segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Imagem de Deus e Diversidade (3): o dogma cristão evolui ao longo da História


Reproduzo abaixo a terceira parte do artigo Imagem de Deus e Diversidade, publicado originalmente no nosso site. Após abordar o papel da Igreja, da Teologia e da Revelação e a impossibilidade de essas instâncias virem a esgotar Deus (na quarta-feira passada), e a mediação humana e o caráter histórico da Revelação, na sexta, reflito neste trecho sobre a relação entre os fatos e questões contemporâneos e o entendimento humano da Revelação.

Esta pertença intrínseca do divino ao humano e vice-versa, que faz que chamemos a nossa história de “História da Salvação”, não é algo que está presente só no passado, registrado na Sagrada Escritura, mas é ainda hoje uma realidade. Isso nos obriga, enquanto Igreja, a nos debruçarmos sobre todas as realidades humanas e não só nos perguntar: “Como estas realidades podem ser iluminadas por Deus, pelo evangelho?” mas, também: “O que essas experiências nos falam, nos mostram sobre Deus”?

E aqui nos deparamos com mais um vício mental muito comum no nosso cristianismo. De que maneira algo inédito, pode, de fato, nos dizer também algo novo sobre Deus, sobre a vida? Isto pode acontecer?

Uma primeira, e impensada, resposta seria negativa. Não há nada de novo a respeito de Deus. Tudo que precisamos saber sobre ele se encontra na Revelação e esta está encerrada desde a morte do último apóstolo.

O que caberia às gerações subseqüentes à apostólica seria interpretar as novas questões que surgem e buscar uma resposta na Revelação. E este é de fato o processo que mais ocorre. A Igreja se volta para os princípios fundamentais, as verdades básicas contidas na Revelação tanto escrita quanto oral e procura à luz destas, compreender o que surge de novo.

No entanto, considerando a própria história da Igreja, por exemplo, no que diz respeito aos dogmas, não se pode concluir que esta interpretação do contemporâneo a partir dos dados objetivos já conhecidos da Revelação seja a única forma de crescimento no conteúdo da doutrina.

O teólogo alemão contemporâneo Karl Rahner (1904-1984) explica como pode haver uma verdadeira evolução no dogma cristão, sem ser fruto de uma mera aplicação dos dogmas antigos*.

A explicação que ele nos dá parte de uma comparação entre palavra humana e palavra divina. Quando um homem diz algo, a partir do momento em que é dito, quando a mensagem é ouvida por outros, ele já não tem nenhum poder sobre ela. O que foi dito toma rumos, ganha interpretações que não dependem mais da vontade e não estão de nenhuma forma sobre o domínio deste que disse tal palavra.

Com Deus é diferente. Ele é absolutamente consciente dos rumos que sua palavra toma ao longo da história. A palavra de Deus nunca se fecha, nem é “dita totalmente”. Mas, na medida em que novos contextos a provocam, ela se desdobra em sentidos que, se nem mesmo o hagiógrafo (autor sagrado) poderia sabê-los todos, estes não eram desconhecidos por Deus.

É justamente por isso que a Revelação é sempre contemporânea. Não é uma palavra dirigida a uma época, e sim aos homens, que nunca existem em geral, mas sempre inseridos em contextos específicos de cultura que moldam a maneira como pensam e as experiências que possuem da vida. É sempre aos homens de “hoje” a que Deus se dirige, retirando do baú da Revelação coisas novas e velhas (Mt 13,52 ).

Também as questões que hoje nos afligem e questionam, aquelas mais importantes dos nossos tempos, as mudanças na maneira de sentir e viver provocam a palavra de Deus, tanto para se deixar iluminar por elas, por aquilo que já sabemos dessa palavra divina, quanto para trazer à tona esta palavra divina que até agora estava já comunicada na Revelação, mas não ainda escutada por nós, já que ainda não havíamos formulado a pergunta que a desencadearia. Ao dado da Revelação já presente, mas ainda não conhecido, e que aflora num determinado contexto cultural, Rahner chama de dado "comunicado virtualmente". Está lá, ainda que precise a compreensão de uma determinada época para chegar até o nosso conhecimento.

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* Karl Rahner. O Dogma Repensado. São Paulo: Paulinas. 1970.

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