segunda-feira, 23 de abril de 2012

Liberdade de culto e secularismo exigem reciprocidade

Lego room: Valentino Fiadini

Toda vez que se busca a supressão de privilégios, a correção de rotas desviadas, há sempre muita grita. Foi assim em relação ao nepotismo; está sendo assim em relação aos privilégios que religiões vem gozando em relação ao estado republicano.

Raros são os que aceitam abrir mão com serenidade de seus privilégios, ilegalidades, reconhecendo sua ilegalidade e ilegitimidade. Nem mesmo padres, pastores, bispos. Eles são simplesmente humanos. Se esquecem, nessas horas, as palavras daquele que pregam, - os princípios do "cada um com o seu cada um", ou o do "a César o que é de César, a Deus o que é de Deus".

O princípio da laicidade (ou secularismo) significa que existe liberdade de culto; que todas as religiões são igualmente válidas e merecem ser respeitadas. TODAS, sem exceção. Nenhuma é melhor ou “mais verdadeira” que a outra. Nenhum deus é o único: todas as concepções de divindades são legítimas e todas DEVEM ser respeitadas igualmente. Até a religião de não ter religião! Também chamada ateísmo. Sim, porque crer que não existem deuses não deixa de ser uma... Crença! Ainda que pautada pela ciência, é uma forma de conceber o mundo e suas manifestações.

Outro aspecto da laicidade é a garantia de que o Estado não se intrometerá nos assuntos religiosos; cada credo sendo livre para estabelecer os seus valores e postulados.

Ocorre, porém, que, como explicado pelo constitucionalista Daniel Sarmento, a laicidade (ou respeito à diversidade de credos) é uma via de mão dupla (SARMENTO, 2007): - O Estado não faz ingerências nas doutrinas religiosas, nas formas de realização do seu culto, nos intrumentos ritualísticos e as religiões não se introduz nos assuntos da República.

Esse porém é o aspecto mais esquecido do secularismo! As igrejas estão muito de acordo que o Estado não exerça qualquer influência sobre, por exemplo, a organização interna de sua religião, os modos de suas liturgias...

Também está muito de acordo que o Estado que não cobre tributos sobre a propriedade dos imóveis que são seu; que cobre impostos, taxas e emolumentos (IPTU, Imposto sobre a Transmissão de Bens, Imposto de Renda, Imposto sobre Operações Financeiras, taxas para concessão de Alvarás etc.).

No entanto, não admitem a mão dupla para essa via. E, assim, vivem a querer se arrogar no direito de se imiscuir nos assuntos civis; nas legislações civis!

Vivem a querer impor por todos os meios - possíveis e impossíveis - os seus valores peculiares a toda a sociedade CIVIL.

Querem Bíblias em todas as bibliotecas de escolas públicas; querem o ensino religioso nas escolas públicas; querem Bíblia na mesa diretora da Câmara e do Senado; querem poder usar o dinheiro do trabalhador, o seu Fundo de Garantia, para a construção de templos; querem que os tribunais do trabalho não reconheçam o vínculo empregatício entre padres e igrejas; querem poder realizar cultos e missas nos espaços públicos, inclusive no Palácio do Planalto, na Câmara dos Deputados, nas Assembléias Legislativas; querem exibir crucifixos em todas as repartições públicas; querem escrever trechos bíblicos em paredes de presídios; transformar espaços que deferiam ser ecumênicos no interior de presídios em igrejas devocionais; querem, ademais de terem suas próprias concessões de canais de televisão, poder transmitir seus cultos nas emissoras públicas; que o dinheiro traga o nome de uma divindade; que a lei maior do país traga o nome de uma divindade, que os juramentos civis realizados durante a posse de servidores públicos sejam realizados em nome de uma divindade...

Mais do que isso, querem ainda, ter o poder de decidir sobre qual deve ser o conteúdo da lei vigente e obrigatória a todos, mesmo àqueles que não professam o seu credo.

E nossos parlamentos, em total violação da Constituição Republicana, acatam esses interesses, em detrimento dos valores republicanos e submete o exame do conteúdo de projetos de lei às opiniões de representantes religiosos. Mas, curioso, de apenas determinados credos religiosos.

Ora, o Estado não tem (nem deve ter) assento nas instâncias hierárquicas de qualquer religião; não interfere sobre os mitos da criação de nenhum credo; não combate nem discute sobre o conteúdo dos seus dogmas.

Então, por que insistem em manter o estado republicano sob o seu controle? Leis que autorizem a interrupção de gravidez não obriga a que todas as mulheres o façam! - Fará quem tiver necessidade e quiser. É uma faculdade. Não uma obrigação. Ninguém propõe uma lei que OBRIGUE a realização do aborto! Mas, sim, se luta para que a mulheres tenham o direito de DECIDIR elas mesmas, por si, e não por imposição de religião alguma.

Os homossexuais e travestis que buscam o reconhecimento de sua cidadania em igualdade de condições com a população heterossexual não estão a obrigar ninguém que gostem de duas práticas e forma de amar. Exigem porém respeito, isso sim. Da mesma forma que evangélicos, católicos e candomblecistas, budistas, muçulmanos.

Querer impedir que a sociedade civil possa decidir livremente sobre as suas questões por conta de crenças religiosas - seja de qual religião seja - é pretender a instauração de um regime totalitário. É pretender manter toda a sociedade civil subordinada às crenças pessoais e íntimas de parte da sociedade, ainda que essa parcela seja majoritária. Nenhuma dessas denominações aceitaria que o Estado tomasse parte em suas discussões internas!

Não é absolutamente direito de nenhuma religião o exercício do poder temporal. E, lamentavelmente, é isso que estamos a assistir, dia após dia em nosso país.

- Rita Colaço
Publicado originalmente no Boteco Comer de Matula

Referências:
SARMENTO, Daniel. O crucifixo nos tribunais e a laicidade do estado. Revista eletrônica PRPE, maio de 2007. Disponível aqui.

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