terça-feira, 5 de junho de 2012

Novos jeitos de amar

RETRATOS DA DIVERSIDADE: As três gerações da família Laborne, com enteados e filhos; Soraya Tofani, Ageeo Simões e os filhos dos casamentos anteriores; os recém-casados Rodrigo e Wanderson e Iracema, mãe de Wanderson; Paulo Barcala e o filho do segundo casamento, que tem a mesma idade do primeiro neto do publicitário; e Luiz Guilherme e Doralice, que optaram por não ter filhos

Modelo antigo da estrutura familiar divide cada vez mais espaço com situações diferentes: pais solteiros, casais unidos de maneira informal e casamentos entre pessoas do mesmo sexo. É a família mosaico, que dá um basta aos preconceitos.

Durante a festa de aniversário de 10 anos de Pedro Henrique, os amigos do Colégio Santo Antônio se reuniram para cantar o Parabéns pra você. Depois da música, veio o complemento constrangedor: “Com quem será que o Pedro vai casar/Vai depender se o Pedro vai quereeer…” E a canção não parou aí. Os colegas do menino insistiram na continuação da melodia: “ Eles vão casar e ter um monte de filhos/E daí então o Pedro vai se separaaar!” Na época, a brincadeira soou interminável para a mãe do garoto, a publicitária Soraya Malheiros. Ela sim, estava se separando do marido, com dois filhos para criar. Além de Pedro Henrique, havia João Paulo, de 7 anos.

Esse episódio ocorreu há cerca de 10 anos, quando as separações eram menos aceitas em Minas Gerais. De lá para cá, o termo desquite deixou de existir, sendo substituído por divórcio. Entre 2000 e 2010, o número de divórcios mais que dobrou no estado: passou de 1,6% da população para 3,3%, segundo dados do Censo 2010, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Com o fim dos casamentos, entram em cena os segundos relacionamentos e, consequentemente, os frutos dessa nova união e a convivência com os enteados, filhos das relações anteriores. É preciso criar um glossário para ajudar a entender os novos arranjos familiares, que incluem irmãos emprestados, “namorido” (namorado que vive uma relação conjugal com a mãe) e “boadrasta” (nova mulher do pai).

Os novos arranjos familiares em Minas são muitos: pais solteiros, casais sem filhos por opção, uniões estáveis e até o primeiro casamento gay de papel passado, que ocorreu este ano em Manhuaçu, a 278 quilômetros de Belo Horizonte, na Zona da Mata. Wanderson Carlos de Moura, de 34 anos, e Rodrigo Diniz Rebonato, de 18, se casaram e um adotou o sobrenome do outro.

Ufa, é tanta confusão que parece mais simples permanecer amando à moda antiga. “Há uma tendência a idealizar a família perfeita e a atribuir as dificuldades naturais da vida à separação dos pais. Se o modelo antigo, autoritário e patriarcal, era mais fácil de seguir, o novo modelo permite fazer escolhas”, compara Giselle Groeninga, psicanalista, doutora em direito civil pela Universidade de São Paulo (USP) e vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família (ISFL). Segundo ela, nos moldes antigos as questões homoafetivas, escapadas fora do casamento e o adultério costumavam ser tratadas com hipocrisia, repressão e sentimento de culpa. “Nos casais de hoje, instituições como a família, o Estado e a Igreja passam a ser separadas entre si e cada uma delas se fortalece”, completa.

FAMÍLIA MARGARINA Não quer dizer que a tradicional família mineira deixou de ser a “família-margarina”, formada por mãe e pai, filho e filha, que, pelo menos nas propagandas, parecem felizes para sempre. Segundo o Censo, porém, o número de casados caiu 5% em Minas e o grupo de pessoas que se unem informalmente cresceu quase 40% entre 2000 e 2010. De acordo com IBGE, elas já são quase um quarto da população. “As mudanças têm sido aceitas sem alarde, dentro do espírito da mineiridade. Mas elas têm acontecido”, lembra o advogado João Batista de Oliveira Cândido, especialista em direito de família.

Numa ampla casa do Bairro Cidade Jardim formou-se uma perfeita “família mosaico”, termo usado por especialistas ao se referirem às configurações familiares do século 21. No mesmo ambiente convivem “os meus, os seus e os nossos filhos”, como se costuma dizer. “Por mim, não teria me separado nunca. Para o homem, é difícil tomar a iniciativa”, declara o oftalmologista Luiz Alberto Laborne Tavares, de 51 anos, que terminou o primeiro relacionamento em 1999, depois de nove anos de união e dos filhos Pedro Henrique, hoje com 20 anos, e Lucas, de 19. O “namorido” calcula que sejam necessários quatro anos para administrar a situação. Ele passou a morar com a então namorada, a “boadrasta” Carina Ferreira, de 32, que já era mãe de Caio, de 14. Juntos, os dois tiveram Isabel, de 4 anos, que ajudou a unir os três “irmãos emprestados”.

De início, a situação gerou conflitos com os pais de Luiz Alberto, o oftalmologista Ângelo Laborne Tavares, de 90, e a professora de ioga Maria Tereza, juntos há 64 anos. Os ajustes, porém, foram feitos. “O tempo faz o seu curso e nós com ele vamos”, filosofa o patriarca, que diz escrever poemas até hoje para sua “menina”. Ela sorri e dá as mãos ao “filhinho”: “Cheguei a ter preconceito em relação às separações, mas entendo que eles queiram renovar a vida. Eu tive a sorte de encontrar a pessoa certa de primeira. Nós nunca brigamos.”

Filhos se adaptam à diversidade
As múltiplas configurações da nova família – homoafetivas, mosaico, de mães ou pais solteiros – provocam alterações que vão além da legislação e da nomeclatura. Os novos papéis e lugares que seus membros ocupam nesse emaranhado de combinações afetivas acabam por transformar a identidade das gerações futuras. Na maioria das vezes, para melhor. É o que afirma a psicanalista Giselle Groeninga. Segundo ela, a identidade é formada pelo conjunto de exemplos que temos de pessoas afetivamente importantes, em geral mãe e pai, e pela aprovação que se tem dessas pessoas. São os pais, ou as pessoas que exercem essa função, que passam para a criança os valores sociais. Se eles estão inseridos numa relação familiar que tem como característica a diversidade, a tendência é termos crianças mais “flexíveis”.

“Se essas pessoas estão agindo de forma mais livre, por exemplo em relação ao papel e função de pai e de mãe, de homem e de mulher, a consequência será a formação de pessoas mais flexíveis e, espera-se, com maior capacidade de empatia e com menos preconceitos”, diz, ponderando que não se pode desconsiderar que há também um movimento de retrocesso, com famílias mais rígidas, inclusive pelo grau de confusão e angústia que a mudança nos valores tem trazido.

No caso de famílias reconstituídas, isso é, com irmãos vindos do primeiro casamento da madrasta ou padrasto, a formação da personalidade dos filhos também apresenta um padrão diferente. Para Giselle, essas famílias requerem das crianças um “trabalho mental” maior, já que a identidade e a afetividade não estão diretamente ligadas ao parentesco. “A identidade é formada pela genética, pela inserção em linhagens familiares e pelo que se denomina de aspecto socioafetivo, ou parentalidade socioafetiva. Fica mais fácil quando esses três aspectos se concentram nas mesmas pessoas. O importante é que se mantenham os vínculos com os pais e se agreguem novas possibilidades. Em família, a ideia é somar, respeitando-se as funções exercidas de cada um”, analisa.

Giselle diz que, apesar de se afirmar que ninguém é insubstituível, quando se fala de pessoas com alto grau de envolvimento afetivo, nas relações familiares todos são insubstituíveis. “As funções paterna, materna e filial podem ser exercidas por outros. É importante, no caso de outros exercerem tais funções, que se reconheça a contribuição dos originais e se valorize a possibilidade atual.”

Para Maria Berenice Dias, vice-presidente do IBDFam, é preciso admitir que os filhos podem ter mais de um pai e uma mãe. “Será que o padrasto que o acompanhou uma criança a vida toda, não é também pai? Tenho visto muito essa situação: “Eu gosto do meu pai e do meu padrasto e tenho que escolher quem vai ao meu casamento. Vou me sentir muito mal porque ele me deu tudo”, completa.

Sem carinhos em público
Em casa, Rodrigo, de 18 anos, até ajuda na faxina, mas Wanderson, de 34, acha injusta a divisão de tarefas. “Eu cozinho, lavo e passo a roupa, arrumo a cama. Mas fazer o quê?”, resigna-se o mais velho, sorridente. Dois meses depois do primeiro casamento civil entre homens em Minas Gerais, Wanderson Carlos de Moura Rebonato e Rodrigo Diniz Rebonato Moura vivem dificuldades e alegrias típicas de qualquer casal, mas ainda não trocam afagos em público — sequer andam de mãos dadas. “Ele tem vergonha, mas eu não. Abraço no meio da rua”, diz Rodrigo, que está trabalhando como apanhador de café. “Aí, eu tiro a mão dele. Prefiro não nos expor”, justifica Wanderson, bordador. Os pais de Wanderson tratam Rodrigo com carinho, mas, católicos, nunca esconderam a insatisfação com o casamento, ao qual não compareceram. “Nunca tive coragem de tocar nesse assunto com eles. diz Wanderson.

Livres para as aventuras
Mochileiros desde a juventude, Luiz Guilherme de Moura Mendes, de 52 anos, e Doralice, de 51, vão comemorar Bodas de Prata este ano com uma travessia da Serra do Caraça, em dezembro. A nova aventura do casal ficaria mais complicada se os dois não tivessem optado, desde o início do relacionamento, por não ter filhos. Eles investiram em viagens os gastos com mensalidades escolares, fraldas e cursos extras, que seriam inevitáveis caso tivessem tido bebês. “Acho bacana ter filhos, mas não é a minha praia”, explica Dora. O casl optou por alternativas mais radicais, como subir o vulcão Tungurahua, no Equador e percorrer de jipe a Ilha de Páscoa. Segundo o marido, os dois baixaram a guarda por volta da idade limite de Dora para engravidar, aos 34 anos, e pararam de evitar filhos. Como nada aconteceu naturalmente durante um ano, desligaram-se da questão.

Namoro com pai solteiro
Depois da separação, a publicitária Soraya Malheiros decidiu investir na carreira e nos filhos. Ela se tornou barista e abriu uma cafeteria na Savassi. O ex-marido tornou a entrar em um relacionamento no ano seguinte. Soraya, por sua vez, levou 13 anos para apresentar um namorado firme aos filhos. Pedro Henrique, de 20 anos e João Paulo, de 17. Soraya conheceu ao vivo Aggeo Simões, cantor, locutor e ator, com quem já havia conversado pela internet. “A Sosô estava tão bonita de vermelho da primeira vez, e na vez seguinte a gente ficou e agradou um do outro”, explica Aggeo, que cuida da filha Ava, de 8 anos, em regime de guarda compartilhada com a mãe. Ele alimenta o blog Manual do Pai Solteiro, que deve virar livro. “Já conhecia o trabalho dele no blog e percebia o quanto ele era fofinho ao compartilhar as experiências de ser pai sozinho, de fazer comidinhas para a filha”, derrete-se Soraya, com 8 meses de namoro.

Os meus filhos, o seu filho e a minha filha
“Na época, a separação foi sofrida, mas a relação com a ex-esposa transformou-se em amizade e respeito”, afirma o médico Luiz Alberto Laborne Tavares, casado pela segunda vez. Os filhos do primeiro casamento continuam morando com a mãe, mas Pedro Henrique, guitarrista e estudante de publicidade, montou um estúdio de música na clínica do pai. “No começo foi difícil, pois a gente se acostuma a morar junto com os pais. Mas vejo meu pai sempre”, diz o vestibulando Lucas, que se tornou amigo de Caio, filho emprestado do pai com a madrasta Carina, que é bancária. Com ela, o médico teve Isabel, de 4 anos, que se dá bem com os três irmãos mais velhos e com a coelhinha Jojô. Há 12 anos, Carina mantém união estável com o médico, em contrato registrado no papel, deixando claras as intenções de cada um. “É natural que existam diferenças de amor quando Luiz trata da nossa filha ou do meu filho, mas isso é o que menos pesa hoje”, compara Carina. Segundo ela, na hora de decidir as viagens, as escolas onde matricular e as compras de roupas o tratamento é igual para todos.

Laços cada vez mais fortalecidos
Para especialistas do setor, os laços da família nunca estiveram tão fortes, apesar de terem sido amarrados de um jeito diferente. Segundo dados do Censo, os mineiros não vivem sós. Quase a metade da população (48,3%) está envolvida em algum tipo de união, formal ou informal. “As pessoas se perguntam se as crianças filhas de casamentos gays ou de segundos ou terceiros casamentos vão sofrer preconceitos. É claro que vão, assim como sofriam antes os filhos de pais separados”, alerta o advogado Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), com sede em Belo Horizonte.

A partir da experiência de Minas, estão surgindo decisões importantes no cenário nacional do direito de família, como a noção dos relacionamentos ligados pelo afeto e não pelas questões econômicas, como ocorria no passado com as famílias patriarcais. Da nova definição de família, defendida pelo IBDfam, deriva o conceito de uniões estáveis homoafetivas que, sem trocadilhos, acabou “pegando” para definir os casais gays.

“Novas estruturas de família estão em curso. O que não quer dizer que a família está em decadência. Pelo contrário. Ela nunca teve tanta importância quanto agora”, alerta o advogado, autor da primeira ação de abandono afetivo com decisão favorável em primeira instância no país a um filho que se sentiu desprezado pelo pai biológico na infância. Infelizmente, o cliente de Cunha teve o pedido negado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2004. Só em 2012, um pai, do interior de São Paulo, foi condenado a pagar indenização de R$ 200 mil por danos morais por ter deixado de prestar cuidados e assistência à filha, segundo decisão do STJ.

Pai de Ava, de 9 anos, o locutor e cantor Aggeo Simões tem pouca chance de vir a ser processado pela filha. Autor do blog Manual do Pai Solteiro, ele faz parte do grupo de um homem em cada 10 mulheres brasileiras capazes de cuidar sozinhas das crianças, sem a necessidade da ajuda do cônjuge. Na realidade, desde que Ava tinha 18 meses, ele e a mulher, a artista plástica Júnia Melillo, concordaram em compartilhar a guarda da filha. Em relação a viver em duas casas ao mesmo tempo, Ava interrompe a entrevista para protestar: “Eu já implorei para os dois ficarem juntos, como namorados. É que, na maior parte das vezes, minha mochila está na casa do outro e eu não consigo fazer o para casa. A professora já avisou que, da próxima vez, quem não fizer os deveres vai perder o recreio”, desabafa a garota, revirando os olhos e antevendo um futuro sem folgas. “Fora isso, está tudo bem!”, completa.

(Publicado originalmente no Estado de Minas, em 03/06/12. Reproduzido via Conteúdo Livre)

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