domingo, 3 de junho de 2012

A Trindade Santa


Deus não poderia fazer outra coisa senão amar. Fazer discípulos não é recrutar mão de obra ou procurar aderentes. Antes de qualquer coisa, trata-se de ir. O único mandamento é amar!

A reflexão a seguir é de Raymond Gravel, sacerdote de Quebec, Canadá, publicada no sítio Culture et Foi, comentando as leituras do Domingo de Pentecostes (3 de junho de 2012). A tradução é de Susana Rocca.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


Referências bíblicas:
1ª leitura: Dt 4,32-34.39-40
2ª leitura: ROM 8,14-17
Evangelho: MT 28,16-20

Cada ano, após Pentecostes, desde o século XIV, nós celebramos a festa da Trindade Santa: a festa de Deus, o Deus único e trino, o Deus em pessoas. Eu lia o comentário de Gérard Sindt na revista Signes d’aujourd’hui, que dizia: “O nosso Deus é um Deus pessoal. Em Cristo, nós descobrimos Deus em pessoas (no plural), que nos ensina a nossa personalidade relacional” e – eu acrescentaria – comunional. De fato, Deus é relação e comunhão com a sua criação, conosco. E por que isso? Simplesmente porque Deus é Amor. No Ângelus do dia 22 de maio de 2005, o Papa Bento XVI convidava as pessoas a reconhecer que Deus é único, que ele é Pai, Filho e Espírito Santo, que ele não é solidão, mas comunhão perfeita, pois Deus é Amor. Eis aí a grande revelação que Cristo nos trouxe: o Ser de Deus é o Amor em estado puro. Então, Deus não poderia fazer outra coisa senão amar. De fato, o amor não existe se não for movimento, reciprocidade, dom, acolhida, relação e comunhão. Na história, Deus não cessou de se revelar e ele continua a fazê-lo hoje, pois se é Deus ele não pode ser e não pode existir mais que como Fonte de Amor, o amor criado que dá a vida, que se multiplica, que se expande e nos faz descobrir sempre mais Deus.

Para falar em Deus, precisamos defini-lo como relação, dom, partilha, comunicação, intercâmbio, comunhão. A única maneira de alcançar a totalidade é necessariamente três pessoas em Deus, porque o Amor tem isto de particular: é preciso que exista um terceiro: “O meu mandamento é este: amem-se uns aos outros, assim como eu amei vocês” (Jo 15,12). O Amor não volta àquele que ama; se dá a outro, daí seu crescimento e a sua fecundidade. Também, o Amor não se fusiona; ele estabelece uma relação interpessoal. É o que faz dizer ao padre francês Léon Paillot: “Deus, nosso Deus é essencialmente relação, intercâmbio. Mas é preciso uma terceira pessoa para que todos os Eu se tornem um Nós”.

Não podemos falar de um Deus Pai sem que haja uma relação de amor com um dos filhos gerados por ele. E se não houvesse nada além do que o Pai e o Filho, poderíamos pensar que eles se bastariam a se próprios: o Pai dá a vida e o Filho a recebe... Porém, isso faria um Deus limitado, centrado em si próprio. E, portanto, diz o teólogo Gérard Sindt: “Deus, na Bíblia, tende ao descentramento de si próprio, e é o Espírito que é o operador. Ele é a fecundidade operacional de Deus, a sua feminidade e a sua maternidade. A feminidade, ela própria, é experiência de Deus”. E Gérard Sindt acrescenta: “Quando se fala de pessoas em Deus, é sempre o Espírito que é mais difícil de atingir. Ele representa aqui a terceira pessoa, isto é, nós”. Nós estamos envolvidos, portanto, do mistério de Deus, da Trindade. Também, para que haja comunhão, é preciso três pessoas; se não houvesse mais do que duas, seria simplesmente uma relação. Assim, o Espírito assegura a fecundidade do Amor do Pai ao seu Filho que partilha conosco.

Mas o que nos dizem as três leituras de hoje sobre Deus?

1. Deuteronômio 4,32-40: Estamos no Antigo Testamento, a Antiga Aliança, e o autor do Deuteronômio se maravilha diante deste Deus diferente dos outros deuses; não é uma força escura ou impessoal como os outros deuses: Deus está, juntamente, longe e perto: “Javé é o único Deus, tanto no alto do céu, como aqui em baixo, na terra” (Dt 4,39). Ele fala ao homem (Dt 4,33) e ele se escolheu um povo (Dt 4,34). Essas duas coisas fazem parte da sua singularidade. Poderíamos ter pensado que Deus é incomunicável, que o mundo dos homens e o mundo de Deus não se encontram nunca, que eles não falam a mesma língua... Mas não! É tudo o contrário: com Deus existe uma comunicação possível, uma proximidade admirável, e não morremos! (Dt 4,33). Deus liberou seu povo da escravidão (Dt 4,34), e ele quer a felicidade dos seres humanos que ele escolheu (Dt 4,40).

Esse antigo texto do Deuteronômio não conhecia certamente o Deus Trino tal como o conhecemos hoje e que foi definido pela Igreja do século IV. Mas já podemos entrever sinais da Trindade, nos versículos 35-38, que o lecionário infelizmente cortou na liturgia deste domingo: fala-se da Palavra, do Verbo (segunda pessoa da Trindade), e do Fogo, do Espírito (terceira pessoa da Trindade). É uma antecipação do Deus relação e comunhão, tal como hoje é confessado.

2. Romanos 8,14-17: Na sua carta aos Romanos, São Paulo nomeia as três pessoas em Deus, sem mesmo conhecer o conceito da Trindade. Além do mais, ele nos integra na família trinitária: “Todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus” (Rom 8,14). É o Espírito que segura o vínculo entre Deus e nós; ele nos tira dos nossos medos e das nossas escravidões, e nos faz reconhecer Deus como Pai (Rom 8,15). Além disso, diz São Paulo, nós somos como Cristo: “E se somos filhos, somos também herdeiros: herdeiros de Deus, herdeiros junto com Cristo” (Rom 8,17). E São Paulo acrescenta: “uma vez que, tendo participado dos seus sofrimentos, também participaremos da sua glória” (Rom 8,17). Mas atenção para não cair na teologia do martírio como necessidade de salvação! O que São Paulo quer dizer é que nas nossas experiências humanas de libertação e de sofrimento, nós somos como Cristo; assemelhamo-nos a ele. Assim como ele, nós também devemos assumir a nossa condição humana até o fim, isto é, até a morte, para ressuscitar como Cristo.

É evidente que no momento em que São Paulo escreve a sua carta, a perseguição cristã fazia parte do programa. Mas, hoje, como não é mais o caso, nós não devemos inventar silícios, como parecem propô-lo algumas correntes conservadoras cristãs. Nós não devemos levar mais do que os silícios que a vida nos impõe: os nossos limites humanos, as nossas capacidades, a doença, o sofrimento e a morte. A Sexta-Feira Santa precede sempre o Domingo de Páscoa. Foi o caso de Jesus de Nazaré e será o caso para nós também.

3. Mateus 28,16-20: Em nenhum lugar da Bíblia nós encontramos uma fórmula trinitária tão explícita e elaborada como no final do Evangelho de Mateus, onde assistimos ao envio missionário dos apóstolos, na noite da Páscoa: “Portanto, vão e façam com que todos os povos se tornem meus discípulos, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” (Mt 28,19). Segundo os exegetas, essa fórmula se constituiu na liturgia do batismo, no final do século I. Isso não quer dizer que o evangelista Mateus conhecia o Deus Trino como o conhecemos hoje; ele utiliza simplesmente o nome de Deus, revelado na história, como um Pai, por Jesus Cristo seu Filho, no Espírito de Cristo que nos habita. Devemos salientar que para Mateus o batismo não está reservado a um povo em particular; ele é universal: “todos os povos” (Mt 28,19).

A missão consiste, então, em batizar, em fazer discípulos. Não aderindo a uma doutrina, mas sim entrando numa comunidade de fé que se enraíza em Deus, pelo Espírito Santo que nos habita. É evidente que a pessoa que ensina é importante, mas ele diz respeito aos mandamentos que Cristo nos deu: “ensinando-os a observar tudo o que ordenei a vocês” (Mt 28,20)... Porém, de fato, estes mandamentos se resumem num só: “Amem-se uns aos outros, assim como eu amei vocês” (Jo 15,12). O nosso Amor deve ser fecundo, voltado aos outros, para que ele produza frutos, e que ele revele outros rostos do Deus Amor, outras pessoas em Deus, pelo Espírito Santo. Apesar das dúvidas que surgissem e que persistissem sobre Deus, da parte desses próximos (Mt 28,17), Cristo nos confirma a sua presença, pois ele mora em nós pelo seu Espírito: “ensinando-os a observar tudo o que ordenei avocês. Eis que eu estarei com vocês todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28,20).

Concluindo, eu gostaria simplesmente de propor a vocês esta bela reflexão do exegeta francês Jean Debruynne sobre o evangelho desse domingo: “Trata-se de fazer discípulos e fazer discípulos não é recrutar mão de obra ou procurar aderentes. Antes de qualquer coisa, trata-se de ir. Ir é partir, é sair. É ser livre. Ir é o contrário de estar fechado na verdade, e prisioneiro dos seus princípios. Ir é caminhar para a frente, e não de ré. Ir é um sinal de confiança. Vá! É uma decisão. Trata-se de aprender a guardar os mandamentos e não guardá-los na geladeira. O único mandamento é amar!”.

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