Instalação: Daniel Rozin
Existem várias maneiras de se esconder o preconceito num discurso aparentemente amigável às minorias no Brasil. Uma delas é quando a discussão, no bar, nas escolas ou nos fóruns eletrônicos da internet tem início com uma espécie de vacina contra uma possível blitz politicamente correta: “não tenho nada contra essas pessoas, mas…”
É um tipo único de salvo-conduto que dá ao interlocutor o direito de desferir as maiores barbaridades a partir da palavra “mas”. Algumas dessas barbaridades são invisíveis a olhos nus. Escondem-se, geralmente, em argumentos que, no limite, apelam para a necessidade de se respeitar para ser respeitado; ou de se rejeitar “privilégios” para se reivindicar tratamento igualitário. Via de regra, os mesmos argumentos descambam para a fratura mal escancarada do mais autêntico discurso discriminatório: “eles mesmos têm preconceito contra eles”.
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Todas essas armadilhas estão pulverizadas, de uma forma ou outra, no argumento do vereador Carlos Apolinário (DEM-SP) ao defender o projeto de sua autoria que institui o Dia do Orgulho Heterossexual na capital paulista. O vereador, que garante ter amigos homossexuais, diz ver como “absurda” a extensão de privilégios a um grupo que sai às ruas uma vez por ano afirmar que não tem vergonha de ser gay. Também diz serem inaceitáveis as regras criadas, ao longo dos últimos anos, para proteger a comunidade gay de uma violência diariamente noticiada nas páginas policiais. Apolinário se diz revoltado por não poder xingar um gay na rua sem correr o risco de ser preso. E também por ver leis criadas para beneficiar conjugues homossexuais como dependentes, por exemplo, de planos de saúde.
Em todos esses casos, o argumento é um só: os gays se acomodaram num colchão de direitos e se tornaram uma espécie de casta privilegiada, adepta à vitimização sem causa e que anda em grupo pelo simples gosto de não se misturar.
A claque ao vereador, no dia seguinte às manifestações públicas de miopia histórica, mostra o quanto conquistas acumuladas pelos movimentos sociais nas últimas décadas ainda incomodam, e não apenas aos mais velhos – como costumam assinalar os que acreditam que o preconceito no Brasil está morto, enterrado ou no máximo mudou de lado. Mostra sobretudo que a violência do preconceito foi, e ainda é, uma herança muito bem cultivada e transmitida de pai para filho na base de discursos, piadas e lâmpadas fluorescentes.
No dia seguinte à entrevista, o que mais ouvi de amigos e até familiares foi que o vereador tinha lá certa razão. Um exemplo que ouvi foi que, assim como os gays, as mulheres se contradizem ao pedir condições iguais de tratamento quando já contam até mesmo com delegacias especializadas e leis como a Maria da Penha. Como se o saldo da violência doméstica entre os homens de olho roxo fosse o mesmo de mulheres que, até ontem, evitavam denunciar a agressão masculina em delegacias tomadas por policiais homens que, não raro, legitimavam a ação em nome da “honra” do agressor. E mandavam as mulheres para casa lamentando que a surra havia sido pouca.
Diferentemente do que prega o vereador, quando grupos de orgulho LGBT saem às ruas não estão apenas em busca de festa. Estão dizendo que, diferentemente de outros tempos, não têm mais vergonha da sexualidade nem querem passar o resto da vida trancados no quarto, com medo da reação de amigos e familiares. Demonstram, sobretudo, que estão unidos na pretensão de um dia serem tratados definitivamente como iguais. O que, em pleno 2011, ainda parece longe de acontecer.
Não parece privilégio, por exemplo, querer trabalhar sem que qualquer mérito ou erro seja atribuído à pura opção sexual. Um exemplo simples: não faz muito tempo, um jogador de um grande clube paulista era privado de ter seu nome cantado pela torcida simplesmente por supostamente ser gay. Quando fazia gol, ouvia-se pelas arquibancadas: “acertou, mas é gay”. Quando errava, o que se ouvia era: “errou, porque é gay”. Os mesmos “mas” e “porque” se repetem, todos os dias, de todos os meses, de todos os anos, em escolas, repartições, filas, espaço público, cinema ou nas divisões das Forças Armadas.
Tampouco parece privilégio o direito de sair às ruas e pedir simplesmente o direito de se viver em paz. Por isso, chega a soar como provocação dizer que é preciso reagir às manifestações de orgulho gay com outra manifestação: a do orgulho hétero. É o atestado para que se crie uma situação em que uma minoria até pode sair às ruas para pedir o direito simplesmente de existir, mas outros devem também ter o direito de impedir que uma minoria exista. Não são situações iguais, nem demandas iguais, nem direitos iguais. Gays não saem às ruas explodindo lâmpadas fosforescentes na cabeça de heteros ou skinheads, mas o contrário não parece ser falácia.
Pode não ser a intenção do vereador, sempre simpático no tratamento dispensado a jornalistas e que tanto apreço manifesta ao seu cabelereiro gay. Mas, ao ignorar a lógica da discriminação ainda reinante e reduzir a discussão à pregação de que é necessário “tratar como iguais os desiguais”, Apolinário e seus seguidores apenas escancaram a porta de entrada para a legitimação de um verdadeiro massacre que tantas vezes extrapolam as piadas em mesas de bar e se incorporam em perseguição, patrulhamento e agressão.
- Matheus Pichonelli
Publicado originalmente no site da Carta Capital Tweet
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