Foto: Phillip Schumacher
“Diagnóstico: doença terminal. A Igreja ainda tem salvação?” Esta é a pergunta que se coloca em seu último livro, publicado na Alemanha pela Editora Piper Verlag, o teólogo crítico e especialista em ética mundial Hans Küng. “Na situação atual não posso guardar silêncio”, disse Hans Küng. Na sua opinião, a Igreja católica se encontra imersa em uma grave crise. Crise que é necessário descrever com objetividade e sem preconceitos antes de aplicar a terapia adequada. Crise que se plasma, entre outras coisas, em censura, absolutismo e estruturas autoritárias.
A entrevista é de Ralf Caspary e está publicada no sítio espanhol Religión Digital, 30-07-2011. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista, aqui reproduzida via IHU.
Senhor Küng, me chamou a atenção que seu livro está impregnado de um certo alarmismo. Não podia mais ficar calado, devia escrever este livro neste momento concreto da história. Metáforas como “doença”, “recaída”, “aumento da febre” são abundantes no seu livro. A que se deve este alarmismo?
Alarma, sim, mas não alarmismo. Se me permite, explico imediatamente. Vou lhe dizer com toda a sinceridade que nestes momentos, apenas alguns meses depois da sua publicação, vejo as coisas inclusive mais pretas que a cor da capa do meu livro. Temos uma iniciativa de diálogo dos bispos que ficou esquecida. Creio que o sociólogo da religião Michael Ebertz (Friburgo) tem razão quando fala de uma segunda crise na Igreja católica, depois da crise dos crimes sexuais. O episcopado se mostra obviamente incapaz de nos comunicar o que realmente aconteceu, para que se possa encaminhar devidamente o diálogo. Seguimos sem saber como proceder para iniciar este diálogo, os bispos não se colocam de acordo e querem excluir determinados temas. Recentemente assistimos a uma série de acontecimentos muito desagradáveis que justificam tanto a minha análise quanto o meu alarma.
Você chegou a dizer que estamos na segunda fase da crise. Falou da falta de disposição para dialogar. Esclareça-nos, por favor, este ponto.
Vamos supor que os bispos tenham aprendido que não podem continuar a agir de uma forma tão autoritária como vinham fazendo até agora, que vão escutar o povo. Mas não é bem assim, nem sequer aprenderam isso. Creio que nós somos o povo! As pessoas dizem: nossa paciência está chegando ao fim, queremos participar das decisões, também em nossas paróquias. Queremos escolher os nossos bispos, queremos ver mulheres nos diferentes cargos, queremos que haja agentes de pastoral, homens e mulheres, que sejam ordenados/as sacerdotes. São slogans e demandas que refletem o descontentamento das pessoas. De fato, se produziu um cisma dentro da Igreja entre os que, lá encima, pensam que podem continuar atuando com o estilo de sempre e o povo e uma boa parte do clero liberal.
Que reações seu livro produziu até agora?
Eu o enviei a todos os bispos alemães e até agora as reações foram, quando menos, cordiais. Também o enviei ao Papa Bento com uma carta cortês na qual exponho como, no fundo, minha intenção é ajudar a Igreja, embora tenha uma ideia diferente de como deveríamos proceder. Ele me fez chegar seu agradecimento, o que me parece um gesto positivo. Tenho sumo cuidado em tentar conduzir o debate com objetividade, sem ultrapassar a barreira da ofensa pessoal e sem que a questão derrape para um assunto pessoal.
Que reações provocou entre os leigos?
Em poucas ocasiões recebi tantas cartas de agradecimento pelo livro, apesar de se tratar, de fato, de uma análise algo “deprê” que pode produzir desânimo. Me agradecem muito pelo fato de que afirme que a recuperação é possível. O livro está repleto de propostas concretas. Não posso me queixar das reações, pelo contrário, me anima muito receber quase diariamente cartas de tantas pessoas, muitas vezes de pessoas simples.
Quais são, para você, os principais sintomas desta crise da Igreja católica que diagnostica no livro?
Basicamente que as paróquias estão secando lentamente, em parte por causa da mensagem dogmática que vem reiteradamente prescrita de cima. Naturalmente, temos também o problema dos cargos eclesiais. No livro o ilustro com o exemplo da minha própria comunidade na Suíça. Durante muito tempo tivemos quatro sacerdotes (os “quatro cavaleiros”); hoje não resta nenhum. Continuamos a ter dois aposentados e um diácono. O diácono faz tudo de maneira fenomenal, um alemão, certamente. Não obstante, não pode presidir a eucaristia por não ter sido ordenado sacerdote. E não pode ser ordenado sacerdote porque é casado. É completamente absurdo. Temos que abordar uma série de pontos muito concretos: 1. O celibato deve ser opcional; 2. As mulheres devem ter acesso aos cargos eclesiais; 3. Deve-se permitir que os divorciados participem da eucaristia; 4. Deverão se estabelecer comunidades eucarísticas entre as diferentes confissões sem esperar outros 400 anos.
Estes são alguns pontos para a terapia. Voltemos ao diagnóstico. Como você denominaria a doença que afeta o núcleo da Igreja católica?
A doença é o sistema romano. Foi introduzido pelos Papas da denominada Reforma Gregoriana, em honra a Gregório VII. Foi assim que se introduziu o papismo, o absolutismo papal, segundo o qual uma só pessoa na Igreja tem a última palavra. Isto produziu a cisão da Igreja oriental que não aceitou estas modificações. Dessa época procede o predomínio do clero sobre os leigos. Padecemos um celibato para todo o clero que se introduziu no século XI. Aqui penso que está a origem da doença. Aí surgiu o germe. Tentou-se erradicá-lo com a Reforma, mas em Roma encontrou resistência. Com o Vaticano II se tentou lutar contra tudo isto. Teve um êxito parcial, embora não se permitiu debater nem sobre o celibato nem discutir sobre o papado. Pode-se considerar que o Concílio teve um sucesso pela metade. Neste momento a situação é calamitosa. Em Roma, em vez de ter aprendido algo, como era de se esperar, e ter empreendido o caminho da liberalização, os dois Papas restauracionistas – Wojtyla e Raztinger – fizeram o contrário. Fizeram todo o possível para que o Concílio e a Igreja retrocedam a uma fase pré-conciliar.
Refere-se ao Concílio Vaticano II que tentou produzir uma certa abertura?
Sim, os frutos do Concílio Vaticano II foram excelentes: integrou o paradigma da Reforma na Igreja, incorporou as línguas vernáculas na liturgia, todo o povo participa hoje ativamente da liturgia, se revalorizou o papel dos leigos e o da Igreja oriental. Inclusive houve uma integração dos paradigmas da Ilustração, da Modernidade. Desde então se reconhece a liberdade de culto e os direitos humanos; e temos uma atitude positiva em relação às religiões do mundo e em relação ao mundo secular. Mas estes são precisamente os pontos em que Roma quer retroceder. Roma está organizada para reter o poder.
Se entendi corretamente, nas últimas décadas, na Igreja católica, se produziu uma recaída, um retrocesso, uma forte concentração no sistema de domínio romano. É isto que você critica?
Sim. Isto fica claro nos seguintes pontos: primeiro, foram sendo publicados continuamente documentos sem perguntar o episcopado e sem consultar ninguém previamente. Trata-se de documentos da cúria que destacam a pretensão de estar em posse da verdade, ter o monopólio sobre a verdade da Igreja católica. Em segundo lugar, temos toda a infeliz diretriz relacionada com a moral sexual que foi sendo publicada. Esta é a linha. Em terceiro lugar, temos a política de escolha de pessoas. De forma sistemática, para os postos de bispo e outros cargos da cúria se elegem pessoais exclusivamente fiéis a essa linha. Escrevi um capítulo inteiro sobre os motivos pelos quais os bispos guardam silêncio: porque já foram selecionados, porque previamente se comprometeram, porque na ordenação prestaram juramento ao Papa, porque não podem falar livremente. Por isso escutamos de todos a mesma opinião. Os bispos se encontram em uma situação de grande pressão, por um lado a que chega de cima, por outro, a da comunidade crente.
Portanto, você dirige suas críticas também contra o monopólio do poder e o monopólio da verdade do Papa?
Sim, exatamente.
Essa seria a principal ferida?
Imagino que se tivéssemos tido outro Papa na linha de João XXIII, a instituição de Pedro seria algo magnífico. Poderia ser uma instituição de guia pastoral, que inspira, que une. O papado atual é uma instituição de domínio que divide. O Papa divide a Igreja. Esta é uma tese que não está sendo suficientemente levada a sério. Segundo as últimas pesquisas, 80% dos católicos alemães querem reformas. Os 20% que não as querem são, infelizmente, os que são levados a sério. Alguns bispos sustentam que entre os católicos há dois grupos. Não é correto, não se trata de dois grupos. A maioria quer reformas. É apenas um grupo minoritário, com forte presença na mídia, que é contra as reformas. Eles não representam a Igreja que desejamos ter. Como povo de Deus, queremos uma Igreja na qual nos sentamos na mesma roda, não queremos um pequeno grupo dominante que controle tudo.
Há algo que não entendo bem. Se você critica o Papa atual e o compara com outros Papas mais liberais, então não é um problema da estrutura da Igreja, mas da personalidade do Papa.
Também recai na personalidade do Papa. Joseph Ratzinger procede de um ambiente conservador. Eu também procedo de um ambiente conservador. Isto não é nenhuma vergonha, inclusive se poderia tornar uma vantagem. Mas ele interiorizou este ambiente. Ele viveu principalmente na Alemanha sem conhecer bem o mundo. Depois se mudou para Roma onde viveu em um gueto artificial no qual não se percebe o que acontece no resto do mundo. Ao ler algumas declarações suas, como o decreto que publicou sobre as outras Igrejas sendo ainda cardeal, a gente se pergunta: onde vive este homem realmente, na lua? Agora anunciou uma campanha de evangelização nada convincente. Como se quer evangelizar o mundo com um catecismo que pesa literalmente um quilo? Pretende torturar as pessoas? Além disso, há a questão do Ensino na Igreja. Ele fala expressamente do “ensino do Papa”. Isto, evidentemente, não há pessoa ilustrada que leve a sério. Quem vai admitir a estas alturas que uma pessoa sozinha reclame para si o poder legislativo, executivo e judiciário sobre uma comunidade de mais de um bilhão de pessoas? Em terceiro lugar, está se dando um impulso problemático ao tipo de religiosidade popular tradicional que se quer promover. Assim acontecem essas cenas terríveis na qual um Papa beija o sangue de seu predecessor em seu relicário de prata. Mas, bom, onde estamos? Este é o obscurantismo medieval.
Aprecio o fato de que se indigne quando fala do Papa atual.
Não, não se trata do Papa atual.
Em seu livro o critica com dureza. Fala, por exemplo, de boato e de esbanjamento, de estruturas autoritárias. Se poderia censurar: Küng fala com certo ressentimento?
Não. Creio que continuo tendo a capacidade de poder falar muito bem com o Papa pessoalmente. Continuamos mantendo correspondência e ele sabe que minha preocupação é simplesmente a Igreja; mas que tenho uma concepção diametralmente oposta à dele no que se refere ao caminho a seguir. Interessa-me ressaltar que não chegamos a esta situação pelo Papa Ratzinger, mas em decorrência de uma evolução desde o século XI. Embora Joseph Ratzinger e seu predecessor tenham feito todo o possível para voltar a um paradigma medieval da cristandade.
Sr. Küng, o sistema romano não se fundamenta no Novo Testamento e na História da Igreja?
Não. A própria palavra “hierarquia” não a encontrará no Novo Testamento. Aparece seis vezes a palavra “diaconia” com a famosa frase: “quem quiser ser o primeiro, seja o servo de todos”. Nessa mesma linha temos também a cena do lava-pés. Mas o Papa quer ser senhor entre os senhores. Aparece como um faraó moderno. Se observarmos as cerimônias na Praça São Pedro, uma só pessoa está no centro, ao passo que os bispos se mantêm à distância, como figurantes. Ninguém tem nada a dizer, apenas uma pessoa fala, apenas uma pessoa decide tudo. Esta não é uma Igreja de nosso tempo. E não corresponde absolutamente ao Novo Testamento nem à sua época, onde reinava a fraternidade, onde as mulheres estavam presentes e onde havia uma comunidade carismática, como se vê nas comunidades paulinas.
Todo o contrário do que se pratica hoje. Atualmente, reina uma estrutura medieval que, no princípio, só se encontra nos países árabes. Recorda-nos o comunismo: baseia-se no secretário de um partido único que decide tudo. O resto foi escolhido em função de sua lealdade à linha papal. O mesmo acontece com os bispos. Embora haja cada vez menos crentes que aceitam este sistema autoritário. Nem na Arábia se aceita mais os autocratas. Eu defendo que na Igreja católica os autocratas também não tenham nenhum futuro.
Você disse que a Igreja católica não está à altura da época moderna. Não obstante, se poderia objetar que essa é precisamente sua vantagem. Em que você pensa que deveria se transformar? Em uma empresa moderna em sintonia com os tempos atuais? Nesse caso, não ofereceria nenhuma alternativa.
Não é que eu seja um partidário absoluto da modernização. A Igreja deveria, em primeiro lugar, voltar às suas origens. Trata-se de ver se ainda podemos apelar a Jesus de Nazaré ou não. No meu livro descrevo uma cena: é impensável que se Jesus de Nazaré aparecesse em uma cerimônia do Papa, tivesse lugar. É simplesmente uma manifestação de poder pomposa e imperial, onde todos aplaudem e os senhores deste mundo participam para serem vistos e recolher votos. Essa imagem não tem nada a ver com a Igreja que Jesus queria, ou seja, não tem nada a ver com a comunidade de discípulos de Jesus. Não se trata de modernizar a qualquer preço. Em determinadas circunstâncias, precisamente será preciso oferecer resistência à Modernidade, justamente nos aspectos nos quais é desumana. Escrevi suficientes livros críticos com a Modernidade, por exemplo: “Anständige Wirtchaften” (Uma economia honrada), que trata sobre a falta de moral da economia. O que não pode acontecer é que adotemos como solução a Idade Média, quando deveríamos dar o passo da Modernidade à Pós-modernidade.
Hans Küng apela para Jesus, o Papa apela para Jesus. O que pode fazer um leigo diante destas duas tentativas de legitimação?
Deveria ler a Bíblia, assim se daria conta de onde está Jesus. Quando Ratzinger, na qualidade de teólogo, também como Papa, escreve sobre Jesus – embora realmente não devesse que escrever livros, mas dirigir a Igreja – o que faz sobre o Cristo dogmático que caminha sobre a terra? Não fala de que Jesus contradizia as instituições religiosas de seu tempo, de que no final foi assassinado por aqueles que se consideravam ortodoxos. Pelo contrário, sempre fala do Cristo dos dogmas, da Igreja e da administração.
Voltemos aos bispos. Você mencionou que são todos muito fiéis à linha papal, e que se trata, de fato, de um grupo hermético e estanque. Como se chegou a isto?
É como se o Papa pudesse nomear sozinho todos os bispos. Sobretudo, se comprometem com sua linha. Acontece literalmente como no partido comunista, onde ninguém tem nada a dizer salvo o chefe de Moscou. Por isso, todos dizem a mesma coisa. Se falas individualmente com os bispos, te dizem: “Você tem razão, evidentemente, mas...”.
Se houvesse apenas um bispo na República Federal da Alemanha que, por fim, dissesse como está a situação, que assim não se pode continuar, que é preciso fazer reformas, viriam por cima dele de Roma e do Vaticano, interviriam através do núncio, etc. Também teria contra si o resto dos bispos, em especial a facção de Meisner, que procura exercer o terror psicológico na Conferência Episcopal e, naturalmente, toda a cúria romana. Teria contra si todo esse pequeno grupo de conservadores e suas agências de imprensa, as quais divulgam continuamente notícias. Teria que ser muito forte. Embora pudesse contar, ao menos, com o apoio do povo.
No centro de sua crítica está o sistema romano. Esta questão já foi abordada. Na conversa prévia à entrevista você comentou que preferiria não falar dos casos de abuso sexual. Não obstante, o menciono porque há um ponto que deveríamos esclarecer: estes casos de abusos sexuais fazem, do seu ponto de vista, parte de um problema estrutural? Em sua crítica ao papado você fala justamente de problemas estruturais.
Evidentemente. Sempre houve uma aversão em relação à sexualidade, não apenas na Igreja, mas também na Antiguidade. Mas temos o problema do celibato do clero, cuja origem remonta às normas impostas pelos Papas do século XI. Não quero dizer, em absoluto, que o celibato desemboque necessariamente na homossexualidade ou no abuso sexual. Em absoluto. Mas quando dezenas de milhares de padres reprimem sua sexualidade e, por mais que sejam ótimos párocos, não podem ter esposa nem família, então temos um problema estrutural. Estas condições devem ser mudadas definitivamente. Embora pareça ser um tema sobre o qual não se deve discutir. O Bispo de Rottenburg fez uma conferência fabulosa sobre o Espírito Santo, ao qual é preciso se abrir, e se manifesta a favor do diálogo; mas, no dia seguinte, leio na imprensa – para grande decepção de muitos dentro e fora da diocese – que o próprio bispo, que fala tão maravilhosamente, suspendeu uma jornada sobre a sexualidade em sua própria academia. O que nos resta?
Essa jornada estava prevista para o final de junho e o tema era a moral sexual atual.
Sim, e em vez de participar e defender suas ideias nas quais está tão bem formado, se esquiva. Desautoriza a diretora da academia e todos aqueles que querem participar. Dessa forma, deixa claro que o diálogo de que fala não é mais que uma frase vazia.
Como pensa que a Igreja católica está agindo em relação aos casos de abusos sexuais?
Segue sem adotar uma postura clara, por exemplo, sobre se os agressores deverão responder diante de um tribunal civil ou como vai se proceder, como se deduz das últimas notícias que chegam de Roma e dos Estados Unidos. Na Alemanha, dizem que já se desculparam e se dá o caso por encerrado. Ao mesmo tempo, nenhum bispo quer falar de que sejam questões estruturais, nem de que é preciso abordar de uma vez por todas temas como o celibato dos homens ou a ordenação de mulheres. Mas, por que não? O que se esconde por trás disso, na minha opinião, é simples e chama-se covardia, o contrário dessa franqueza apostólica que caberia esperar e da qual se fala na Bíblia, da mesma forma como os apóstolos falavam com liberdade. Os bispos atuais calam. E, se há ocasião para exercer o seu poder, o exercem.
É uma vergonha que se vaie o presidente da Conferência dos Bispos da Alemanha no Dia da Igreja. Por quê? Porque ele, de forma arbitrária, tomou a palavra para criticar o Manifesto dos teólogos. Quando o Manifesto dos teólogos – assinado por 300 – é redigido em termos muito educados. Assim não se pode continuar.
Até aqui o diagnóstico da crise. Neste contexto você recorre continuamente à metáfora da enfermidade; passemos agora às propostas para a terapia. Você tem uma imagem concreta da reforma da Igreja. Da nossa conversa deduzo que a reforma que o Sr. Küng tem em mente passa pela eliminação total da instituição da Igreja.
Não, pelo contrário. Gostaria que reconstruíssemos a instituição da Igreja a partir de baixo, evidentemente, com base no Novo Testamento e no humanitarismo.
Então, é preciso se desfazer totalmente das estruturas atuais ou não?
É preciso abolir, evidentemente, o absolutismo do Papa. Embora se possa manter e apoiar perfeitamente uma instituição que dirija a pastoral, presidida por um bispo em Roma, sempre que for na direção do Evangelho. Poderia ter incluído uma função ecumênica. O que critico é que uma só pessoa queira dizer tudo e, por exemplo, que destitua um bispo, como voltou a fazer o Papa Ratzinger, pela primeira vez desde o Concílio.
Temos o caso do bispo Morris da Austrália. Foi destituído porque disse que não tinha mais padres e pedia a abolição do celibato e que se admitisse mulheres ao sacerdócio. Quando se cessa uma pessoa de seu cargo desta forma só cabe concluir: esta não é a Igreja de Jesus Cristo, isto é um sistema que exige uma total identificação e nem sequer aos seus bispos é permitido a menor divergência.
Não obstante, a instituição do papado lhe pareceria aceitável se o Papa fosse mais liberal, mais aberto? Ou diria que esta função do papado já não está em consonância com os tempos atuais?
Não. Sempre fui a favor do equilíbrio, do check and balance. É bom que haja uma comunidade, também é bom que haja algumas autoridades. Um homem como João XXIII teve um efeito maravilhoso na Igreja. Fez mais em cinco anos que Wojtyla com suas dezenas de viagens. Mudou toda a situação. Foi uma grande oportunidade. Não obstante, Sr. Caspary, devo lhe confessar que hoje tenho mais confiança nas paróquias e não o quero privar de uma boa notícia que recebi. Duas paróquias de Bruchsal, as comunidades romano-católicas de St. Peter e a comunidade paroquial de Paul Gerhardt, evangélica, escrevem: “Damos por terminada a divisão que durante quase 500 anos a cristandade viveu em nossa zona”. E acrescentam – espero que isso se publique logo: “Reconhecemos que em todas as paróquias que assinam este comunicado se vive igualmente como seguidores de Cristo e como comunidades de Jesus Cristo. Reconhecemos que em nossas paróquias Jesus Cristo nos convida à mesa do Pai e sabemos que Ele não exclui ninguém que queira segui-lo. Pela presente, manifestamos expressamente a nossa recíproca hospitalidade”.
Espero que haja muitas paróquias na Alemanha que façam o mesmo. Caso os de cima não queiram, em nível paroquial podemos dar por superada e finalizada essa cisão.
Como você imagina essa Igreja construída de baixo para cima? Quais seriam seus fundamentos institucionais? Não haveria um risco de caos, de que a Igreja se dividisse ainda mais em múltiplas direções?
O que acabo de ouvir de Bruchsal é justamente o contrário de uma cisão. Aproxima as paróquias. E na época do Concílio desfrutamos de grande unidade na Igreja. A divisão atual vem de cima porque se tentou invalidar o Concílio, porque alguns estão convencidos de que é preciso reintroduzir a missa em latim. Diante destes fatos é preciso protestar. É possível oferecer resistência como no caso das coroinhas. Os crentes disseram simplesmente: queremos que haja coroinhas e pronto. Agora, os de cima procuram estabelecer que, ao menos nas missas em latim, não haja mulheres. Necessitamos que haja uma resistência ativa, do contrário a Igreja vai a pique. Estamos em uma situação desesperada, perdemos praticamente toda a geração jovem. Esta é a diferença com relação aos países árabes onde centenas de milhares de pessoas saem às ruas. Há hoje 100.000 que saem às ruas para pedir reformas na Igreja católica? Continuamente me encontro com pais que dizem: “Você sabe, me dá tanta pena que, sendo católicos convencidos, depois de ter tido sempre um bom ambiente familiar em casa, não consigamos que nossos filhos participem da Igreja”.
Falou de desobediência civil. Pode concretizar isso? O que fazem os padres nas paróquias?
Os párocos, em sua maioria, praticam uma desobediência discreta. Se um pai evangélico se aproxima para receber a comunhão, não lhe perguntam se é evangélico, assim como se chegou a fazer nas jornadas de jovens de Colônia. Também não anunciam, assim como se volta a exigir que, em conformidade com o Papa, só determinadas pessoas possam participar da eucaristia. Os párocos, os bons párocos, prescindem dessas normas e se viram bastante bem. Embora eu seja a favor de que houvesse mais párocos como os de Bruchsal que trouxeram à luz sua resistência, de forma que as pessoas se deem conta de que avançamos.
A Igreja católica é capaz de iniciar ela mesma a reforma a partir de dentro?
Bom, conheço o sistema a partir de dentro e luto para que as reformas sejam feitas. Sei que tenho milhões de pessoas do meu lado. Neste sentido é questão de tempo. Simplesmente não podemos avançar baseando-nos em um senhor absoluto que prescreve o que deve ser feito na cama (palavra chave: a pílula...) e que estabelece todas as normas desde seu limitado campo de visão. Creio que a política papal demonstrou já ser um fiasco e não nos deveria corromper mais. A única pergunta que também se fez no partido da União Soviética, o partido comunista, é esta: há algum Gorbachov que possa nos tirar desta choça?
Quer isto dizer que seria favorável a algo como uma Perestroika na Igreja? Isso requer uma personalidade muito carismática.
Reclamo uma Glasnost e uma Perestroika, especialmente para as finanças da Igreja. Gostaria de saber como realmente se pagam as coisas em Roma, quem parte o bacalhau.
Esse seria outro assunto. A Perestroika seria para você...
... a independência.
Veremos se suas ideias e sua visão da Perestroika caem em solo fértil e o que vai acontecer nos próximos 20 anos dentro da Igreja católica. Uma vez lido o seu livro, me inclinaria por um certo ceticismo e pessimismo. Não obstante, se encontra entre as coisas boas, penso.
Só posso apelar e esperar que haja suficiente gente que se ponha em pé e, por fim, se rebele. Tweet
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