Foto: Hugo Nogueira
Transcrevemos abaixo a fala de uma integrante do Diversidade Católica e uma das moderadoras do blog, Cristiana Serra, no nosso evento de ontem. A quem esteve com a gente, nossa mais profunda gratidão pela presença e pelo tempo que partilhamos juntos. A quem não pôde estar, vamos postar, ao longo dos próximos dias, alguns conteúdos relacionados ao evento, para poder dividir com todo mundo um pouco do que aconteceu.
Ao contrário dos meus colegas de mesa, não sou teóloga nem religiosa. Sou uma católica leiga, e é desse ponto de vista que gostaria de compartilhar algumas reflexões com vocês aqui, hoje.
Hoje é dia da Santíssima Trindade. A crença cristã na
Trindade fala muito sobre a forma como nós, na longa tradição judaico-cristã, chegamos
a expressar nossa intuição mais profunda a respeito de Deus. Nós acreditamos em um Deus que é Pai, que ama
o Filho, que é amado pelo Pai, e o Espírito Santo é o veículo desse amor. Por
isso a gente fala que Deus é Amor; mas, quando dizemos que Deus é amor, que Ele
não poderia fazer outra coisas senão amar, isso quer dizer que o mais
importante na nossa relação com Ele não é o que a gente pensa sobre Ele.
Jesus não veio fazer tratados ou teorias sobre Deus. Ele
encarnou esse amor. Ele se aproximava das pessoas com espírito de total
entrega, total abertura, a serviço das pessoas. E isso é um pouco chocante pra
gente, pensar num Deus que se ajoelha na nossa frente e nos lava os pés.
Porque a gente tem uma tentação constante que é o desejo de
poder Para Mim. Eu ganho, eu fico com isso pra mim, e você fica sem, azar o
seu. Tem que ter sempre um que ganha e outro que perde. O efeito disso pras
sociedades é que a gente cria, coletivamente, estruturas de poder baseadas na
exclusão: cria normas e, se não se enquadrar, fora. É um mecanismo de controle
muito eficiente, baseado sempre na ameaça de exclusão.
A mensagem revolucionária de Cristo foi derrubar esses muros
de dentro e fora. Quando ele fala que nós somos irmãos que têm de ser amar e
servir uns aos outros, ele nos torna todos iguais, sem ninguém em cima e outro
embaixo, sem gente dentro e gente fora. As estruturas humanas são verticais. A
proposta de Jesus é horizontal: todo mundo junto. Quando derruba muros, isso se
torna muito perigoso, porque poe abaixo as estruturas de poder humanas. Isso é
insuportável, e a gente escolhe: isso a gente não quer. E manda Cristo pra
cruz. Porque ele ousou nos colocar todos como iguais, como irmãos. E a
palavra-chave aqui é fraternidade. Guardem essa palavra, que é importante, e
vamos voltar a ela já, já.
Daí a gente passa 2 mil anos divididos entre o quase entendimento que a gente tem dessa
lógica nova do serviço, de lavar os pés do outro, de um Deus que diz SIM pra gente a ponto
de respeitar a nossa escolha quando a gente diz pra ele Não, e coloca ele pra
fora; ou tentar enquadrar essa história na lógica do nosso poder humano: então,
Deus mandou seu Filho inocente pra morrer por nós. Então, temos uma dívida
impagável com ele. E, se ele se sacrificou a esse ponto por nós, a gente tem um
Deus que tem o direito de cobrar também da gente um sacrifício. E aí a gente
deixa de ter um Deus que se entrega inteiro para nós tal como somos, de graça,
sem a gente ter feito nada para merecer isso, e que quer acima de tudo ver a
gente feliz AGORA, pra ter um Deus que nos fiscaliza e promete a nossa
felicidade pra depois, SE a gente se comportar direitinho.
Então a gente tem, de um lado, a vivência de um Deus que ama
a gente de graça, inteiro - e isso é inebriante, é arrebatador, é uma alegria
imensa se saber amado assim, do jeito que a gente é. E do outro a gente tem um
Deus que impõe uma lista de condições, e uma receita: se você fizer isso você
está no bom caminho, tá salvo, tá dentro. Se não fizer, está fora.
A história da Igreja – e quando falo Igreja falo todo o povo
de Deus, todos os batizados, todo o corpo de Cristo, do qual todos nós somos
membros – é a história dessa divisão. Você vê nomes como Francisco de Assis,
como Inácio de Loyola, como Hélder Camara, como Zilda Arns, como Dorothy Stang,
como James Alison, como Marcio Retamero, que estão na rua, que estão diante dos
seus irmãos e olham para eles não com um monte de afirmações e preconcepções de
certo e errado, tentando enquadrar as pessoas nos seus próprios conceitos de
bom e mau, mas sim como pessoas que antes de mais nada olham para o outro e perguntam:
em que eu posso te ajudar? Como eu posso te servir? E você tem o contrário, o
olhar de quem julga e condena de acordo com padrões preconcebidos e quando olha
o outro, em vez de ver um irmão amado, mede a pessoa com os seus preconceitos
de bom e mau, de certo e errado.
Agora vejam só: quando eu falo isso, parece que eu estou
fazendo o que? Dividindo as pessoas em dois grupos: a galera que entendeu, e os
que não entenderam. Os que estão no caminho certo, e os que estão no caminho
errado. Naturalmente, eu estou do lado que entendeu, o lado certo, claro. Eu, que estou pensando nisso tudo, também faço isso, também caio na mesma esparrela. Por quê? Porque a lógica do nosso pensamento é a comparação, é a
criação de dicotomias bom x mau, a divisão em dois lados. Dentro e fora.
Incluídos e excluídos. É um aprendizado individual superar essa lógica e
simplesmente se abrir para o encontro com o outro. Eu sou eu, você é você e
vamos nos conhecer, sem julgamentos, sem categorizações, como pessoas diferentes uma da outra e únicas que somos.
E essas duas lógicas vão sempre conviver dentro da gente, o
que cria uma tensão. E a gente vive nessa tensão, entre a abertura para o
encontro e para o novo e o fechamento nas preconcepções que a gente usa para organizar o nosso mundo.
Coletivamente também é assim: nas sociedades e nas
instituições. Na Igreja é assim. E é preciso entender isso porque hoje em dia
existe uma tendência a dizer que gays e religiosos são incompatíveis. Assim
como muitos fundamentalistas julgam e condenam os gays, muitos gays julgam e
condenam os religiosos.
Ou não, a gente pode dizer simplesmente que a Igreja condena os
gays e ponto, mas isso cria alguns problemas. Primeiro: a Igreja não é só a hierarquia. Somos todos nós. Então, qual Igreja condena os gays? O padre que destitui um rapaz das suas atribuições
pastorais na paróquia porque ele contou que é gay? Ou o padre que sabe que um
cara é gay e mesmo assim o indica para ser Ministro da Eucaristia e lidera da
Pastoral da Liturgia da paróquia? Que Igreja condena os gays? O catecismo? Qual
parte? A parte que diz que os gays devem ser respeitados como pessoas que são e
acolhidos sem discriminação? A parte que diz que a gente tem que ser casto? Mas
tem uma parte que diz que "ser casto" é viver a sua vida sexual e afetiva de
maneira ordenada, de abertura e encontro com o outro. Ou a parte que, dentro
daquela lógica do sacrifício, fala para a gente pegar a nossa cruz, e isso quer
dizer entender AQUI, especificamente no caso dos gays, "castidade" como "celibato"? A parte que diz “ame o pecador,
mas odeie o pecado” (que é uma coisa meio difícil de entender, porque como é
que você separa a pessoa daquilo que ela faz? Cristo é amor. Cristo é ato, é
aquilo que ele faz. Deus é Verbo, é ação. Como é que a gente separa quem a gente é, abstratamente,
daquilo que a gente faz? Mas isso é outra história)? Qual Igreja condena os
gays? O fundamentalista que berra "eu te amo, mas, demônio, sai desse corpo que
não te pertence"? Ou a comunidade da minha paróquia, que me recebe junto com a minha mulher de
braços abertos, e não dá a mínima se a gente é um casal?
Que Igreja condena os gays? O gay que sabe quem é e se
aceita como é, porque se sabe amado e aceito por Deus, ou o que vive um
sofrimento dilacerante, porque se sente julgado e excluído pelo próprio Pai?
O que eu quero dizer é que existe um jogo muito complexo de
forças em ação nesse corpo coletivo que é a Igreja. Existem pessoas, grupos,
religiosos, comunidades, iniciativas, de inclusão de gays. E existem pessoas,
grupos, religiosos, leigos, que excluem os gays. E isso está muito além do que
a gente escolhe ouvir dos pronunciamentos e dos documentos oficiais. Porque a gente escolhe o que vai escutar dos pronunciamentos e documentos oficiais, também, viu, gente? Tem um enorme recorte aí, a serviço das nossas próprias preconcepções do que é a Igreja e de como ela funciona. Mas a verdade é que, mesmo no que é oficial, com chancela do Vaticano e tal, existem as falas de
exclusão e as de inclusão.
Este ano está fazendo 50 anos da convocação do Concílio
Vaticano II, que aconteceu entre 1962 e 1965. Esse Concílio representou uma
tentativa de transformação da Igreja. Você tinha uma Igreja cheia de vícios de
1950 anos de história, ao longo da qual ela se misturou muito com os poderes
mundanos. Houve um longo momento da história em que o Estado, no Ocidente,
desapareceu, ficou todo fragmentado, e a Igreja virou a fonte de organização da
sociedade. Ela passou a ser o Estado. Mas aí, o tempo passou, as mudanças
vieram, o Estado surgiu de novo, quer dizer, voltou a haver uma estrutura
pública e, curiosamente, passou a se entender que essa estrutura pública tinha
que cuidar e zelar pelo bem-estar dos cidadãos, prestar serviços. Onde antes
você tinha os poderosos explorando o povo, e se você era poderoso, muito bem;
se você era povo, dane-se – você passou a ter aos poucos, cada vez mais, a
noção de cidadania, de direitos para todos. Antes quem tinha direitos era um
grupinho, uma elite; aos poucos cada vez mais gente passou a ter direitos:
primeiro, os de determinadas linhagens (os nobres); depois, os que tinham
dinheiro; depois, os direitos foram estendidos a todos os homens brancos acima
de determinada idade; depois, às mulheres, aos negros, e também as crianças e
jovens e velhos começaram também a ter seus direitos assegurados e protegidos.
Mas isso é uma novidade muito recente na história, coisa de 2-3 séculos para cá.
A gente hoje vive num país que diz que todo mundo é igual perante a lei, todo
mundo é cidadão, e esquece que nem sempre foi assim.
Então, o Concílio Vaticano II foi uma tentativa da Igreja de
entender e se adaptar a esse mundo. De se perguntar: tá, então neste novo
mundo, a gente entra onde? Pra que a gente serve? E daí saíram duas conclusões
muito importantes: primeiro, a noção de que, para além da imposição de uma
lista de certos e errados, o que cada pessoa tem de mais importante, o que
torna todo mundo igual, igualmente digno, o que cria uma dignidade humana que é
inerente a todas as pessoas e faz com que todas as pessoas sejam portadoras dos
mesmos direitos, é a liberdade de consciência.
“A consciência é o núcleo mais secreto e o sacrário do
homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade
do seu ser”, diz o parágrafo 16 da Constituição Dogmática Gaudium et Spes. Isso significa que qualquer norma deve ser
colocada diante da consciência de cada um. E cada um de nós é responsável por
estar atento à própria consciência, e não ir contra ela.
Os documentos do Concílio dizem que a liberdade de
consciência, a liberdade de crença, é a mais importante de todas porque é a
base de todas as outras e de todos os direitos. E daí veio a segunda conclusão
muito importante do Concílio: se existe liberdade de consciência, a gente não
tem uma única maneira de perceber a verdade, então não existe só um certo ou só
um errado. Porque a verdade, ou o sagrado, não tem como ser inteiramente
apreendida por um ser humano ou um grupo. Não existe mais o dono da verdade, e
ou você está com ele, ou está contra ele. Ou está do lado certo ou do lado
errado, ou dentro, ou fora. Existe um monte de gente e grupos, cada um dentro
da sua percepção inevitavelmente limitada da realidade contando pros outros o
que está podendo ver dali de onde está.
Como os cegos apalpando o elefante, vocês conhecem essa história?
Um pegava no rabo e dizia “ah, o elefante é um animal curto e roliço como um
graveto fino”. O outro pegava na tromba e dizia: “Você está louco, o elefante é
um animal cilíndrico e flexível, e grosso como um grande galho de árvore”. E um
terceiro, apalpando o pé do elefante, exclamava “Vocês estão errados, o
elefante é rígido e ereto como um tronco de árvore”.
Então, o Concílio vem falar no pluralismo da sociedade em
que a gente vive, e em como é imprescindível a Igreja respeitar as diferenças e
se colocar aberta para o diálogo com a diversidade. Vale a pena ler documentos
como a Gaudium et Spes ou a Dignitatis Humanae. São lindas.
Aliás, está justamente aí a fundamentação do necessário laicismo
do Estado, pois só um Estado Laico pode assegurar essas liberdades individuais mais
fundamentais e o direito à diferença. E a própria Igreja, em documentos como esses dois que acabo de citar, reconhece a necessidade imperiosa do Estado Laico.
E aí a gente lê esses documentos de 50 anos atrás e
pergunta: onde está essa Igreja? Por que salta muito aos olhos a dificuldade da
instituição em colocar essa postura de diálogo aberto em prática, essa maneira
de perceber o mundo e as pessoas de uma maneira verdadeiramente fraterna. E olha
aí a palavra fraternidade de novo: porque, se você tem um mundo de pessoas
igualmente livres nas suas consciências, você tem um mundo de irmãos, que vivem
as suas histórias e procuram se ajudar na busca honesta da verdade, cada um com
a contribuição única do seu próprio olhar.
E onde está essa Igreja que dialoga? Ela está mudando.
Porque é muita gente, é uma estrutura muito pesada, e todas as mudanças ao
longo de 2 mil anos de história vieram assim: da mudança das bases, da
mentalidade dessa multidão, para o alto. O alto, onde está o poder, resiste,
claro, então muda devagar. Por isso é
responsabilidade de cada um de nós estar atento à própria consciência, porque é nesse
conjunto da base, de todas as nossas consciências juntas, que sopra o Espírito
da Verdade. Porque só juntos a gente enxerga o elefante, e quanto mais forem as
pessoas de olhos abertos, melhor visão a gente tem desse elefante. E isso é
diálogo. O diálogo está acontecendo aqui, agora. O diálogo acontece quando as
pessoas se encontram. Se a gente divide o mundo em estereótipos, seja o
estereótipo do gay, seja o estereótipo do religioso, do fundamentalista, não
tem pessoas, não tem encontro, não tem diálogo. O encontro e o diálogo
acontecem entre pessoas.
Coletivamente, nós, gays, temos uma grande contribuição para
dar à Igreja e ao mundo: quando, indo contra todas as normas e preconceitos, a
gente está tão em contato com a nossa consciência e com quem a gente é que sabe
que não pode se esconder da gente mesmo e tem que ser quem a gente é, a gente
está em contato com a nossa verdade. E a nossa verdade mais profunda é um
pedacinho da verdade maior. É o nosso pedacinho do elefante.
O Evangelho diz “Conhecereis a verdade, e a verdade vos
libertará”. E isso, essa honestidade profunda com a verdade da nossa
consciência, é uma dádiva. Essa é a nossa contribuição, é dizer “olha, mesmo
contra todas as dificuldades, você tem que ser verdadeiro com você mesmo,
porque isso é libertador. Eu estou conseguindo, viu? Experimenta. Isso derruba
muros. Incomoda, porque a emancipação exige responsabilidade e maturidade, e é
difícil, mas também é tão profundamente libertador”. Essa é a dádiva que os gays oferecem para o mundo.
Domingo passado foi Pentecostes, a festa do Espírito Santo.
Que o Espírito da Verdade e do Amor nos inspire para o encontro e a abertura
com os irmãos. E que nós possamos, gay e não-gays, religiosos e não religiosos,
cada vez mais assumir as nossas responsabilidades perante nós mesmos e nossas
consciências, e trabalhar por um mundo melhor, em que a gente possa ser mais
irmãos.
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.
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4 comentários:
Parabéns, Cris! Você é especial!
Obrigada pelas suas palavras, Jônatas. Sei não, acho que sou tão especial qto todo mundo, mas é sempre tão bom receber carinho... obrigada mesmo. :-)
Todo mundo tem suas "especialidades", mas a sua é rara.
Awn, seu lindo. Rs
Beijos.
Cris
Equipe Diversidade Católica
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