdade, cada um com a contribuição única do seu próprio olhar.

E onde está essa Igreja que dialoga? Ela está mudando. Porque é muita gente, é uma estrutura muito pesada, e todas as mudanças ao longo de 2 mil anos de história vieram assim: da mudança das bases, da mentalidade dessa multidão, para o alto. O alto, onde está o poder, resiste, claro, então muda devagar.  Por isso é responsabilidade de cada um de nós estar atento à própria consciência, porque é nesse conjunto da base, de todas as nossas consciências juntas, que sopra o Espírito da Verdade. Porque só juntos a gente enxerga o elefante, e quanto mais forem as pessoas de olhos abertos, melhor visão a gente tem desse elefante. E isso é diálogo. O diálogo está acontecendo aqui, agora. O diálogo acontece quando as pessoas se encontram. Se a gente divide o mundo em estereótipos, seja o estereótipo do gay, seja o estereótipo do religioso, do fundamentalista, não tem pessoas, não tem encontro, não tem diálogo. O encontro e o diálogo acontecem entre pessoas.

Coletivamente, nós, gays, temos uma grande contribuição para dar à Igreja e ao mundo: quando, indo contra todas as normas e preconceitos, a gente está tão em contato com a nossa consciência e com quem a gente é que sabe que não pode se esconder da gente mesmo e tem que ser quem a gente é, a gente está em contato com a nossa verdade. E a nossa verdade mais profunda é um pedacinho da verdade maior. É o nosso pedacinho do elefante.

O Evangelho diz “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. E isso, essa honestidade profunda com a verdade da nossa consciência, é uma dádiva. Essa é a nossa contribuição, é dizer “olha, mesmo contra todas as dificuldades, você tem que ser verdadeiro com você mesmo, porque isso é libertador. Eu estou conseguindo, viu? Experimenta. Isso derruba muros. Incomoda, porque a emancipação exige responsabilidade e maturidade, e é difícil, mas também é tão profundamente libertador”. Essa é a dádiva que os gays oferecem para o mundo.

Domingo passado foi Pentecostes, a festa do Espírito Santo. Que o Espírito da Verdade e do Amor nos inspire para o encontro e a abertura com os irmãos. E que nós possamos, gay e não-gays, religiosos e não religiosos, cada vez mais assumir as nossas responsabilidades perante nós mesmos e nossas consciências, e trabalhar por um mundo melhor, em que a gente possa ser mais irmãos.

Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.

4 comentários:

Jônatas disse...

Parabéns, Cris! Você é especial!

Cris Serra disse...

Obrigada pelas suas palavras, Jônatas. Sei não, acho que sou tão especial qto todo mundo, mas é sempre tão bom receber carinho... obrigada mesmo. :-)

Jônatas disse...

Todo mundo tem suas "especialidades", mas a sua é rara.

Equipe Diversidade Católica disse...

Awn, seu lindo. Rs
Beijos.
Cris
Equipe Diversidade Católica

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