quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Os caminhos do verão


É verão no hemisfério norte, de onde nos escreve o autor. Mas, mesmo no inverno do sul, vale a reflexão sobre o sabor das pequenas coisas...

"Somos crianças feitas para grandes férias". É um verso de Ruy Belo que a nossa alma sabe. Vem o sol, avança sobre os dias uma claridade que já quase ignorávamos, o calor estende-se longamente como um gato preguiçoso, é julho, quase agosto, e mesmo de gravata e afazeres ainda apertados ao pescoço sabemos isso: que somos feitos para outros modos, que pertencemos a outros lugares. Não tem de ser necessariamente uma deslocação para outro país ou uma cidade diferente da nossa. Às vezes tudo o que nos falta é simplesmente caminhar com outro passo. É abrir a janela devagar, tendo consciência de que a abrimos. É reaprender outra qualidade para um quotidiano talvez demasiado deixado às rotinas e aos seus automatismos. É, no fundo, degustar o sabor das coisas mais simples. Pode-se fazer uma inesquecível viagem entregues ao sabor de um fruto, à contemplação de uma paisagem próxima, à sabedoria de uma conversa, ao silêncio de um livro. Sobre este último, acho que todos concordamos com o que escreveu Marcel Proust: «Talvez não haja dias da nossa infância tão plenamente vividos como os que passámos com um livro preferido». Mas a noção de «dias plenamente vividos» é suficientemente aberta para conter a nossa singularidade, as nossas manias, descobertas e paixões.

Há dias voltei a Roma e quase me envergonho de confessar que uma das coisas que mais apreciei foi a sombra. Vi coisas arrebatadoras de beleza, ouvi palavras e música que guardarei no coração por muito tempo…Mas dentro da canícula daquela semana romana, apreciei com espanto e vagar a frescura simples da sombra. De um lado da rua o sol descia como um punhal transparente e implacável, mas da outra parte, numa sensação talvez acentuada pelo contraste, o prazer da sombra era solene e doce como as notas de uma canção assinada por Mozart. Lembro-me que a Lourdes Castro me deu uma vez a indicação de um guia de viagem, salvo erro do século XVIII, que sugeria um périplo por Roma, indicando para cada viela e bairro as horas da sombra. Não têm preço mapas assim. Penso no verão como esse lugar onde as horas estendem, para cada um, uma sombra mais leve.

Acho que a dada altura o mais importante já nem é o que se vê, mas o como se vê. Nesta minha ida a Roma, fui uma tarde ao Museu Etrusco. Havia centenas e centenas de peças. Mas fiquei a olhar o belíssimo sorriso de duas figuras, pertencentes a uma tampa funerária. Para os etruscos a morte era encarada com uma suavidade impressionante. Fiquei sentado diante daqueles sorrisos, sem ter bem a noção do tempo. Claramente não precisava voltar a correr o Museu inteiro (maravilhoso, por sinal). Um sorriso pode ser tão acolhedor como uma sombra. Creio que para cada um de nós há assim uma geografia sentimental, um mapa descontínuo sedimentado ao longo de anos, um conjunto de indicações fragmentárias, retalhos disto e daquilo, que não sendo necessariamente preciosos, são certamente o nosso tesouro. Que os caminhos do verão nos conduzam até ele.

- José Tolentino Mendonça
In Diário de Notícias (Madeira), via Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (Portugal)

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