A reflexão é de Marcel Domergue, sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Notre Dame du Web, comentando as leituras do 21° Domingo do Tempo Comum (26 de agosto de 2012). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara, e José J. Lara.
Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.
Referências bíblicas:
1ª leitura: Josué 24,1-2.15-18
2ª leitura: Ef 5,21-32
Evangelho: Jo 6,60-69
Intolerável, mas necessário. Estamos concluindo hoje a leitura do cap. 6 do evangelho de João ou, mais precisamente, a leitura dos discursos sobre o pão da vida e o dom da carne e do sangue. O pão, aqui, nos é mostrado como prova, da mesma forma que o maná tão presente neste capítulo (Ex 16,2-4). Os ouvintes irão se dividir entre crentes e não crentes. É que a ideia de comer a carne de um homem e beber o seu sangue é intolerável (v. 60). Mas não seria atenuando o texto que se faria um bom negócio. Para dizer a verdade, aquela frase do Sl 14,4 “quando comem seu pão é o meu povo que estão devorando” verifica-se todos os dias. Pessoas abastadas vivem da miséria, da fome e da morte de uma multidão de homens, mulheres e crianças que os nossos sistemas econômicos reduziram ao sofrimento e à míngua, no 3º mundo e em todos os “terceiros estados” ocidentais. E esta antropofagia assassina, velada e dissimulada, é generalizada. Pois esta carne e este sangue que, apesar deles, arrancamos dos homens é que o Cristo voluntariamente nos vem dar. Inútil dizer que isto não resolve o problema de nossas vítimas; isto simplesmente nos vem convocar a entrar na lógica deste dom total. Deus não impõe o amor com base na força; seria algo totalmente contraditório. Ele vem esboçar ante os nossos olhos a imagem desta via estreita, a única capaz de conduzir-nos à vida. Assim sendo, devemos primeiramente tomar a carne e o sangue que ele nos dá e, depois, fazer nosso o amor que comanda este dom.
Comer a carne e beber o sangue. Do mesmo modo que se haviam revoltado quando lhes revelara a sua origem, ao dizer-lhes de onde viera (Jo 6,41-42), também agora os interlocutores de Jesus revoltam-se quando Ele lhes revela para onde vai - quer dizer, para o Pai - mediante a Paixão. Jesus, em substância, lhes diz o seguinte: se ficaram chocados por lhes ter anunciado o dom da carne e do sangue, o que irão dizer então, quando tudo isto efetivamente vier a acontecer, quando virem o Filho do homem subir para onde estava antes? Explicando um pouco mais: o dom da carne e do sangue é para sempre, para todos os instantes, desde o começo. A cruz é disto uma revelação, é a hora em que os tempos se cumpriram. O que não impede que Jesus dirija a seus indignados ouvintes, palavras surpreendentes. De fato, muitas vezes lhes havia dito que, para viver, era preciso comer a sua carne. Pois agora lhes diz que “a carne não adianta nada”. Ora, com toda evidência, a palavra “carne” não tem aqui o mesmo sentido. Ainda há pouco, aplicava-se a Cristo enquanto homem solidário com a natureza, carregado da argila original (Gn 2,7); agora, a palavra se enche do sentido negativo que vemos em muitos textos: a inaptidão em se alcançar o espírito. Quando Jesus diz que suas palavras não são carne, mas espírito e vida, quer sem dúvida dar-nos a compreender que não se trata de comer materialmente a sua carne, o seu corpo. Hoje, sabemos que isto se realiza através de sinais. Portanto, esta carne que foi entregue não deve ser compreendida de modo carnal.
Ainda os dois discursos. Jesus, na visão de João, a partir de temas completamente diferentes, ensina coisas semelhantes. Apenas um exemplo: em 15,1-8, Ele explica longamente que, para viver, devemos permanecer n’Ele e Ele em nós. Ele é a vinha, nós os ramos; a seiva que vem Dele (pensemos no sangue) deve nos alimentar. Esta interioridade recíproca (Eu em vós, vós em mim) tem qualquer coisa a ver com o ato de comer a carne e beber o sangue. Ela só pode ser compreendida por quem aceitou o primeiro discurso, que nos diz que Cristo vem de Deus, é a presença de Deus. Mas isto, não basta. É preciso admitir ainda o dom da carne e do sangue. Olhemos mais de perto a resposta de Pedro quando Jesus pergunta aos 12 se também eles querem abandoná-lo. “A quem iremos? Só Tu tens palavra de vida eterna!” . Pedro compreende que não existe salvação possível se permanecemos fechados em nós mesmos; é preciso ir a outro, ir para o Outro. Ele, então, permanece com Jesus. Ótimo! Mas ele só havia entendido o primeiro discurso, não o segundo. Assim como em Cesaréia de Filipe (Mt 16,13-23), ele reconhece a origem do Cristo, mas permanece fechado para o futuro pascal. Ao menos, não faz a isso alusão alguma. Em verdade, a recusa ou esquecimento do segundo discurso revela não ter compreendido nem admitido totalmente o primeiro. Será preciso esperar Jo 21 para que Pedro se dirija sem reservas para Cristo. Nesta espera, se Jesus havia escolhido Pedro, Pedro, na verdade, não havia ainda escolhido Jesus. É aí que estamos todos nós. Tweet
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